segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Manifestação para Recuperar a Sanidade falhou

O que quer que seja que o leitor tenha ouvido sobre o declínio dos velhos e ascensão dos novos media, nos Estados Unidos a televisão continua a ser poderosíssima. Não é de estranhar, portanto, que a tv não apenas reporte os acontecimentos mas também os tenha tentado influenciar, primeiro, para também os distorcer e fabricar, depois. Hoje, estando moribunda a antigamente ubíqua CNN, o panorama audiovisual de notícias é totalmente dominado por canais de notícias parciais que, à laia de jornais desportivos portugueses, servem orgulhosamente como veículos oficiosos das ideias dos dois grandes partidos americanos. Isto enquanto programas de comédia ou sátira começam também a exercer enorme influência na consciência dos cidadãos – e logo, enorme influência política. Aproveitando-a, os criadores do “Daily Show”, talvez o mais conhecido desses programas, decidiram insurgiram-se contra o clima tóxico vivido na maniqueísta política americana que – dividida em dois campos polares, democrata e republicano – passa o tempo em amargas e básicas trocas de acusações enquanto cada partido usa todos os truques na manga para bloquear a legislação feita pelo outro lado.

Jon Stewart, apresentador do “Daily Show” e figura extremamente mediática, propôs no seu programa uma “Manifestação para Recuperar a Sanidade” (Rally to restore sanity) a ser organizada em Washington, que é simultaneamente a capital do país, palco das suas manifestações históricas (como as marchas anti-apartheid de Martin Luther King nos anos 60) e sinónimo em inglês para “bloqueio” e “corrupção”. A reunião, embora com algumas pitadas de comédia – sobretudo nos slogans pintados em cartazes – por ser iniciativa de um programa satírico, teve objetivos muito sérios, que se poderiam resumir em denunciar a irracionalidade e o extremismo no discurso político, recuperando o debate são. Deu-se a 30 de Outubro, dois dias depois do presidente Obama ter sido entrevistado no programa televisivo, e reuniu uma multidão de 250 mil pessoas. Sim, a histeria política parece ter baixado por alguns dias. Mas foi sanidade de pouca dura.

A possível candidata conservadora às próximas presidenciais americanas, Sarah Palin, publicou no seu sítio web um mapa dos EUA onde os círculos de origem de deputados democratas “a abater”, ou seja a serem derrotados nas eleições, estavam marcados com um mira de espingarda. Entre estes, a deputada liberal do Arizona Gabrielle Giffords. Há três semanas, a 8 de Janeiro, um jovem perturbado do Arizona com opiniões políticas extremistas usou a mira da sua pistola para irromper pelo supermercado onde a deputada Giffords se encontrava com eleitores e disparar sem cessar. O massacre cifrou-se em 6 mortos – entre eles uma menina de nove anos que tinha nascido no 11 de Setembro – e 14 feridos graves, entre estes a deputada que sobreviveu apesar de ter sido atingida na cabeça. Num país onde a posse de armas de fogo é vulgarizada e consagrada constitucionalmente (logo a seguir à liberdade de expressão), não há sanidade que se recupere.

sábado, 15 de janeiro de 2011

A próxima língua franca

Há apenas nove grandes línguas neste nosso mundo, se o critério for um número de falantes superior a 100 milhões de pessoas. São elas o mandarim, inglês, espanhol, hindi, árabe, bengali, russo e japonês. E também o português, claro, a quinta língua a nível mundial (outras classificações consideram-na a quarta ou a sétima, dado que o número de falantes é difícil de quantificar). Uma língua que serve como língua materna para 180 milhões de pessoas, com mais cerca de 20 milhões que a também a falam – muito mais gente que francês e alemão somados, por exemplo (obviamente, podemos ainda adicionar a outra língua oficial do Grão-Ducado, o luxemburguês, que o resultado não muda, dado que esta é uma língua considerada “em perigo de extinção” pelos especialistas). A força dos números impressionantes atingidos por este belo dialecto nascido originalmente de um desvirtuamento do latim originam algumas conclusões inevitáveis. A primeira é (pausa para expirar): bom trabalho! É algo de admirável que a língua de comunicação principal (longe sequer de ser a única) dos habitantes do Portugal do século XV, pequena migalha no mapa mundial que não continha mais de milhão e meio de habitantes, seja hoje uma das mais vibrantes, difundidas e importantes do mundo. Muita arte e engenho (mas também violência) foram certamente necessários para construir um império onde o sol não se punha.

