terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O último a sair que apague a luz

O duro ano de 2011 aproxima-se do seu final mas ainda não desistiu de nos trazer más notícias. No fim de semana desapareceram dois grandes vultos: a "diva dos pés descalços" Cesária Évora levou consigo uma voz perfeita para cantar mornas, uma simplicidade desarmante e o cachecol do FC Porto com que fez tantos concertos por esse mundo fora; com o antigo presidente checo Vaclav Havel desapareceu um homem corajoso, um grande europeu, um intelectual que se sacrificou pelos seus ideais frente a um sistema totalitário e que ajudou o seu país a fazer uma transição pacífica - "de veludo", chamou-se a sua revolução tranquila - para a democracia e a prosperidade. Tanto um como outro eram grandes amigos de Portugal, Cesária pelas suas raízes, Havel por gostar do país e até ter uma casa de repouso em Olhos d'Água.

Era sobre eles que eu gostaria de ter escrito esta crónica hoje, mas infelizmente tal não é possível. Porque não é possível ignorar a enormidade do que acaba de ser dito, de forma ponderada e não no calor do momento, pelo primeiro-ministro português:

"Angola tem grandes necessidades de mão de obra portuguesa em tecnologias de informação e do conhecimento, e ainda em áreas muito relacionadas com a saúde, com a educação, com a área ambiental, com comunicações. E não só Angola: os nossos professores, querendo ser professores, podem olhar para o mercado da língua portuguesa e encontrar aí alternativas".

Quando há algumas semanas um tal de Alexandre Mestre, um "boy" que é secretário de Estado da Juventude, instou os jovens portugueses a "saírem da sua zona de conforto" (o secretário julga que os jovens portugueses têm os mesmos privilégios de que ele próprio usufruiu) e emigrarem, o espanto foi grande, mas atribuímo-lo aos devaneios de um irresponsável. Só que depois também o seu chefe directo - o ministro Miguel Relvas - foi ao parlamento para anunciar a boa nova por ele descoberta: "a emigração de jovens qualificados pode ser extremamente positiva". E neste domingo, o clímax: o primeiro ministro de Portugal encorajou os seus concidadãos a abandonar o país. A começar pelos mais qualificados, e pelas áreas mais dinâmicas da sociedade - as mesmas onde o país que governa tem mais carências. Ah, e não esquecendo os professores, esses malandros supérfluos numa sociedade tão educada como a portuguesa (os índices de escolarização de adultos estão cinco anos abaixo dos da Alemanha e três dos da Grécia). É o ovo de Colombo da redução da taxa de desemprego: dado que fazer crescer a economia e gerar emprego é difícil, transferem-se os desempregados para outro lado. Problema resolvido, e com o bónus das remessas de emigrantes para mascarar a balança de transacções - tudo enquanto se eliminam consulados e aulas de português no estrangeiro, que é para não correr riscos de criar mais zonas de conforto.

Infelizmente os portugueses, jovens ou não, qualificados ou não, nunca precisaram de quem os encorajasse a abandonar o seu país: ao longo dos séculos a miséria, a guerra colonial, a inveja, a falta de oportunidades, a falta de reconhecimento, a falta de desenvolvimento, de juízo e de vergonha com que Portugal os presenteia sempre fizeram esse trabalho muito bem. Espantoso - e histórico, certamente - é que quem o promova seja o próprio Estado, como se fosse este o primeiro a desistir do desígnio de melhorar as coisas. Ou como se os portugueses que ainda vão restando só estivessem a atrapalhar o "monstro" estatal na sua lógica de automanutenção a todo o custo, numa completa perversão da própria lógica da existência do Estado. Se é assim, tenho uma boa sugestão para slogan eleitoral na próxima campanha: "O último a sair que apague a luz".

A separação

É impossível não olhar para o que aconteceu à Europa na madrugada de sexta feira como um divórcio. Não no sentido formal do termo – os tribunais e os notários ainda não entraram em acção - mas houve, indubitavelmente, um corte, uma separação entre o Reino Unido e a Europa, e foi mais do que o passar de uma noite no sofá: foi mesmo pôr as malas à porta, e agora cada um segue o seu caminho. Seria curioso se os próprios mapas reflectissem a alteração e alargassem o canal da Mancha pelo menos para o dobro das suas dimensões habituais...

O histórico (um adjectivo que é sobreutilizado, é verdade, mas que se aplica bem neste caso) Conselho Europeu de quinta e sexta feira passadas tinha um objectivo claro e obteve um resultado concreto. O objectivo era o de salvar o euro e, em certa medida, todo o ideal europeu, porque é tudo isto que está em causa. O resultado, não necessariamente relacionado, colocou 26 países de um lado e um de outro - pois obrigou todos os "fence-sitters" a finalmente definirem-se. (Um fence-sitter, como o nome indica, é alguém que procura estar sempre colocado na fronteira entre dois campos diferentes para nunca ser obrigado a tomar decisões e opções que o possam vir a comprometer; uma apropriada descrição de uma grande parte da nossa classe política.) Na Europa, o Reino Unido sempre foi um caso surreal, com um pé dentro e outro fora da União Europeia, e ambos os pés a arrastarem-se de forma a levantarem muita areia e pó para meter na engrenagem.

Nem sempre, obviamente, foi assim. O Reino Unido é uma democracia antiquíssima e as suas atitudes políticas mudam ao longo dos tempos e consoante quem está no poder. Por muito estridentes que sejam os eurocépticos nas franjas direita e esquerda do espectro político, os ingleses - e mais ainda os escoceses ou os galeses, que desconfiam daqueles - sabem que precisam da Europa, que significa 40% de todo o seu comércio e, para dizer o mínimo, lhes empresta voz a nível mundial, mesmo sem entrar em considerações quanto ao garante de paz que significa há mais de meio século. Por tudo isto e muito mais, o pragmatismo sempre regeu as relações britânicas na Europa: a Margaret Tatcher que populisticamente gritou "quero o meu dinheiro de volta", obtendo uma redução da contribuição para o orçamento comunitário por supostamente o Reino Unido não ter agricultura, foi a mesma Tatcher que assinou o Tratado de Maastricht e, alguns anos antes aquando da adesão portuguesa, contribuiu para o alargamento do voto por maioria qualificada a um sem-número de áreas.

Os impostos, no entanto, continuam a requerer unanimidade - logo, conferem direito de veto. Um eventual imposto financeiro sobre os bancos europeus necessitará sempre do voto favorável do Reino Unido; logo, não foi apenas para salvar as obscuras transacções da City que o primeiro-ministro Cameron voltou as costas à Europa, mas também por ideologicamente sentir não ter nada a contribuir para o gigantesco projecto europeu. Seguiu aliás uma máxima bem americana - "if you can't stand the heat, get out of the kitchen".

E agora? O que nos une ainda é maior do que o que nos divide. Muitas separações acabam em reconciliação, e os tempos a seguir à reconciliação são amiúde os mais apaixonados... Ainda não foram escritos os últimos capítulos deste casamento à inglesa.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Dezembro de 2011, recordem-se

"Estamos de pé à beira do precipício. Este é o momento mais assustador da minha vida de ministro, mas também por isso é também o mais sublime. As gerações futuras julgar-nos-ão pelo que fizermos agora, ou por falharmos agora. Podemos criar os alicerces para décadas de grandeza e prosperidade - ou podemos alijar a nossa responsabilidade e contentarmo-nos com o declínio."

O homem que proferiu estas palavras chama-se Sikorski e é um estadista polaco, mas não se trata do quase mítico general que liderou o governo no exílio enquanto o seu país era ocupado pela Alemanha nazi; e o discurso grandiloquente também não foi declamado antes de uma iminente e decisiva batalha, mas sim na semana passada, em Berlim. O que o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, o país que neste momento preside à União Europeia, proferiu de forma arrepiante, verdadeiramente pungente, foi um apelo: um apelo a que evitemos o abismo. E tal passa sempre, inevitavelmente, pela Alemanha - pelo que Sikorski interpelou quem dirige a Alemanha. Olhos nos olhos, honrando a venerável tradição de "speaking truth to power", o ministro disse muito daquilo que todos nós gostaríamos de dizer. Começou por referir a desintegração sangrenta da Jugoslávia, que começou quando a sua república mais poderosa, a Sérvia, decidiu unilateralmente imprimir a sua própria moeda. Continuou citando o filósofo alemão Kant, que perorava sobre a importância moral do dinheiro, para definir que a União Europeia está fundada nos pilares da Responsabilidade e da Solidariedade.

