terça-feira, 5 de abril de 2016

O alfaiate do Panamá


"O alfaiate do Panamá" é um produto bem feito, falemos do livro de John Le Carré ou do filme. No filme, que inclui um Pierce Brosnan a gozar com agentes secretos (ele que era à época o 007 de serviço), Geoffrey Rush interpreta um alfaiate que para melhor esconder os seus segredos tenta passar despercebido - mas cujas ganância e estupidez acabam por quase provocar uma guerra.

O alfaiate é uma metáfora do Panamá, um pequeno país aparentemente inofensivo (como um Luxemburgo da América Central, digamos) onde na verdade se esconde uma impressionante quantidade de dinheiro sujo – não gerado no local, evidentemente. São milhões de milhões que se escondem das administrações tributárias, das polícias, e das populações oprimidas de regimes tão opressivos como altamente lucrativos para os opressores. Escondem-se da decência, da ética e da vergonha.

As revelações deste domingo – os “documentos do Panamá” – são brutais, pela sua crueza, pela sua dimensão, mas sobretudo pelo que significam: uma gangrena. E o organismo gangrenado é todo o nosso modo de organização de sociedade, que (à falta de melhor descrição) englobarei dentro da descrição genérica “sistema capitalista”, cujos alicerces estão putrefactos. São 11 milhões e meio de nomes envolvidos, numa só empresa, num só paraíso fiscal. Uma empresa fundada pelo filho de um foragido da Alemanha nazi que é apenas a quarta maior do mundo neste tipo de negócios escuros; não é difícil imaginar que, quase sem excepções, os nomes conhecidos não mencionados na imensa quantidade de informação agora revelada aparecem nas listas de clientes das três maiores evasoras… ou qualquer uma das outras.

E é aqui que, em todo o seu esplendor, a realidade se nos revela. A narrativa do “não há dinheiro” é uma abjecta mentira, contada precisamente pelos mesmos que escondem esse mesmo dinheiro perto de palmeiras. O dinheiro existe, mas está parado, é improdutivo, serve apenas e só os interesses de 1% da população – mas como sabemos, esses 1% detêm (muito) mais de metade dos recursos do planeta. Estima-se que o total escondido em paraísos fiscais seja equivalente a duas vezes toda a riqueza produzida, por ano, em toda a União Europeia. Pausa para respirar e apreciar a frase anterior. E então percebemos porque nos contam que é preciso cortar nos sistemas de saúde por serem incomportáveis, que não haverá Segurança Social no futuro, que é preciso desmantelar todas as funções do Estado, desde a segurança à educação passando pelas infra-estruturas. Somos nós, o leitor e eu, cidadãos comuns, quem sustenta essas funções básicas, com todos os nossos impostos, taxas e multas, que não param de aumentar. Quem tem um pouco mais de dinheiro, qualquer que seja a sua proveniência, imediatamente se demite das suas responsabilidades perante a sociedade e, em vez de contribuir, esconde; em vez de retribuir à sociedade um pouco do seu sucesso, foge; em vez de ajudar, aproveita-se gratuitamente do que é pago por aqueles com vidas bem mais difíceis. É o velho problema económico do “free rider”, aquele que viaja de graça no avião pago pelos outros, mas agora de forma sistemática – ocupam todos os lugares de classe executiva.

Nunca o poder político quis acabar com esta podridão. Os paraísos fiscais da forma como os conhecemos são uma invenção dos anos 1930, foram e são utilizados por tudo o que é regime ditatorial ou “democrático” desde aí – e, desgraçadamente, sempre mais e mais. O tema tem vindo a tornar-se politicamente ensurdecedor, mas os corruptos políticos a que temos direito continuam a assobiar para o lado o máximo que podem, até que, muito pressionados, lá vomitam umas regras para inglês ver (e inglês contornar), algo que muda para que tudo continue na mesma.

Se há uma esperança que os documentos do Panamá nos permitem é a de uma pequena janela de oportunidade para reformar a situação putrefacta a que chegámos. Ao longo das próximas semanas, à medida que mais nomes serão envolvidos – já não apenas ditadores contrários aos interesses americanos, mas também bancos, farmacêuticas, políticos ocidentais, cabeças coroadas, celebridades aparentemente impolutas – a justa indignação vai obrigar a uma limpeza séria, finalmente. Mas há uma alternativa, claro: que a raiva se esvaia e tudo continue como até aqui. Afinal, como o alfaiate avisa no filme, “ninguém perde a sua reputação no Panamá: deixa-se a secar uns meses e depois volta-se a usar, como se nada se tivesse passado”.

