segunda-feira, 28 de junho de 2010

O desporto-rei vai nu

Evitei até agora tornar o desporto em tema desta coluna, não por falta de interesse, mas por achar que já demasiada gente diz disparates sobre o tema. Um campeonato do mundo de futebol, a decorrer, parece-me no entanto uma boa altura para quebrar esta regra. Até porque há aqui algo errado.

Rebobinemos até Junho de 1986, quando tem lugar, sem que ninguém disso se aperceba na altura, o último Grande Mundial de Futebol da História. Para o entusiasta do desporto-rei, o México 86 oferece tudo: jogadores carismáticos em quase todas as equipas, jogos épicos que entram para a “memória essencial” do adepto que se preze – França-Brasil nos quartos-de-final (2-1), por exemplo –, golos eternos (o de Maradona com a mão, o slalom do mesmo jogador no mesmo jogo contra a Inglaterra…), incertezas e reviravoltas no marcador, e golos: uma média de 2,54 por jogo, muito poucos 0-0 (apenas três), resultados como 6-1, 4-3, 3-2; e ainda insólitos, com uma selecção a entrar em greve (a portuguesa, em Saltillo). Tínhamos no Mundial o supra-sumo do futebol, o culminar de quatro anos de esforços para encontrar a melhor equipa, o mais importante objectivo da carreira de um jogador e treinador, e um festim para o adepto (naqueles tempos a tv quase não transmitia outros jogos). Atenção, não era (ou pelo menos não era somente) por aquela falácia de “representar o país” que toda a gente dava o seu melhor; era porque ali estava a cimeira, a exposição e o cartão de visita deste grandioso desporto.

O jogo mudou, uniformizou-se e aborreceu-se. Em 2010, como em 2006, 2002, 1998, 1994 e (especialmente) 1990, o anticlímax é quase diário; a antecipação gerada por imaginar duas grandes equipas/jogadores em confronto directo acaba, na maioria das vezes, numa decepção. Um Portugal-Brasil soa a alegria, risco, prazer, excitação, mas em 2010, este jogo (reunindo no mesmo espaço muitos dos supostos melhores praticantes do mundo) é um elogio ao medo, ao aborrecimento, à previsibilidade; e isto já não tem a capacidade de nos espantar, o 0-0 final passa desapercebido entre os outros, e é mesmo muito celebrado. Afinal, o que interessa é que “os nossos” passem e “os outros” sejam eliminados. As multidões ululantes que se reúnem em frente a ecrãs um pouco por todo o mundo pouco gostam (ou sequer entendem) de futebol, estão sim interessadas no folclore: o nacionalismo simplista que se alia às cores do equipamento e da bandeirinha. Mas se até o Brasil joga como se fosse a Itália, se todas as equipas jogam à espera de marcar um golo num erro do adversário e defender o precioso 1-0 até final, se os diferentes estilos das diferentes escolas nacionais se tornam indistintos, e se os países alinham com tantos jogadores oriundos de outros lugares, qual é sentido de uma competição futebolística entre nações? É preciso recuar a Orwell: “o desporto é o substituto da guerra, sem os tiros”. O Mundial cumpre a sua função, mas de futebol tem cada vez menos.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O improvável dueto belga