Sikorski conclui que na base do que nos trouxe a este problema está um problema de Confiança (ou seja, de credibilidade), não se esquecendo de apontar como origem da mesma situações como a violação do Pacto de Estabilidade por parte da Alemanha e da França em 2003 - o mesmo pacto foi depois quebrado pelo menos 60 vezes por todos os países do euro (menos o Luxemburgo) nos últimos anos, tendo como consequência a gravíssima crise da dívida que hoje ameaça tantos aspectos da nossa vida. E o mais interessante de tudo são as condições que são postas aos anfitriões alemães para podermos seguir em frente. Elas parecem-me todas cruciais:

A Alemanha deve admitir que é a maior beneficiária da criação do euro, e logo a maior interessada em salvá-lo; não deve comportar-se como vítima inocente dos gastos alheios, já que foi das primeiras a quebrar as regras, e os seus bancos compraram dívida alegremente; deve saber que a crise baixou as suas próprias taxas de juro; que sofrerá muito com a implosão das economias dos seus parceiros; que ainda maior que o perigo da inflação, sempre tão temido pelos alemães, é o perigo de colapso; que "o tamanho e a História" da Alemanha atribuem-lhe uma responsabilidade especial pela manutenção da paz e democracia em todo o continente.

Esta quinta e sexta-feira, em Bruxelas, a Europa terá um Conselho Europeu antológico. "Merkozy", ou seja os líderes alemã e francês, vão procurar impor um novo tratado (o de Lisboa nem para um ano serviu), criar um "núcleo duro" sem os dez países que não usam o euro, antecipar medidas previstas para 2013 e, no fundo, procurar sobreviver. Mesmo sem confiar nestes líderes, só podemos esperar que eles engendrem algo de visionário que nos leve para o caminho certo da encruzilhada de Sikorski. Ou então... as gerações futuras falarão de Dezembro de 2011 como o tempo em que tudo correu horrivelmente mal.

E o Porto aqui tão perto

Tem o leitor vontade de desligar o mundo? Eu por vezes tenho. Bombardeado constantemente por más notícias, a crise, a dívida, o desemprego, o défice, a incerteza, as tensões, as repressões, as guerras, as crueldades, a decadência real ou percebida... Mesmo a minha irrequietude inata percebe que por vezes o melhor é descansar, ignorar jornais e internet, e funcionar em circuito fechado por uns tempos. Até que surja um daqueles raros momentos mediáticos que nos reconcilia com o Quarto Poder (a comunicação social) e parece reequilibrar os nossos valores.

Na semana passada aconteceu um desses momentos, cortesia do melhor jornal do planeta (sim, mesmo um pouco melhor que este em que lê estas linhas). Chama-se New York Times e publica, todos os domingos desde 2002 na sua edição em papel (e alguns dias antes online), uma coluna de viagens intitulada "36 horas em...", escolhendo falar dos pontos altos de uma cidade sob a forma "escapadinha de fim de semana". As cidades escolhidas costumavam ser americanas ou canadianas - a editora Taschen acaba aliás de publicar em livro uma deliciosa compilação de 744 páginas sobre estas expedições por toda a América do Norte -, mas estende-se agora a qualquer ponto do mundo, desde que este esteja "a acontecer". Era inevitável, portanto, que a escolha recaísse mais tarde ou mais cedo sobre o Porto, porque algo de especial se está a passar no velho e orgulhoso burgo.

Com uma longa história de rebeldia perante a injustiça a falar por si, de alma iminentemente liberal e carácter independentista, o Porto cansou-se de esperar por ajuda. Confrontado com mais um regime político que o ignora, exangue pela destruição do tecido industrial e empresarial da cidade e da sua região, a cidade virou-se para novas plantações que começam a dar os seus primeiros frutos: a explosão das "indústrias criativas" criou novos públicos, novos pólos de interesse e de criação de riqueza, e voltou a colocar o Porto no mapa - pelo menos no mapa do New York Times. Não menos importante que isso, a cidade está a voltar a tornar-se um lugar estimulante onde viver. Para turistas, então, está lá tudo: cultura, arquitectura, diversão, comida, calor humano e climático. Tudo com um selo genuíno que encanta o visitante apanhado desprevenido, como se nota numa das sugestões da coluna: uma visita não apenas ao mercado mas também à Manteigaria do Bolhão, que vende presunto a 9,5 euros o quilo, é encadeada com opções que mostram a nova face da cidade, como os designers de Miguel Bombarda ou a vanguarda da Casa da Música e da Fundação de Serralves. Nem sequer falta a referência ao novo Hard Club ou a novíssimos bons restaurantes literários, num texto que apesar de escrito por um americano a viver em Paris demonstra um conhecimento de causa invejável - mesmo maior que o de alguns residentes na cidade. E as 17 fotos que compõem o artigo são um deleite para os olhos...

Sem dúvida uma contribuição para o engrossar do número de visitantes da maior cidade do Noroeste da Península. Isto, claro, se eles conseguirem chegar ao Porto; para tal é necessária a persistência de encontrar um voo entre as reduzidas possibilidades disponíveis e a capacidade (e vontade) de pagar por esse voo um valor inflacionado. Nós, passageiros frequentes e natalícios, bem o sabemos.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Um ressentimento com 371 anos

"A Espanha teria ficado melhor se tivesse escolhido Portugal em vez da Catalunha", disse o senhor Peces-Barba. Logo a começar pelo seu nome (um tamboril ainda vai tendo uns penachos, mas peixes com barba é sempre um fenómeno raro), Peces-Barba é alguém de invulgar: um catedrático de filosofia do Direito, nascido em 1938 numa Madrid cercada por franquistas. Um antigo presidente das Cortes espanholas (parlamento). Um dos mentores da actual Constituição espanhola, criada com o advento da democracia. Um membro da Academia de Ciências Morais e Políticas. Um membro do PSOE, o partido de centro-esquerda que acaba este fim de semana de ser expulso do governo após governar Espanha desde 2004. E no entanto é exactamente este o homem que desatou a dizer disparates públicos anacrónicos sobre a Crise Peninsular de 1640 conducente à restauração da independência de Portugal - celebram-se para a semana 371 anos do golpe que aclamou João IV.

Segundo o argumento neocolonial de Peces-Barba, Madrid foi em 1640 colocada perante uma escolha simplista: confrontada com uma rebelião na Catalunha, que se recusou a entrar numa "união de armas" com Castela, e com um sentimento latente de revolução em Portugal, o duque de Olivares (o homem mais poderoso de Espanha, dado que o rei Filipe IV só tomaria as rédeas do poder após aquele ter caído em desgraça) decidiu atacar Barcelona, alistando à força para tal tarefa a discriminada nobreza portuguesa. Esta viu aqui a oportunidade de aclamar João de Bragança como novo rei. Só que a suposta "escolha" de Madrid não existiu: nos 28 anos seguintes, Castela nunca deixou de tentar reconquistar o rebelde Portugal através das armas, mas este venceu todas as batalhas até ao reconhecimento da sua soberania (Montijo, Linhas de Elvas, Ameixial, Castelo Rodrigo, Montes Claros...).

O problema, naturalmente, reside em interpretar leviana e anacronicamente acontecimentos históricos. Naqueles tempos as questões de Estado envolviam um punhado de elites (o golpe de Estado que matou Miguel de Vasconcelos não terá involvido mais de 20 conspiradores), mas as suas consequências eram magnas: quantas vezes o mapa do mundo não foi desenhado e redesenhado, e o destino de milhares alterado, por meras coincidências ou acontecimentos fortuitos. Matérias assim merecem pinças, ou inevitavelmente farão disparar reacções pavlovianas de um nacionalismo deslocado no tempo, que apenas se exacerba por este tipo de polémicas estéreis.