Mas se essa dimensão invejável foi atingida, também é verdade que o crescimento da língua portuguesa parece agora esbarrar contra um “telhado de vidro”, invisível mas bem real. O português é, juntamente com o hindi, a maior língua do mundo que não é uma das (seis) línguas oficiais das Nações Unidas; nas instituições da União Europeia, a sua visibilidade é reduzida; na Europa, os media em português são dificílimos de encontrar, excepção feita ao indecoroso saudosismo da RTPi; e a rede de possibilidades de aprendizagem da língua não tem crescido em volume ou orçamento. Acresce que os nacionais portugueses (cuidado: segue-se uma perigosa generalização) não primam, muitas vezes, pelo bom tratamento dado à sua língua e muito menos pela vontade que exibem em defendê-la e divulgá-la.

Mas eis que, despertos da poeira dos séculos, novos campeões se levantam para levar mais alto o português: o país cuja economia mais cresce anualmente no mundo, Angola (cujo PIB subiu 20% em 2008), leva muitos a aprenderem a língua para poderem fazer negócios. E sobretudo o Brasil, um país em progresso acelerado a todos os níveis, jogador à escala global, criou, na maior cidade lusofalante do mundo (São Paulo), o Museu da Língua Portuguesa, que exibe até ao final deste mês uma enorme exposição sobre Pessoa. O mesmo Brasil que, através da sua pujança económica potenciada no Mercosul, consegui mesmo pôr os orgulhosos porteños, habitantes de Buenos Aires, a aprenderem mais português que inglês. A propósito: acaba de ser publicado em Inglaterra um livro que defende a teoria que os dias do inglês como língua franca mundial estão contados, e que não há ainda um substituto claro a emergir. Pode ser que a beleza da bossanova faça pelo sotaque musical do Rio o mesmo que Hollywood fez pelo californiano. Seria bem legal.

É difícil viver com neve. É pior viver sem ela



Estou a escrever estas linhas desde uma pequena aldeia nos Andes, do
lado argentino. Barreal, cujos 1900 habitantes muito espirituais
(ainda mais que o Natal a 25, a população índia celebra a Virgem Maria
a 26 de Dezembro numa festa com reminiscências das romarias
portuguesas) vivem num pequeno emaranhado de ruas em terra batida e
sem nome, serve de centro turístico a quem queira escalar as montanhas
ou simplesmente visitar as paisagens deslumbrantes dominadas pelo
Aconcágua, o mais alto pico da cordilheira (6962 m). E Barreal, tal
como toda a província circundante de San Juan, habitada por 4 milhões
de pessoas e grande produtora de vinho, obtém toda a sua água graças
aos degelos das neves que caem nos Andes, e que em alguns picos nunca
derretem totalmente - mesmo nos 35°C actuais. Mas há um problema: nos
últimos três anos, deixou de nevar nos Andes. E para o ano o cenário
vai ser o mesmo - inverno seco e ameno.

Habituados a considerar a água como um bem tão infinito e pouco
valioso como o ar, os argentinos da região vêem-se repentinamente
confrontados com a mesma terapia de choque que já se tornou quotidiano
para muitos europeus do sul, e mais ainda em locais como a Austrália:
racionamento da água, fecho de actividades de lazer, subida dos preços
do precioso líquido. Nos Andes, as alterações climáticas são
facilmente identificáveis, e se se mantiverem vão implicar a mudança
radical de vida das populações.

