segunda-feira, 3 de maio de 2010

Pequena introdução a um país surrealista

"De todos os povos da Gália, os Belgae são os mais valentes", escreveu Júlio César nos seus "Comentários à Guerra da Gália". Inspiradas pelas palavras do imperador romano, as grandes potências europeias ressuscitaram as tribos celtas denominadas por Belgae quando, em 1830, precisaram de arranjar um nome para o território secessionista a sul dos Países Baixos: Bélgica. O nome, o país e o novo rei (escolhido numa lista de candidatos e importado da Baviera) eram, de qualquer forma, transitórios, dado que o novo país aglomerava diferentes populações sem cultura ou laços comuns, nem grande interacção mútua, entre francófonos, flamengos e germanófilos. Um embaixador da Grã-Bretanha, interessada sobretudo em que o território não caísse nas mãos da rival França, declarou mesmo que a Bélgica "foi criada para durar uns 15 anos".

180 anos depois, o problema da incompatibilidade entre (sobretudo) dois campos populacionais não só persiste mas até se agravou em determinados aspectos. Devido a factores históricos, culturais, linguísticos, económicos, ou simplesmente surrealistas - e não há país mais magritteano que este, a começar pelos seis governos e parlamentos que operam no país -, a Bélgica é hoje um país politicamente bloqueado, a tal ponto que a esperança em resolver o cerne da mais recente discórdia reside... em fazê-lo quando não há governo, ou seja, durante o presente vazio de poder depois do pedido de demissão (o quinto na sua curta carreira) do primeiro-ministro Yves Leterme.

O cerne da questão é, há três anos, a região de Bruxelas: em volta da capital mas já fora da região "Bruxelas-Capital" e sim na região "Flandres" - e graças a um círculo eleitoral e judicial denominado "Bruxelas-Hal-Vilvorde" - há várias comunas onde os francófonos - que constituem por vezes a maioria, a ponto de elegerem burgomestres francófonos, que em seguida não são empossados pelos flamengos - usufruem aí de direitos linguísticos minoritários (como o voto em partidos francófonos). A Flandres, na lógica territorial que enferma todas as discussões no país, quer acabar com estes direitos, enquanto os valões propõem aumentar a área do enclave (maioritariamente francófono) de Bruxelas. E na quinta-feira, perante a ameaça flamenga de votar unilateralmente a partição do distrito BHV, usaram a "campainha de alarme", último recurso da Constituição, em que uma minoria pode bloquear a maioria (sempre flamenga) e pedir um adiamento por 30 dias até que o governo resolva uma questão. Como daqui a 30 dias ainda não haverá governo, o destino dos três anos de discussões é... o caixote de lixo.

Hoje, o terreno comum entre as duas comunidades é tão pequeno, as discussões são tão estéreis, e a ausência de personalidades que façam a ponte entre os diversos interesses tão aguda, que a desintegração do país é uma possibilidade real. Os diversos cenários para que isso aconteça serão assunto de próxima crónica.