Economicamente, Portugal perdeu muito durante aqueles 60 anos de "união pessoal" com a coroa espanhola. Foi-se o comércio no Extremo Oriente, o rico Ceilão, as possessões em Angola e Brasil (estas mais tarde recuperadas), a frota de naus afundada com a Invencível Armada, o know-how e a riqueza judias esmigalhadas pela Inquisição, e sobretudo uma certa grandeza mundial que o pequeno país não mais realcançou. No entanto, hoje, em 2011, relembrar o que dividia os nossos antepassados é o caminho mais curto para a ruína presente. No rápido mundo em que vivemos, com fronteiras desenhadas em mapas numa cor progressivamente mais esbatida, escondermo-nos no egoísmo do nosso quintal nacional condena-nos à irrelevância. Conheçamos o nosso passado, mas não percamos tempo em construir um futuro melhor que ele.

V de Vendetta

Ultimamente tenho visto muitas pessoas estranhamente semelhantes. As suas características fisiológicas são algo fora do comum: pele muito pálida, só com um toque rosado nas bochechas; sobrancelhas pretas muito marcadas; os olhos são apenas dois buracos, mas são delineados num formato que faz lembrar um peixe, símbolo antiquíssimo e muito forte... a boca, essa, está sublinhada com um bigode fino e longo e rematada por uma barba ainda mais fina e vertical. Uma boca para sempre congelada num sorriso enigmático, perturbador, satírico.

A máscara de V arrisca-se a entrar de rompante na iconografia da História. As suas feições são as de Guy Fawkes, um católico que em 1605 quis revoltar-se contra a sua religião oprimida na Inglaterra protestante, e planeou fazer explodir o mais antigo parlamento do mundo, em Westminster. Vendo nele não um terrorista mas um corajoso combatente pela liberdade, os autores da banda desenhada "V for Vendetta" inspiraram-se em Fawkes para o seu herói, V.

V combate sozinho, de sorriso imperturbável, um regime totalitário imaginado para um futuro próximo. Hollywood, sempre à procura de boas histórias que possam ser desperdiçadas num qualquer filme pronto-a-comer, mostrou V ao mundo no péssimo filme de 2006 com o mesmo nome da banda desenhada - mas o pastiche teve ainda assim um ponto alto, o triunfante final, que culmina numa multidão de sósias de V deixando cair a máscara para se revelarem pessoas normais, anónimas, como eu ou o leitor.

A ironia, claro, está nos pormenores: a máscara ubíqua do movimento que varre o planeta faz parte do merchandising do filme e é produzida numa fábrica chinesa por uma multinacional, a Time Warner, que assim encontrou uma original forma de lucrar com um capitalismo em crise. Mas focarmo-nos no acessório é esquecermos o essencial: V está nos pontos focais do planeta. Foi imaginado em Londres, iniciou o movimento "Occupy" em Kuala Lumpur, Malásia, atravessou vários oceanos até Nova York, espalhou-se pelos Estados Unidos, atravessou o Atlântico e voltou a varrer a Europa. No dia 15 de Outubro, o movimento contou as suas manifestações: 951 cidades de 82 países, entre as quais nove cidades portuguesas (e 20 mil pessoas no Porto, mais 20 mil em Lisboa). Presente em praticamente todos os países da Europa, e mesmo em todos os da Europa Ocidental (menos no Luxemburgo, onde o tempo passa de forma diferente e é importante não criar ondas para melhor seguir a direcção da corrente), o Occupy, ou os Indignados, representam a inevitável resposta das populações aos tempos economicamente injustos em que vivemos.

E contudo, não é de uma revolução que se trata. Isto é um carnaval: a época onde as regras da sociedade se subvertiam, onde nobres e bispos se expunham à sátira da plebe, onde os costumes se castigavam rindo, como em Gil Vicente. Hoje, é V quem se ri, e V somos todos nós - ou antes, quase todos. Somos 99%.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O homem que correu sozinho e chegou em segundo

O senhor German Antonio Londoño Roldan é colombiano e acaba de entrar na História. Não, não é ele o personagem principal do conto "Um senhor muito velho com umas asas enormes", do também colombiano Gabriel Garcia Marquez; Roldan é um quarentão calvo, e não voa pelos seus próprios meios. Mas este político soube trazer-nos para a vida real um pouco do "realismo mágico" que povoa os livros de Marquez, prémio Nobel da Literatura em 1982: Roldan era o único candidato a governar a cidade de Bello, no noroeste da Colômbia. Era o único... mas perdeu as eleições. Quem ganhou, com maioria absoluta, foi o voto em branco.

A história conta-se em algumas pinceladas: Bello é uma cidade da Colômbia, um país complexo onde a política se subordina amiúde ao narcotráfico e às organizações paramilitares, mas também um país que experimenta um ressurgimento económico e social simplesmente notável. Na cidade de 400 000 habitantes e um historial de corrupção e clientelismo, as eleições autárquicas pareciam ir ser disputadas por quatro candidatos: a favorita, Luz Ochoa, corria contra o candidato do partido conservador, Roldan, e dois outros que acabaram por desistir a favor deste. Mas a senhora Ochoa, à frente de um movimento cívico de independentes, teve problemas com as assinaturas necessárias à candidatura - alguém se queixou, e o tribunal proibiu a sua campanha. Roldan ficou a correr sozinho e começou a preparar o discurso de vitória, enquanto se aconselhava com o seu padrinho político (um antigo alcalde de Bello), visitando-o por dez vezes... na prisão onde ele se encontra detido.

O guião do filme era até aqui previsível, mas a maré começou a mudar. Luz Ochoa persistiu, começando a fazer campanha pelo voto em branco, acompanhada de várias associações cívicas e pequenos partidos. A cidade, tradicionalmente apática e conservadora, começou a discutir o seu próprio destino. E pouco a pouco, um livro de outro prémio Nobel da Literatura, o português Saramago, entrou na lista dos best sellers em Bello. O livro chama-se "Ensaio sobre a Lucidez", e ao ver tantas pessoas a lê-lo, um jornalista da capital comentou: "alguma coisa se vai passar aqui...".

E passou-se: provavelmente pela primeira vez na história da democracia, um candidato único perdeu as eleições. A lei colombiana obriga a que as mesmas sejam repetidas, mas agora sem os candidatos da primeira edição - Roldan, o nosso realista mágico, estará impedido de participar... mas Luz Ochoa, a sua adversária, vai poder fazê-lo. Saramago, que não era um homem muito democrático mas cuja lucidez era inegável, avisava: "ao político, a abstenção não diz nada. Mas o voto em branco provoca medo, porque define algo que não se pode condensar numa frase. O eleitor está a dizer: isto não me agrada".

A mim agrada-me. Vivemos tempos de insurgência contra as velhas e erradas formas de fazer política e nos governarmos; revoltarmo-nos contra as falsas escolhas que nos são dadas votando em branco é a forma mais cívica de protesto. Uma verdadeira bofetada de luva. Branca, naturalmente.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Caminhos alternativos

No momento em que escrevo estas linhas, a Argentina celebra a reeleição de uma mulher para o mais alto cargo daquele (magnífico) país, o de presidente. Cristina Kirchner obteve 54 por cento dos votos, enquanto o segundo mais votado não passou dos 17 por cento, na maior diferença ali registada em democracia.

A vitória de Cristina (como a senhora Kirchner é conhecida pelos argentinos) é uma daquelas histórias que deveriam ser bem conhecida por todo o mundo – e sobretudo por algumas zonas da Europa a braços com dívidas, crises económicas, austeridade e recessão. Porque era assim que a Argentina se encontrava em 1998, e foi por isso que o presidente da altura, Fernando de la Rúa, seguiu diligentemente o pacote de instruções draconianas do FMI como condição para milhões de dólares de empréstimos: subida de impostos para equilibrar o défice, cortes em áreas vitais da despesa pública, redução de salários, eliminação da concertação social, disparo do desemprego (até aos 16%). On connaît la chanson.

