"O alfaiate do Panamá" é um produto bem feito,
falemos do livro de John Le Carré ou do filme. No filme, que inclui um Pierce
Brosnan a gozar com agentes secretos (ele que era à época o 007 de serviço),
Geoffrey Rush interpreta um alfaiate que para melhor esconder os seus segredos
tenta passar despercebido - mas cujas ganância e estupidez acabam por quase
provocar uma guerra.
O alfaiate é uma metáfora do Panamá, um pequeno país
aparentemente inofensivo (como um Luxemburgo da América Central, digamos) onde
na verdade se esconde uma impressionante quantidade de dinheiro sujo – não
gerado no local, evidentemente. São milhões de milhões que se escondem das
administrações tributárias, das polícias, e das populações oprimidas de regimes
tão opressivos como altamente lucrativos para os opressores. Escondem-se da
decência, da ética e da vergonha.
As revelações deste domingo – os “documentos do Panamá” –
são brutais, pela sua crueza, pela sua dimensão, mas sobretudo pelo que
significam: uma gangrena. E o organismo gangrenado é todo o nosso modo de
organização de sociedade, que (à falta de melhor descrição) englobarei dentro
da descrição genérica “sistema capitalista”, cujos alicerces estão putrefactos.
São 11 milhões e meio de nomes envolvidos, numa só empresa, num só paraíso
fiscal. Uma empresa fundada pelo filho de um foragido da Alemanha nazi que é
apenas a quarta maior do mundo neste tipo de negócios escuros; não é difícil
imaginar que, quase sem excepções, os nomes conhecidos não mencionados na
imensa quantidade de informação agora revelada aparecem nas listas de clientes
das três maiores evasoras… ou qualquer uma das outras.
E é aqui que, em todo o seu esplendor, a realidade se nos
revela. A narrativa do “não há dinheiro” é uma abjecta mentira, contada
precisamente pelos mesmos que escondem esse mesmo dinheiro perto de palmeiras.
O dinheiro existe, mas está parado, é improdutivo, serve apenas e só os
interesses de 1% da população – mas como sabemos, esses 1% detêm (muito) mais
de metade dos recursos do planeta. Estima-se que o total escondido em paraísos
fiscais seja equivalente a duas vezes toda a riqueza produzida, por ano, em
toda a União Europeia. Pausa para respirar e apreciar a frase anterior. E então
percebemos porque nos contam que é preciso cortar nos sistemas de saúde por
serem incomportáveis, que não haverá Segurança Social no futuro, que é preciso
desmantelar todas as funções do Estado, desde a segurança à educação passando
pelas infra-estruturas. Somos nós, o leitor e eu, cidadãos comuns, quem
sustenta essas funções básicas, com todos os nossos impostos, taxas e multas,
que não param de aumentar. Quem tem um pouco mais de dinheiro, qualquer que
seja a sua proveniência, imediatamente se demite das suas responsabilidades
perante a sociedade e, em vez de contribuir, esconde; em vez de retribuir à
sociedade um pouco do seu sucesso, foge; em vez de ajudar, aproveita-se
gratuitamente do que é pago por aqueles com vidas bem mais difíceis. É o velho
problema económico do “free rider”, aquele que viaja de graça no avião pago
pelos outros, mas agora de forma sistemática – ocupam todos os lugares de
classe executiva.
Nunca o poder político quis acabar com esta podridão. Os
paraísos fiscais da forma como os conhecemos são uma invenção dos anos 1930,
foram e são utilizados por tudo o que é regime ditatorial ou “democrático”
desde aí – e, desgraçadamente, sempre mais e mais. O tema tem vindo a tornar-se
politicamente ensurdecedor, mas os corruptos políticos a que temos direito
continuam a assobiar para o lado o máximo que podem, até que, muito pressionados,
lá vomitam umas regras para inglês ver (e inglês contornar), algo que muda para
que tudo continue na mesma.