Um cartoon do desenhador Kroll publicado na própria noite das eleições de domingo na Bélgica resumia em parte o espírito que se vive no país. Ao contrário dos desenhos habituais, a cena está claramente dividida em duas partes, com um traço grosso a meio; do lado esquerdo, alguém se agarra às pernas do magríssimo Elio di Rupo, líder do PS francófono que venceu as eleições na Valónia, e diz “Socorro, Elio! Contamos contigo!”. Do lado direito, os personagens incentivam um homem com uma barriga enorme, Bart De Wever, líder dos nacionalistas flamengos do N-VA: “Vamos lá, Bart! Contamos contigo!”. Os dois lados esperam dos seus campeões algo de completamente oposto.
Di Rupo é uma espécie de última esperança de salvar a Bélgica da forma que ela actualmente (não) funciona, de manter as “linhas vermelhas” das quais os valões não querem abdicar: manutenção da segurança social, da fiscalidade (que é a mais pesada do mundo sobre o trabalho), dos direitos linguísticos das minorias à volta de Bruxelas.
De Wever é o terramoto político que sacode as águas e foi eleito por quase 30% dos flamengos para… acabar com a Bélgica. O N-VA foi criado em 2001 e, em apenas nove anos e três eleições federais, tornou-se o partido mais votado no país; o seu objectivo central é a secessão pacífica da Flandres e a sua independência dentro de uma Europa unida. No domingo, os líderes valões apressaram-se a relembrar que “70% dos flamengos não votaram em De Wever”. Mas a mensagem do eleitorado flamengo é clara – estamos fartos, dizem; é preciso reformar o país, e/ou acabar com ele. De Wever falou mesmo em “dois países que devem agora encontrar um acordo”. E tal não pareceu um lapso linguístico. Do outro lado, ripostou-se: “Se a Flandres sair, a Valónia juntar-se-á ao Luxemburgo!”.
O problema da Bélgica está aqui reflectido: não há uma democracia, mas duas; o eleitorado francófono está na fase da negação e vota nos socialistas francófonos, símbolos de um (insustentável) Estado-providência, numa tentativa de manter o status quo; do outro lado do ringue, o eleitorado flamengo escolhe tudo mudar, tomando decisões unilaterais e, se necessário – e a possibilidade torna-se cada vez mais real – desfazendo o país. O vastíssimo campo central do consenso e da negociação está abandonado, não porque falte bom-senso, mas porque ele teve muito tempo para agir – e falhou. A Bélgica está bloqueada há demasiado tempo, enredada nas suas contradições internas; agora, este duo de perfeitos opostos, o magro socialista francófono e o gordo nacionalista flamengo, são a estranha proposta para desbloquear o(s) país(es).
Afinal, há uma dívida federal de 99% do PIB a pagar pelas gerações futuras, há uma dívida regional de mais um terço deste valor, há uma crise económica europeia e mundial para combater, há um mundo em constante mudança. E sobre tudo isto, na campanha belga não se ouviu nem uma palavra.

Agora começa a ser a sério


"O fracasso do euro significaria o fim da Europa". Angela Merkel acordou para as duras realidades dos mercados financeiros e começou finalmente a explicar aos alemães porque é que é essencial salvar os gregos, os portugueses, os espanhóis e todos os governos europeus que andaram a gastar por conta (o ex-secretário do Tesouro britânico, um trabalhista, acaba de deixar uma singela mensagem por carta assinada ao seu sucessor conservador: "Caro secretário: já não há dinheiro". No Tesouro do Reino Unido, entenda-se).

A retórica política passou de repente de soporífera a explosiva: até há bem pouco tempo, a enunciação da palavra "fracasso" era raríssima entre os líderes europeus, e conjugar sequer a possibilidade do "fim da Europa" seria sinal de extremismo ou irresponsabilidade. Mas os tempos estão a mudar – e cada vez mais rápido. Merkel pronunciou as suas palavras em plena entrega (ao primeiro-ministro polaco Donald Tusk) do prémio Carlos Magno em Aachen, ocasião solene que celebra a causa e o espírito europeus. Outros líderes têm contribuído para um sentimento apocalíptico. "A França ameaçou sair do euro se a Alemanha não interviesse", foi a inconfidência de Zapatero; "A Europa atravessa a sua pior crise desde a Segunda Grande Guerra", disse no domingo o presidente do BCE, Trichet, conseguindo ainda adensar o tom histórico. O timing, pelo menos, foi bom: o fim-de-semana que passou foi mesmo absolutamente histórico e a Europa respondeu a um grande mal com um grande remédio e um gigantesco passo em frente.

