"Há algo mau que se passa. Vai a Paris. Vai a Bruxelas.
Ali estas pessoas querem a lei sharia, querem isto, querem aquilo... Eu visitei
Bruxelas há muito tempo, 20 anos, tudo era tão bonito. Agora é um buraco
infernal".
Estas palavras foram proferidas em Janeiro por aquilo que há
de mais próximo a um político inimputável: Donald Trump. E no entanto... Trump,
pelo menos por uma vez (estatisticamente é sempre possível que isso aconteça),
tem razão no diagnóstico, mesmo que não nas soluções. Há realmente algo de mau
que se passa em Bruxelas, a tal ponto que até um demagogo perigoso como Trump
consegue passar por balbuciar profecias em relação à cidade.
Sabemos que há algo de errado quando sabemos,
antecipadamente, que a cidade e os seus habitantes vão sofrer um selvático
atentado terrorista. Era o caso. Só não sabíamos o onde e o quando, mas
sabíamos que iria acontecer. Mais, sabíamos que estava para breve. Quando digo
sabíamos, refiro-me a todos nós os que passamos muito tempo neste "buraco
infernal"; a detenção de Salah Abdeslam, o nojento operacional dos
atentados de Novembro em Paris, tinha ocorrido apenas quatro dias antes e só
veio acelerar o horror. Isto mesmo foi dito por vários responsáveis, e peritos
em terrorismo, nos dias e horas que mediaram a detenção e as explosões.
Os atentados de ontem não são surpreendentes. Provocam uma
dor enorme; provocam raiva, fúria, desejos de vingança, medo, pesar, desespero,
luto e até, estranhamente, uma certa atitude de desafio, como o café que
insisti em ir tomar ao meu café preferido, como o amigo que ao ler as notícias
decidiu ir fazer jogging para o parque, como as pessoas que, aparentemente
calmas, continuam a caminhar pelas mesmas ruas onde horas antes mais de 300
concidadãos foram chacinados ou feridos.
Mas não provocam surpresa. Não depois do que aconteceu em
Paris, por duas vezes, em 2015. Não depois dos quatro mortos à queima-roupa no
museu Judaico, em pleno centro de Bruxelas, em 2014. Não depois dos atentados
evitados in extremis em Verviers e dentro de um comboio Thalys que ia de
Bruxelas para Paris. Em comum, à primeira vista, todos estes actos abjectos têm
algo em comum - foram idealizados em Molenbeek, e executados por islamistas
provenientes de Molenbeek. Não é um acaso. Bruxelas sofre duplamente, por um lado
com as doenças da Bélgica, por outro com as doenças da Europa.
A Bélgica é um Estado falhado. Eventualmente não ao nível
desta classificação quando aplicada à Somália ou ao Sudão do Sul, dado que o
país é mais rico e tem, na aparência, as estruturas que mentalmente associamos
a um Estado-providência de cariz europeu - e esse é desde logo um dos
problemas, o laxismo com dinheiros públicos que criou subsídios de desemprego
para a vida e encorajou a réplica de radicais estruturas de clã marroquinas no
coração de um Estado laico e liberal. Não é esse o único laxismo: a Bélgica não
se reforma, deixa-se ir. Os túneis da cidade estão a desmoronar-se sobre os
carros, porque durante 40 anos ninguém se preocupou em dar-lhes manutenção.
Foram ficando. As polícias (porque só em Bruxelas há seis diferentes) são
completamente ineficazes. Os tribunais são inoperacionais. As prisões estão
cheias e não corrigem. Os serviços secretos permitem que indivíduos altamente
perigosos, conhecidos de todos e ajudados pelas suas redes de subterfúgios, se
passeiem impunes por meses.