E se ao mesmo tempo que alguns locais do planeta se tornam mais
quentes e secos, houver outros que se tornam mais violentamente frios?
Já tive oportunidade de passar estoicamente bastantes invernos no
Luxemburgo ou em Bruxelas. Em ambos os locais, em algum momento dos
cinco dias por ano em que nevava - a neve derretendo poucos dias
depois - os mais antigos lembravam "nos anos 70 é que os invernos eram
a sério, muito frio e neve...". Pode ser um caso de memória selectiva,
estilo no-meu-tempo-é-que-era, mas acrescentemos o verão/canícula de
2003 (tão quente que provocou um surto de construção de piscinas
privadas no Luxemburgo) e admitamos que sim, que o clima tem vindo a
aquecer no Norte da Europa. Como explicar então o passado inverno e o
actual? O Grão-Ducado teve há dias direito a 50 cm de neve, a maior
quantidade desde 1950, e o inverno nem sequer tinha começado. O
termómetro passa semanas inteiras abaixo de zero, a neve nunca
derrete, as autoestradas e os aeroportos encerram deixando milhares de
viajantes desesperados. E os Andes a suspirarem por neve...

Pode ser apenas uma coincidência. Mas a Conferência Internacional das
Alterações Climáticas aventou uma hipótese arrepiante: a extinção
próxima da corrente do Golfo, que traz águas quentes desde o México
até ao Norte da Europa. Sem esta, a Inglaterra poderia entrar numa
nova era glaciar, e todos os países norte-europeus ficariam muito mais
parecidos com o Norte da Finlândia. Talvez seja melhor para o ano
fazer uma enorme armazenagem de anticongelante e sal para as estradas;
um Natal Branco é poético, mas passá-lo bloqueado num qualquer
aeroporto tem muito menos piada.

Mantenham a internet livre



Acabou agora uma semana que mostrou mais alguns sinais interessantes sobre a crescente revolta que grassa nas sociedades ocidentais contra... bem, uma enorme lista de coisas. Desemprego, perda de poder de compra, insegurança ou sentimentos mais profundos e difíceis de definir mas que, de forma ou de outra, acabam atirados (e muito justamente por vezes) para a responsabilidade de governantes (e outras, diferentes, elites). O protesto é algo de cada vez mais virulento - na verdade, por vezes começa a assemelhar-se à guerrilha urbana.

A princípio as populações começaram a desinteressar-se do processo democrático, considerando que o (mínimo de envolvimento) que significaria comparecer para votar não vale o esforço. Mas esse sinal foi ignorado e as elites políticas continuaram no seu "business as usual" assumindo, como sempre, que tal divórcio com as populações nada significava - e na verdade até agradecendo o seu alheamento, que chega a ser conveniente.

Em seguida veio o voto "de protesto". Crescente, e ainda a crescer; vários países europeus (tal como os Estados Unidos com o movimento Tea Party) vêem partidos populistas, extremistas e que se apresentam como "anti-sistema" ganhar terreno a cada eleição, captando votos e influência nas franjas do sistema político. Eles são muito visíveis no Parlamento Europeu, numa eleição que com o tempo é cada vez menos participada - por ironia, simultaneamente que a instituição adquire mais competências e poderes.

Pois bem, os próximos passos serão mais radicais. O Reino Unido assistiu agora a alguns momentos de rebelião que, na sua violência e inverosimilhança, deixam antever uma mudança profunda da sociedade actual. Uma multidão enfurecida contra mais uma medida de cortes sociais do governo deparou-se com o Rolls-Royce dourado do príncipe Carlos (e respectiva Camila) que, impávido nos seus privilégios adquiridos à nascença, e eventualmente recorrendo ao habitual magnânimo aceno imperial, procurava abrir caminho por entre aquele magote de súbditos. Só que estes, amargos, não estavam para vénias: em vez disso, partiram um vidro do carro aos gritos de "cortem-lhes as cabeças" (aos excelsos representantes da realeza). A ideia, importada de França, tem mais de dois séculos e faz pensar. Sobretudo se aliada à rebelião que a internet, sempre esta, tem vindo a proporcionar a quem está farto das velhas formas de funcionar do Estado-nação, também ele uma ideia - napoleónica - importada da França daquela época. A WikiLeaks e os seus defensores - tantos deles se podem considerar a "maioria silenciosa" provinda da sociedade civil - provam que os Estados não dominam tanto a informação como antes sempre fizeram. Também provam que isso não agrada a esses mesmos poderes: depois da tentativa de asfixiação da organização noticiosa, preparem-se para que os Estados tentem tomar de assalto a abertura, a democraticidade, a privacidade e a liberdade da rede. Vai poder ler sobre isso muito brevemente num jornal perto de si; por mim, só espero que esse assalto seja mal-sucedido.