E também conhecemos as consequências. O PIB da Argentina decresceu a partir de 1999 e até 2002, atingindo o ponto no Natal de 2001 – dias de corrida aos bancos, consequente proibição dos levantamentos, e motins mortíferos pelas ruas. Seguiram-se dois presidentes interinos até à eleição de Nestor Kirchner (o falecido marido de Cristina) em 2003. Por essa altura já o peso argentino tinha sido desvalorizado, e Kirchner desafiou o FMI e o mundo declarando que não ia pagar a sua dívida externa nas condições que lhe estavam a ser postas (pagou-a, de uma assentada, em 2005). No fundo, a Argentina declarou-se desinteressada em agradar aos mercados internacionais, aos ratings e ao investimento estrangeiro, e o que obteve em troca foi má imprensa: nos últimos dez anos, o país como que desapareceu das notícias e quando muito conseguimos ler algo sobre a sua alta inflação ou o suposto populismo do casal presidencial. E no entanto... em dez anos, de 2002 a 2011, a economia argentina quase duplicou de tamanho, numa das melhores performances do mundo. Em 2005 já tinha recuperado da recessão, em 2007 tinha atingido o seu nível natural e, em 2011, vai crescer 8% (a previsão é do... FMI). O desemprego desceu para metade, tal como a desigualdade de rendimentos. A taxa de pobreza desceu dois terços. A mortalidade infantil também caiu a pique. Tudo em dez anos, repita-se.


O “milagre argentino” – que ainda está a meio, e que ainda não provou ser sustentável a longo prazo – deve-se em grande parte à aposta num leque muito reduzido de mercadorias (sobretudo a soja, que os argentinos não consomem e só exportam, e a carne) e mercados (essencialmente a China e o Brasil). Não é fácil reproduzi-lo. Mas trata-se de um estudo de caso que é essencial fazer, dado que encerra lições vitais para sairmos do momento económico em que vivemos – a própria presidente Cristina, em visita a Espanha no ano passado, resumiu essas lições da seguinte forma: “façam tudo ao contrário do que vos diz o FMI”.

Tudo também não, que há muito desperdício público a combater. Mas não é verdade que o “pensamento único” seja benéfico, não é verdade que o “consenso de Washington”, forjado pela escola de Chicago e a sua obsessão pelo défice, e que nos querem vender a todo o momento, seja o único caminho a seguir. Provavelmente, não é sequer o melhor caminho.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A choldra de Eça

O Estado português acaba, no momento em que escrevo estas linhas, de apresentar o seu orçamento para o ano da graça de 2012. É um documento fascinante, pois representa, até certo ponto, uma confissão de falhanço. Falhanço do Estado português como projecto e como essência de algo mais vasto. É também, naturalmente, uma leitura de terror, prevendo uma contracção da economia portuguesa de 2,8% em 2012, no que será a pior performance dos anos da democracia (partindo do princípio de que Portugal ainda será uma democracia em 2012, claro), só comparável ao "ano da brasa" de 1975; conjugado com a recessão de 2011 ("apenas" -1,9% do PIB), o país como um todo vai perder quase 5% da sua riqueza em apenas dois anos, sensivelmente a mesma riqueza que foi penosamente criada ao longo dos anteriores sete (a partir de 2002).

Ainda não está chocado com estes números a grosso? Bem, o documento do governo prevê também que o desemprego atinja 13,4% da população activa. Trata-se tão-somente da maior percentagem desde a ditadura (quando grande parte dos portugueses perdia a vida guerreando em África e outra parte tinha de emigrar clandestinamente para fugir à miséria). Vai permitir a Portugal ultrapassar a Irlanda e a Eslováquia e tornar-se a segunda economia ocidental com mais desempregados (apenas atrás da Espanha). E claro, os valores da emigração - desta feita jovem e qualificada - não páram de acelerar.


Os impostos aumentam vertiginosamente, o investimento público cai a pique, os salários são cortados, os preços dos bens essenciais (e dos outros) sobem. O Estado central concentrará uma percentagem ainda maior do orçamento, mas ainda assim Lisboa é a região que mais dinheiro deve (bem mais que a Madeira, em segundo).

Tudo isto em nome do mantra neoclássico do "combate ao défice". O défice tem pais e mães, e eles são fáceis de identificar: a clique do Terreiro do Paço, aquela que vive de um Estado central que emprega 11% dos portugueses, esmagadoramente concentrado na burocrática capital; a malta que gravita entre governo, empresas públicas, e empresas privadas à sombra de dinheiros públicos, que arranja emprego por conhecimentos e passa uma vida a amamentar-se na torneira do Estado, até que se reforma... e continua a fazê-lo. O pântano dos institutos públicos, das fundações, das parcerias público-privadas, organismos que em comum têm o estarem baseados em Lisboa e beneficiarem a capital utilizando os impostos de todos. São os mesmos que fazem negócios escuros na Expo, no Centro Cultural de Belém, num novo e inútil aeroporto a ser construído em terrenos pertencentes a políticos ou numa linha de TGV que duplica uma autoestrada vazia para que um lisboeta possa ir passear a Madrid, ou ainda num metropolitano em que cada nova estação custa tanto como uma rede completa noutra cidade qualquer. São eles os implicados no processo Face Oculta e num banco privado, o BPN, salvo com dinheiro dos seus impostos para que alguns amigalhaços não perdessem os seus investimentos de risco. George Orwell satirizou-os cruelmente em "O Triunfo dos Porcos". O grande Eça de Queiroz era mais certeiro e mais prosaico - chamava-lhe "a choldra".

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Menos é mais


Um tipo de terrível mau génio que nunca acabou a faculdade, era um controlador obsessivo e admitiu não ter passado muito tempo com os filhos não parece alguém indicado para fazer o mundo chorar o seu desaparecimento, mas o que Steve Jobs atingiu durante a sua vida foi de tal forma significativo que as loas tecidas não soam exageradas. Aos comandos da Apple e da Pixar, Jobs alterou profundamente – quase sempre para melhor – o curso de pelo menos seis indústrias distintas (computadores, música, telefones móveis, tablets, filmes de animação e edição). E contribuiu para fazer avançar outras, como a fotografia e a distribuição de conteúdos.

Estou muito longe de poder ser considerado um fã acéfalo da Apple – repelem-me a arquitectura fechada dos seus sistemas, o estatuto de “mania” que adquiriu, a obsolescência planeada, as cores ridículas ou os preços altíssimos dos seus produtos. Mas isso são amendoins. A melhor prova da importância atingida pelo trabalho e pela visão daquele homem está refletida nos incontáveis testemunhos que repetiram invariavelmente: “... mudou a minha vida”. O objetivo a que se propunha Jobs era verdadeiramente megalómano – “a minha ideia é fazer uma pequena mossa no universo” –, mas é seguro dizer que a mossa é bem visível e a reparação do bate-chapas vai ficar cara.

Thoreau escreveu “Simplifica. Simplifica.” E o discípulo naturalista que há em mim é forçado a admirar que esta pequena revolução que Jobs, entre outros, liderava (e que ainda está apenas no início...) deve tudo ao conceito de simplicidade. A obsessão por eliminar tudo o que era supérfluo, complicado, bizantino ou simplesmente feio libertou-nos e devolveu-nos, a nós simples mortais, o luxo de nos concentrarmos naquilo que sabemos fazer melhor (seja lá isso o que for), sem perder tempo a reinstalar o sistema operativo ou devorar um manual de mil páginas. O iPad nem sequer tem manual, como se de uma simples caixa de pincéis se tratasse. Jobs conhecia certamente o pensamento de Thoreau, e este estaria orgulhoso.