O embaraçoso amigo turco


29 de Maio de 1453 é um dia que viverá para sempre na parte sombria da História cristã e, porque não dizê-lo, europeia. Foi o dia em que Constantinopla caiu, após um cerco de 53 dias, nas mãos do sultão otomano Mehmet (então um jovem de 21 anos). Foi a perda que significou fim o do império Romano, após quase 15 séculos de existência.

Há um novo sultão na Turquia, um país extraordinário em muitos aspectos mas assustador, na ausência de um Estado de Direito, em tantos outros. Erdogan, o todo-poderoso líder do partido (islamista) da Justiça e do Desenvolvimento, resiste no poder há 13 anos à cabeça de um aparelho que se auto-perpetua enquanto reprime e bombardeia parte da sua própria população (curda). O regime turco vai perseguindo e desmantelando os meios de comunicação social que ainda não lhe tecem loas encantadas, como acaba de fazer com o jornal mais lido do país, o Zaman – invadido e saneado, os seus jornalistas despedidos e acusados de assédio sexual, artigos apagados dos arquivos, e o “novo” jornal coberto de gloriosas fotos de Erdogan e de como a Europa se verga perante o estadista.

E o pior é que neste último ponto estão certos. Nós, europeus, não queremos acolher as vagas de refugiados que batem às nossas portas. Nós, europeus, também não sabemos como resolver o problema, não sabemos como estancar essas mesmas vagas, não diremos como a América de outros tempos “Dai-me os vossos fatigados, os vossos pobres, as vossas massas ansiosas por respirar livremente” (o poema na base da estátua da Liberdade, da autoria da luso-americana Emma Lazarus). Decidimos subcontratar o trabalho duro a outrem, e para o fazer vimo-nos de repente a negociar, e ceder, perante o autocrata de um país vigiado e inseguro.

A Europa convenceu a Turquia – através de miraculosas promessas e generosos pagamentos (6 biliões de euros…) – a servir de zona-tampão para filtrar as dezenas de milhar de sírios, iraquianos ou afegãos que todos os meses chegam às margens do Mediterrâneo. Cada refugiado saído da Turquia que conseguir chegar à Grécia de forma “irregular” será reenviado à Turquia, que em troca enviará um refugiado presente no país para a Europa, já de forma “regular”, até um máximo de 72 000 pessoas (a partir daí os europeus só aceitam mais refugiados se quiserem).

O acordo é muito frágil no plano legal (para ser suave). Pressupõe que a Grécia vai processar todos os indivíduos que ali chegarem, o que será tarefa hercúlea; pressupõe também que a Turquia seja considerada “país seguro de reenvio”, algo que manifestamente não é (nem assim é reconhecida por nenhum país da UE, tirando a Grécia, que é obrigada a fazê-lo). Depois, em termos práticos, um acordo que aceita 72 000 sírios, quando há neste momento 2,7 milhões refugiados na Turquia, não lhes oferece uma perspectiva suficientemente animadora. Ou seja, os sírios (e os restantes) continuarão a arriscar a vida pelo mar; e não será necessário esperar muito para que tal se torne evidente.

Mas o pior falhanço deste acordo não é legal, nem sequer prático, mas sim moral. Demitindo-se das suas obrigações e responsabilidades, os líderes europeus estão dispostos a pagar bem, a contornar o direito internacional e, sobretudo, a satisfazer as vontades de um governante insalubre, tudo para evitarem sujar as mãos acolhendo refugiados. A Europa fundou-se sobre valores éticos profundos, de respeito pela igualdade e dignidade humanas, da democracia e do Estado de Direito. Hoje em dia, atemorizada, prefere esconder-se atrás da ilusão de uma empresa de segurança colocada à porta. Uma das coisas que aprendemos na semana passada: não são os refugiados que devemos temer. Eles fogem precisamente de terror como aquele sentido em Bruxelas.