O grande remédio é um comprimido absolutamente colossal feito de 750 mil milhões de euros. Para se ter uma pequena ideia, o valor representa cerca de quatro vezes o PIB de Portugal (e 20 vezes o do Luxemburgo), foi constituído com fundos comunitários, do FMI (o que significa também de EUA, Canadá e Japão) e dos Estados-membros da UE, e será utilizado para dar liquidez a países incapazes de se financiar no mercado – ou seja, salvá-los. Mas o mais interessante é o grande passo em frente: o primeiro no sentido de uma verdadeira união política e económica europeia. O euro foi criado há 11 anos e já prestou muitos e bons serviços às nossas economias, mas está incompleto: uma união monetária não pode sobreviver a longo prazo com comportamentos divergentes e sem a correspondente união de políticas económicas. Este "fundo monetário europeu" – e as condições de disciplina que a Alemanha vai estabelecer para o criar – é o início dessa união, e já provocou que alguns países tenham em alguns dias dado reviravoltas de 180º e deixado de brincar aos endividamentos. O governo português, por exemplo, adiou para as calendas... gregas... os projectos faraónicos de uma nova ponte e aeroporto, que insistia em manter enquanto aumentava impostos e cortava na despesa. Mais uma vez, Bruxelas provou ter muito mais juízo que Lisboa.

Diário de um maratonista acidental

Começo por avisar que não sou um corredor. Regra geral, e bem vistas as coisas, acho que uma boa posta à mirandesa ganha sempre à partida contra uma vida regrada em que a recompensa é simplesmente a virtude, e conheço poucos prazeres mais urbanos – e genuínos – que uma longa noite de copos entre amigos. Não é que não goste de desporto, muito pelo contrário, simplesmente sempre me atraíram os jogos em que há duas equipas e uma bola a saltar em qualquer lado, e nunca percebi bem o prazer de simplesmente correr, em linha recta, sem nenhum outro fito que não seja o de… correr.
Estou no entanto impressionado com o que as provas de atletismo podem fazer para dinamizar uma cidade, nestes novos tempos em que estas competem entre si para atrair pessoas, acontecimentos, movimento, publicidade, negócios. Uma corrida bem pensada e publicitada segue o princípio estatístico minimax: minimiza as possíveis perdas – afinal, as ruas já estão construídas e são os cidadãos quem cria o acontecimento – e maximiza o ganho potencial, ao pôr a cidade no mapa, trazendo tantos turistas ocasionais como uma final europeia de futebol (e os corredores, com as suas famílias, até são bem mais pacíficos). Até o pequeno Luxemburgo já o compreendeu, encorajando (mas pouco…) uma maratona que na sua edição 2010, há duas semanas, sempre contou com 8000 corredores.
Por curiosidade, decidi inscrever-me numa prova que tem crescido de popularidade a cada ano (as inscrições, para 30000 vagas, abriram a 1 de Março e esgotaram no mesmo dia!). Os 20 km de Bruxelas apresentam um percurso que liga as zonas mais verdes e as mais endinheiradas da capital europeia. A organização deixa pouco ao acaso, com reabastecimentos regulares aos atletas e um pequeno chip electrónico que permite controlar os próprios tempos (e aos amigos seguirem a prova em tempo real no facebook). Restava, portanto, correr 20 quilómetros. Quão difícil pode ser?A resposta é: bastante difícil. Sobretudo para quem (como eu) decide sair na noite anterior, ou para quem (como eu) leva demasiado à letra as recomendações para “comer massas” e engole enormes quantidades de macarrão algumas horas antes da prova, acompanhadas de fatias de salmão fumado. Passei 12 km em luta com o estômago, até que as dores agudas nos joelhos e nas costas começaram a exigir mais atenção. Ainda assim acabei a prova, no mesmo dia em que escrevo este texto, e se bem que as pernas recusam-se agora a fazer o mais pequeno serviço, valeu a pena: pelo espírito especial do dia, pelas demonstrações de força interior e vontade humana que testemunhei, pela emotividade da chegada sob os aplausos e os incentivos da multidão. E porque Bruxelas se torna muito bela em tons pseudo-heróicos. Da próxima, só preciso de me lembrar para não comer mais salmão.