E ainda é só o começo. Um dia antes da morte do seu guru, a empresa Apple lançou mais uma actualização do seu “produto vaca leiteira”, o iPhone, agora em versão 4S. Foi a primeira apresentação de um produto sem a sombra tutelar de Jobs (que em Junho tinha saído da sua baixa médica para vir apresentar o iPad2) e a opinião quase unânime é a de uma certa desilusão. Mas este aparelho tem uma pequena novidade que representa mais um prego no caixão de uma outra indústria: a novidade é um sensor de imagem dedicado para as fotografias (que permite agilizar a velocidade de obturador e o autofoco), a indústria é a das máquinas digitais compactas, que praticamente deixaram já de fazer sentido – espremidas entre telefones com estas capacidades e reflex cada vez mais potentes e baratas – e vão desaparecer em poucos anos. Mas isso será assunto para outra crónica.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

As nuvens adensam-se


"Deito-me a sonhar com a próxima recessão global, aquela onde milhões de pessoas perderão os seus empregos e as suas casas. Aconselho toda a gente a proteger os seus activos, porque eu penso que as poupanças de muita gente desvanecer-se-ão em a 12 meses. Os governos não vão poder salvar-nos, e as grandes instituições estão a vender os seus euros porque esta moeda vai-se afundar". Quem fala assim não é gago, sobretudo se o fizer na BBC e for apresentado como "um dos deles" (ou seja, um dos donos do mundo): mas Alessio Rastani é um corretor da bolsa menor, um zé-ninguém financeiro que surpreendeu e dividiu o mundo com os seus 3 minutos e meio de fama, na semana passada. Rastani, com o cabelo cheio de gel e o seu ar ligeiramente vampiresco, acertou em cheio nos nossos nervos doridos e tornou-se imediatamente uma estrela de jornais e YouTube, sobretudo após ter lançado em desafio: "É a Goldman Sachs [banco de investimento americano] que governa o mundo. Não são os governos".

O homem que saltou para o estrelato ao dizer publicamente, com ar cândido e desassombrado, o que muitos pensam começou rapidamente a ser desacreditado por todo o tipo de teorias conspiratórias e cada um de nós pode comprar a sua favorita - desde tratar-se simplesmente de um humorista satírico até à possibilidade de estar a soldo de um grupo poderosíssimo que aposta precisamente no desfecho contrário ao preconizado por Rastani, que servirá assim para o desacreditar... Como nestes casos a regra é que a explicação mais simples é também a mais provável, prefiro pensar que um tipo anónimo decidiu aproveitar ao máximo a sua oportunidade de aparecer na tv e ficar conhecido na praça, misturando cenários catastrofistas com uma dose de iconoclastia. E também é legítimo dar voz às "frinchas" do mercado, porque em todas as situações existem sempre aqueles que jogam contra a corrente por mais forte que ela esteja - e por vezes são estes "salmões" quem tem mais razão. Mas tudo isso é até secundário, porque o relevante é que se Alessio Rastani consegue jogar com os nossos medos colectivos, é porque eles se podem mesmo tornar realidade, numa espécie de profecia que se auto-realiza.

Rastani é aliás um cordeirinho comparado com algumas vozes preocupadas e preocupantes no mundo financeiro. Attila Szalay-Berzeviczy, um húngaro de nome já de si assustador, antigo presidente da Bolsa do seu país, prevê "uma bancarrota grega que vai ter o efeito de um terramoto de magnitude 10... o país vai deixar de pagar salários ou pensões, as caixas Multibanco vão esvaziar-se em questão de minutos... depois segue-se o efeito dominó para outros países... o mesmo cenário, o desmembramento da zona euro e da Europa em questão de dias... em outras palavras, bem-vindos ao Apocalipse".

O preço do ouro não pára de subir. O mercado da arte parece imune à recessão. Os líderes mundiais correm em círculos como galinhas sem cabeça. A Goldman Sachs anunciou os seus melhores resultados operacionais em muitos anos. As nuvens adensam-se.

Quero pagar mais impostos

Warren E. Buffett é um homem relativamente pouco conhecido tratando-se de alguém excepcional. Este investidor americano trabalha há mais de 60 anos (tem agora 81) e não pensa reformar-se; é habitualmente apresentado como “o sábio” ou “o oráculo de Omaha” (onde vive) e uma das poucas vozes que fala sobre economia que é admirada de forma quase unânime; para além disso, há o pequeno pormenor de ser o terceiro homem mais rico do planeta, e isso impressiona em qualquer currículo. Por tudo isto, Buffett era um candidato improvável a pôr o dedo na ferida pustulenta que é a desigualdade que criámos para as nossas sociedades, mas foi exactamente isso que ele fez ao escrever para o New York Times.

O seu artigo de opinião (intitulado “Parem de mimar os super-ricos”) é tão arrasador que deveria ser ensinado nas aulas introdutórias aos cursos de economia ou ciência política. Buffett escreve sobre matemática tão simples quão chocante: ele paga mais de 5 milhões de euros de impostos, mas isso significa apenas 17,4% do seu rendimento tributável. O seu secretário pessoal, que lhe marca as reuniões e lhe compra o café preferido, paga mais impostos, tal como os seus subordinados no escritório o fazem – alguns pagam 41% do ordenado. Nenhum dos seus amigos no seu círculo de “super-ricos” paga mais de 21,5% do seus rendimentos ao orçamento de Estado. Coincidencialmente ou talvez não, 2010 foi o primeiro ano em que as 400 pessoas mais ricas dos Estados Unidos detinham mais dinheiro que a metade mais pobre da população (150 milhões de pessoas); o rendimento daqueles 400 quadruplicou em 12 anos – e a taxa de imposto que pagam foi cortada para metade... 

Sabemos que qualquer pessoa que viva do seu próprio trabalho paga, pelo menos no mundo ocidental, uma enorme percentagem dos seus rendimentos. Em compensação, quem faz investimentos especulativos, detendo acções de companhias por menos de 10 minutos, é taxado a – no máximo – 15% das suas mais-valias. Quem gere investimentos como trabalho quotidiano pode declarar o seu salário como “ganhos de capital” (taxados a 15%, ou menos) e não ganhos de trabalho. Também é possível muitas vezes classificar os rendimentos – recorrentes e derivados do labor diário – como “interesse manifesto e antigo” , taxado... a 15%.

Não podemos ter pejo (como o artigo também não tem) em apontar os culpados para a queda histórica nos impostos devidos sobre os ganhos de capital ao longo dos anos: os políticos que adoram, na maior parte das vezes por interesse próprio, proteger a elite milionária em detrimento do grosso da população. Não se trata aqui de luta de classes, mas tão-somente de uma coligação desviante que permite a alguns indivíduos extraordinariamente bem colocados fugirem aos sacrifícios pedidos à restante população.

Buffett pediu para pagar mais impostos de forma a salvar a economia em que ele próprio floresce; duas semanas depois, foram vários milionários franceses e alemães a juntarem-se ao mesmo pedido. Feita a publicidade, eles poderão voltar a dormir descansados – a mira da “austeridade” está dirigida a outros alvos.

O brinde que melhorou o mundo

Os portugueses não brindam. Sim claro, é para nós um reflexo espontâneo levantar os copos e lançar um "à nossa!" sempre que se celebra uma ocasião especial, seja um aniversário ou um reencontro com um amigo a quem não vemos há meses. Mas em geral, no dia a dia, antes começar uma refeição de filetes de pescada com salada russa, não ocorre a ninguém em Portugal bater com o copo de tinto na cerveja do seu colega de escritório, no que é uma particularidade cultural do país — quase toda a restante Europa (sobretudo a Central e Oriental) não se atreve a levar uma bebida alcoólica aos lábios sem antes proferir um sonoro "Prost" ou uma variação de "na zdravi!". E no entanto, foi um brinde bem português a mudar o mundo, despoletando à sua maneira uma tempestade tal como o proverbial bater de asas de uma borboleta o pode fazer.

Dois estudantes em Coimbra bebem uns copos juntos. À terceira rodada decidem brindar: fazem tilintar os copos de vinho e exclamam: "à Liberdade!". O tema não é casual, porque o ano é 1961 e Portugal está manietado no formol do Estado Novo. Este, alheio aos ventos que sopram inexoravelmente adversos, desligou o país de uma Europa que se desenvolve a velocidade fulgurante e tornou o país na última potência colonial existente - um colonizador que está prestes a involver-se numa guerra terrível e sem sentido para manter essas mesmas "possessões". São os anos de chumbo do regime. Os dois jovens são identificados pela PIDE e terminam atrás das grades — e a história corre jornais de todo o planeta, envergonhando mais uma vez um país "orgulhosamente só" e onde o encontro de duas pessoas podia ser considerado uma manifestação.

Em Londres, um advogado lê a notícia durante a sua viagem de comboio. E revolta-se. Não apenas ao ponto de vociferar sozinho ou comentar o caso, como curiosidade, à mesa do café; este leitor ocasional decide ripostar. Escreve uma carta ao director do jornal Observer e intitula-a "Os Prisioneiros Esquecidos". No artigo, incita todos os leitores a que escrevam ao regime de Lisboa para que este liberte os estudantes. A resposta é encorajante: aqui está uma arma para o bem, um pequeno escudo de defesa para todos os indefesos contra os seus governos. Entusiasmado, Benenson, o advogado, precisa de uma organização que coordene estes esforços de pressão pública, pelo que se reúne no Luxemburgo com mais seis membros originais, e é no Grão-Ducado que nasce, em Julho de 1961, a Amnistia Internacional.

50 anos volvidos, é incauto procurar quantificar o impacto que a AI provoca no mundo em que vivemos, mas é seguro afirmar que a organização de direitos humanos já salvou vidas, libertou prisioneiros de consciência e dissuadiu, pela sua pressão e visibilidade, muitos crimes de serem cometidos. E mesmo entre variadas controvérsias políticas e financeiras recentes, o prestígio desta gigante com mais de 3 milhões de membros obriga-nos a considerá-la como uma força para o progresso da espécie humana. Nada mal como consequência de um tão utópico quanto jovial brinde à liberdade.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Onde estavas no 11 de Setembro?

Dez anos passaram sobre o pior ataque terrorista da História (naturalmente, este medonho título depende da distinção entre "acto terrorista" e "acção de guerra", já que no último caso entram momentos ainda mais negros, como Estalinegrado ou Hiroxima). 2984 pessoas perderam a vida em 100 minutos, só na queda das Torres Gémeas de Nova York, não contando com outros aviões que em princípio se despenharam sobre o Pentágono e num descampado da Pensilvânia. O acto foi tão inesperado, tão tremendo e inenarravelmente cruel, que os 150 000 seres humanos que perderam a vida durante a subsequente e iníqua, interesseira e interminável Guerra do Iraque quase parecem um dano colateral dos primeiros.

Dez anos não foram suficientes para esbater a memória. Todos sabemos o que fazíamos naquele dia quente de 2001, cada um de nós se lembra de como tomou conhecimento, pela tv, da tremenda nuvem de pó e fumo. Alguns de nós viram em directo, incrédulos, o segundo avião explodir contra a segunda torre. A mim aconteceu-me num restaurante português do Luxemburgo, durante uma hora de almoço que de repente se prolongou para lá do que seria admissível. Ao fim do dia, saí do emprego, pálido e abalado, e fui... comprar mobília — uma vã tentativa de aconchegar a casa, transformando-a em castelo inexpugnável; pois sem aviso o mundo tinha-se transformado num local perigoso. É essa a natureza daquela data de 11 de Setembro que não precisa de ano: ninguém sabia o que ia acontecer a partir dali, mas todos tivemos a percepção de que nada seria como antes. Em uma manhã, avançámos (ou retrocedemos?) várias décadas.

Dez anos não foram suficientes para mudar as recordações daqueles dias excepcionais que se seguiram. Em Nova York, o centro do mundo, eram os dias dos telefones que não funcionavam, do espaço aéreo fechado, da cidade sitiada, do cheiro nauseabundo a queimado, dos infindáveis camiões a remover entulho, dos ratos desalojados de esgotos, da corrida às lojas para comprar coletes à prova de bala e pára-quedas, só para prevenir. Dos funerais das vítimas, um após outro após outro. Os dias em que, no planeta, nenhuma conversa ou notícias poderia passar sem se referir à tragédia.

Dez anos não foram suficientes para encerrar o capítulo e fechar o livro. O arrepiante memorial inaugurado neste domingo, com Obama e Bush lado a lado e duas enormes fontes no local onde antes estavam as bases dos gigantescos edifícios, é um passo para a normalização; mais de um familiar declarou "agora que vi o seu nome aqui, em relevo, tudo se tornou mais real... e ajuda-me a seguir com a minha vida". Mas a preocupação em emprestar um tom patrioteiro e exaltante a todos os discursos soou a falso. "Os apátridas quiseram vergar-nos e só nos fizeram mais fortes". É bonito de ouvir, mas não é verdade; todos, inclusive os americanos, estamos mais inseguros que há dez anos. As feridas ainda estão por sarar — e a guerra de civilizações continua.

Superliga Europeia

O filósofo Albert Camus elogiava o futebol chamando-lhe "a inteligência em movimento". Camus, que tinha sido guarda-redes na sua juventude passada na Argélia, guardava o belo jogo em tão alta estima que mais tarde, reconhecendo-lhe o valor sociológico, dedicou-lhe também uma das suas citações mais famosas: "tudo o que eu sei sobre a moral e os deveres dos homens, devo-o ao futebol".

Haveria certamente uma dose de ironia nas palavras de Camus. Mas este desporto, o único verdadeiramente global, encerra outras qualidades e a mais extraordinária é a capacidade de mimetizar a realidade. Dito de outra forma, podem estabelecer-se paralelismos futebolísticos com as mais diferentes disciplinas. Por exemplo, o mercado único europeu nasceu devido à crescente incapacidade dos mercados nacionais fragmentados em permitir a melhor prosperidade das suas populações. Eliminando fronteiras e barreiras, os 27 compartimentos estanques nacionais passaram a um só, com muito maior potencial (e este é um processo ainda longe de terminado, mas isso ficará para outra crónica).

O futebol europeu também caminha inexoravelmente para uma forma de campeonato europeu que substitua, para os grandes clubes que nele participarem, as cada vez menos competitivas ligas nacionais. Nestas, o fosso entre os dois ou três verdadeiros contendores e os restantes é agora enorme, e não pára de aumentar: só na semana passada, em Inglaterra, as duas equipas de Manchester (actualmente as mais ricas) esmagaram por 8-2 e 5-1 as equipas que terminaram em quarto e quinto na última época, Arsenal e Tottenham. E isto é numa liga onde os direitos televisivos são negociados em conjunto e distribuídos de forma equitativa; onde não são, em Espanha, duas equipas gigantes passam o ano à espera de jogar uma contra a outra. Barcelona e Real Madrid abocanham 75% das receitas do futebol em Espanha; os dois juntos só tiveram cinco derrotas em 130 jogos; e o fosso do segundo para o terceiro, o Valencia, foi de 21 pontos... a mesma distância entre primeiro e segundo em Portugal, com o FC Porto a terminar um campeonato quase só com vitórias e 36 pontos à frente do terceiro lugar, o Sporting. Em Itália também parece só haver dois candidatos crónicos ao título (Inter e Milan); em França e na Alemanha, a competitividade no topo da tabela só parece maior quando Lyon e Bayern Munique, respectivamente, se distraem e têm um ano mau.
As águas agitam-se. O presidente do Sevilha, furioso, acaba de chamar à liga espanhola "a maior porcaria da Europa e talvez do mundo". O treinador do Arsenal e o presidente do Real Madrid já vieram propor uma verdadeira superliga europeia que substitua, em fins de semana consecutivos, a Liga dos Campeões. Eles sabem que a prosperidade do desporto futebol - que, sem o dinheiro dos oligarcas, incorre em défices crónicos - depende da incerteza dos resultados. O mesmo que já descobriram, a seu custo, os gestores da F1 e da NBA, que perderam milhões de seguidores sempre que foram dominados consistentemente por uma ou duas equipas.

Se quiserem lutar o quanto antes por um lugar entre a elite, FC Porto, Benfica e Sporting devem capacitar-se que Superliga Europeia não demorará mais de alguns anos. E que os lugares para Portugal não estão reservados de antemão.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Talassoterapia

O corpo é apenas a jaula do espírito, mas é uma jaula que exige manutenção cuidada devido a todos os maus tratos que lhe damos ao longo do ano. E este último ano, sabemo-lo todos, tem sido duro. Às pressões e solicitações crescentes da vida quotidiana adiciona-se um enquadramento societal cada vez mais exigente e complexo – dito de outra forma: o mundo em que vivemos não está fácil. O nosso modo de vida – “nosso” dos portugueses, nosso dos europeus, dos ocidentais, dos humanos – está ameaçado por forças tectónicas e divergentes. Seja por trabalharmos pouco ou por trabalharmos demasiado, por consumirmos de menos ou demais, por sabermos pouco ou mal, por sermos demasiados ou por não sermos em número suficiente; de uma forma ou de outra se vai criando uma nova normalidade no nosso bem-estar que é certamente diferente, provavelmente pior que aquela a que estávamos habituados. Na verdade, talvez nunca como hoje a própria noção de “progresso”, em que as nossas vidas tenderiam sempre a melhorar à medida que fôssemos caminhando para velhos, e em que os nossos filhos teriam possibilidades que nós não tínhamos tido, esteja tão ameaçada. E a revolta contra este estado de coisas, sejam os défices privados pagos pelo público, a robotização do emprego (quando ele existe), o declínio do poder de compra, o fim do euro ou a deterioração do ambiente é real. E até está na rua. Por vezes mistura-se com preocupações etéreas e no entanto ainda mais graves, como atentados terroristas na Noruega, terramotos e tsunamis nucleares no Japão, ou três guerras (Iraque, Afeganistão, Líbia) em que estamos envolvidos mais directamente. É. Está a ser um ano difícil.

A solução? O mar. “O mar?”, perguntará o leitor incrédulo, parafraseando Paulo Portas ao tomar posse em plenos Jerónimos na sua primeira encarnação como ministro da Defesa e do Mar. Sim, o gigante azul que é a fonte de vida neste
planeta.

A talassoterapia (vinda da palavra grega para mar, thalassa) é uma ciência inexacta, cujos efeitos sobre algumas maleitas são dúbios; não é o caso no entanto dos efeitos benéficos na pele, que são visíveis e imediatos, o mesmo sendo válido para problemas respiratórios ganhos após meses de poluição, fuligem e frio em climas agrestes. Alegadamente, a terapia com água retirada do mar também regenera ossos, pulmões, coração (físico, não metafórico), nervos, sistema digestivo, glândulas, sangue...

O que nos interessa aqui são os benefícios sobre o espírito. Proponho-lhe uma experiência: para ela vai precisar de um mar – qualquer mar, mesmo a cinzenta versão da costa belga, mas alguns são melhores que outros. O ideal para o caso é o mesmo o verdadeiro: o mar oceano, o Atlântico, aquele que nos moldou a História e banha a ocidental praia lusitana (a versão acalmada da costa sul do Algarve já não serve tão bem), o mar em todo o seu esplendor agreste, com altas ondas e muito frio. Ganhe coragem e entre; nade, mergulhe, salte nas ondas. Submerja-se. Ao sair de volta à toalha, estará revigorado, rejuvenescido, esquecido de papéis e contas, pronto para mais um ano de preocupações. Energético e feliz. Ah, se ainda não for suficiente, repita a dose q.b. E boas férias.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Sob escuta

O joelho do princípezinho estava em mau estado. O príncipe William tinha um problema no tendão de Aquiles, e estas “importantes” notícias (nada melhor que umas aspas para compor a ironia) apareceram chapadas na primeira página do News of the World, o pasquim especializado em “furos” sobre alterações no peso ou amantes (ou alterações no peso dos amantes) das celebridades da TV – e talvez por isso mesmo o jornal com maior circulação ao domingo, uns simpáticos sete milhões de pessoas. Pequeno senão: a bombástica notícia tinha sido obtida à custa de piratear o principesco telemóvel, e a rainha de Inglaterra queixou-se à polícia.

Isto passou-se em 2005. A polícia limitou-se então a prender dois jornalistas do tablóide e abafou assim o que toda a gente estrategicamente colocada no meio – jornalístico, político ou da justiça – sabia perfeitamente: havia escutas ilegais. E elas aproveitavam ao império de um homem tão sinistro como poderoso, Rupert Murdoch, o magnata da imprensa que extirpou a mesma de valores éticos, e também o Gepeto que tantos Pinóquios políticos usa como fantoches para as suas pantomimas ultraconservadoras. O conluio de interesses cruzados entre políticos vindos do nada e fabricados pelos media, os mesmos media que depois recebem compensações políticas (Murdoch preparava-se agora para receber autorização do parlamento para abocanhar a mais lucrativa plataforma televisiva britânica), tudo perante o olhar complacente de uma polícia que recebe dinheiro para passar as suas descobertas confidenciais aos jornais, podia continuar alegremente. Por exemplo no ano passado o campeão eleito pelos jornais de Murdoch, David Cameron, chegou a primeiro-ministro e logo escolheu para porta-voz do governo o antigo director do News of the World, Andy Coulson.

Em princípio esta história terminaria aqui. Só que um homem corajoso, Nick Davies, recusou-se a virar a cara e encolher os ombros. Ele continuou a investigar, e tal como no caso Watergate teve a sua “garganta funda” (uma fonte bem informada e anónima) que lhe foi revelando quão fundo estava tocado todo o sistema. Numa festa, Davies perguntou a um comissário da polícia: “há oito pessoas que acham estarem a ser escutadas, mas quantas é que existem realmente?” “Oh, milhares!” foi a jovial resposta. A lista de um dos jornalistas inicialmente presos continha quase 4000 números de pessoas “mediáticas”. Um deles era o de uma rapariga de liceu que estava desaparecida – e tinha sido assassinada. O jornal apagou as mensagens no seu correio de voz para que ele não ficasse cheio, o que teve o efeito de dar esperanças aos pais de encontrar a sua filha com vida. Nem assim, no entanto, o News of the World ganhou vergonha; foi preciso que os anunciantes começassem a cancelar em massa os contratos com o jornal para que este, abrupta e finalmente, decidisse fechar portas na semana passada.

Se Murdoch e os seus esbirros, juntamente com a execrável imprensa tablóide, perderem influência na nossa sociedade, o mundo só pode tornar-se um lugar melhor: tal é o efeito bom do escândalo. O efeito mau, esse, é provocado por mais uma revelação do nível de podridão avançada a que chegou o sistema sociopolítico em que vivemos, que até tácticas famigeradas pela PIDE – tais como escutas ilegais – permite: o nosso nível de cinismo desencantado torna-se ainda mais empedernido.

Visto desde a grande cidade

Sempre que estou no Luxemburgo a conversa flui naturalmente para as comparações entre a pequena capital do grão-ducado e a sua irmã mais velha, Bruxelas, onde também passo muito tempo. As duas cidades partilham muito - desde algum passado histórico até ao clima cinzento - e no entanto essas comparações são habitualmente feitas numa perspectiva "o meu Mercedes é maior que o teu" (título de um magnífico livro de 1975 escrito pelo nigeriano Nkem Nwankwo). Rivalidade, portanto.

Como é hábito, muita dessa competição advém do desconhecimento mútuo. 200 km de autoestrada percorrem-se em 1h45m (quase o dobro, optando pela ridícula ligação ferroviária), mas de certa forma, bruxelenses e luxemburgueses vivem de costas voltadas: poucos são aqueles que visitam a outra cidade regularmente, ainda menos os que confessam gostar ou - mais difícil ainda - admitir viver na "rival". Bruxelas olha para baixo com condescência, até paternalismo; reserva ao Luxemburgo o tratamento que damos a um primo da aldeia que nunca estudou mas subiu na vida, sendo uma espécie de novo-rico. Os habitantes da "capital da Europa" compadecem-se genuinamente com o deserto cultural e o ritmo pachorrento da "vila" luxemburguesa.

E esta, por seu lado, olha para cima horrorizada e apostada em não cometer os mesmos erros da sua irmã mais velha durante um processo de crescimento que até nem deseja verdadeiramente copiar. O Luxemburgo detesta as ousadias arquitectónicas da capital belga, não suporta a sujidade das suas ruas ou metro, e teme os seus quarteirões mais duvidosos, onde se partem os vidros aos carros. Acossado, o habitante luxemburguês atira rapidamente aquele que considera o argumento definitivo: "Sim, Bruxelas até pode ser isto e aquilo, mas o Luxemburgo é muito melhor para as crianças!" E claro, o grão-ducado sente-se também algo desconfortável perante a grande variedade de tons de pele e tipos de vestuário da grande cidade; não por acaso o Luxemburgo sempre insistiu em acolher imigração cordata, europeia, católica, de tez pálida e roupas escuras, cuja comida não tenha odor nem sabor (os portugueses cumprem todos estes critérios menos o último).

É pena. Olhar para a parte vazia do copo apenas levanta obstáculos aos intercâmbios e ao crescimento, que não é um jogo de soma nula - todos temos a ganhar com mais ligações entre estes dois pólos de desenvolvimento. Para começar, é importante abater os lugares-comuns e as ideias feitas. Bruxelas, a segunda cidade mais verde da Europa em área verde por habitante, é uma óptima cidade para as crianças. Muitas zonas são tão seguras quanto o Luxemburgo, há verdadeiras jóias arquitectónicas por toda a parte, e o sistema de transportes, não sendo estético, é rápido e relativamente eficiente. Da mesma forma, não é verdade que o Luxemburgo seja uma pequena aldeia: a cena cultural não pára de crescer, já há uma pequena "movida" nocturna, a diversidade do país começa a ser um pouco mais visível - até mesmo na política!

Convém reter que ambas as cidades oferecem alguma da mais alta qualidade de vida do mundo. Depois, no fim de todas as contas, o mais importante são sempre as pessoas que nos rodeiam...

quarta-feira, 6 de julho de 2011

És tu a dar

Too little, too late. É possível que tudo não passe de uma ideia demasiado tímida que aparece demasiado tarde; mas esta semana um punhado de líderes europeus, alguns deles “eminências pardas” fora do activo, apresentou uma espécie de manifesto keynesiano que afirma que estamos a fazer tudo errado se queremos realmente ultrapassar a crise europeia (e vamos partir do princípio que queremos, sem esquecer que essa crise não afecta toda a Europa).

A proposta – e vamos arrumar já com a questão dos seus signatários: junta os ex-presidentes portugueses Mário Soares e Jorge Sampaio ao espanhol Baron Crespo, francês Michel Rocard, britânico Stuart Holland, italiano Amato, belga Guy Verhofstadt, neerlandês Pronk e polaco Saryusz-Wolski, uma lista de personalidades que sem ser impressionante reúne algum respeito – inspira-se directamente nas ideias de Delors e Juncker, mas sobretudo no “New Deal” que permitiu reimpulsionar a economia americana e ultrapassar a Grande Depressão iniciada em 1929, período histórico que tantas semelhanças tem com o actual. Em 1933, a taxa de desemprego nos Estados Unidos era de 25%, a produção industrial tinha perdido um terço do seu valor, e no dia em que Roosevelt tomou posse, não havia um único banco (dos que sobreviveram à crise) que permitisse aos cidadãos terem acesso ao seu dinheiro lá depositado.

“New Deal” significa uma nova distribuição das cartas – em português, algo como “já baralhei e cortei, agora és tu a dar para novo jogo”. Keynes, o seminal economista, e Roosevelt, o extraordinário político, passaram quatro anos a criticar o que o governo americano estava a fazer para debelar a crise – e que basicamente passava por querer “eliminar as maçãs podres” da economia, e equilibrar os défices a todo a custo através de “curas de austeridade” que tornavam muito mais difícil o pagamento das dívidas. Ao tomar posse em 1933, Roosevelt concentrou-se nos “3 Rs” (Alívio dos desempregados, Recuperação da economia e Reforma do sistema financeiro para impedir uma nova crise) e implantou uma série de programas económicos de investimento e de incentivos de diversa índole – tudo financiado pela emissão de obrigações do tesouro norte-americano, ou seja, a venda de títulos da dívida do país. Em 1936, três anos mais tarde, a economia dos EUA estava de volta aos trilhos e de volta aos níveis de 1929.

O que o novo manifesto europeu propõe, no fundo, é a emissão de obrigações do tesouro pan-europeias em vez das estafadas obrigações nacionais – por exemplo, Portugal tem que oferecer um juro cada vez mais alto para conseguir vender as suas. Cada país poderia transferir até 60% da sua dívida para as largas costas da União Europeia, que poderia gerir as obrigações sem as comercializar – ficando assim imune aos efeitos das agências de rating. O modelo até já existe – é o seguido pelo Banco Europeu de Investimentos há 50 anos – e pode basear-se em outros pontos fortes da Europa: por exemplo, a União Europeia não está endividada. O seu nível de empréstimos, inferior a 1%, representa um décimo da dívida contraída pelos EUA de Roosevelt, que financiaram a sua saída da crise em situação bem mais alarmante.

Mas claro, o problema é de outra índole. Van Rompuy não é Roosevelt e Barroso não é Keynes. Os nossos líderes não eleitos preferem novas rondas de “austeridade” – não como solução, mas como fim em si mesma.

Maré baixa em Schengen

Roma, Paris, Amesterdão, Maastricht, Nice, Bruxelas, Frankfurt, Porto (assinatura do tratado que institui o Espaço Económico Europeu), Lisboa (tratado reformador)... todas estas cidades europeias deixaram o seu nome e a sua marca associados a momentos-chave da construção europeia. Essa honra pertence também, contra as probabilidades, a uma pequena aldeia luxemburguesa com 1527 habitantes: "Schengen" é provavelmente o mais conhecido dos nomes oriundos do pequeno Grão-Ducado, e isto porque simboliza uma das mais extraordinárias conquistas da Europa do pós-guerra – a livre circulação de pessoas, mercadorias, capitais... e ideias.

Schengen, o acordo, foi assinado em 1985 num barco sobre o rio Mosela e desde aí não parou de derrubar fronteiras, desde as reais às imaginárias passando pelas que apenas existem em mentes cansadas de ousar imaginar. Portugal e Espanha, onde apenas duas décadas antes tantos fugiam à pobreza e ao exército arriscando a vida a salto pelos montes, aderiram em 1991, e hoje em dia quase é possível recriar o que se passava há um século atrás: até 1914, era possível viajar de Portugal à Rússia sem mostrar um único passaporte. Em 2011, é possível fazê-lo da Islândia à Grécia, ou de Portugal à Estónia. Após os avanços e recuos civilizacionais, arrisco um balanço: poucos documentos individuais fizeram tanto para reconciliar o nosso continente como este, e todos os que se lembram de como era viajar antes da livre circulação (eu por várias vezes passei quase um dia encerrado num carro em Valença do Minho, para não ir mais longe) só podem estar agradecidos ao conceito.

Mas o pêndulo vai e volta, a maré sobe e desce... e estamos a assistir, por estes dias, ao primeiro ponto de viragem nesta superlativa ideia de apagar fronteiras internas. A "Fortaleza Europa", mesmo sabendo que necessita de mais trabalhadores imigrantes de outras partes do mundo se quiser manter o seu nível de vida actual, descobriu que os controlos nas fronteiras externas não são suficientes para impedir refugiados tunisinos de chegar a França. Os populistas no poder na Dinamarca aproveitaram para reerguer as suas cabanas alfandegárias à revelia de todos os outros parceiros; e os outros Estados-Membros rejeitaram em seguida a entrada da Bulgária e Roménia no espaço Schengen, contra os seus pedidos insistentes e o voto esmagador do Parlamento Europeu. Finalmente, há apenas quatro dias, o capítulo Schengen foi diluído ao permitir a cada país suspender temporariamente a sua aplicação, sem que sequer tenham sido bem definidas as regras para que tal aconteça. Portugal voltou a fechar-se ao mundo durante o Euro2004 de futebol, agora já nem precisará desse pretexto para o fazer.

Enquanto o projecto europeu estiver refém de lógicas progressivamente nacionalistas de líderes populistas sem visão de longo prazo, mais más notícias destas proliferarão. Afinal, pode bem ser que tal seja positivo - talvez os cidadãos europeus se tornem mais interventivos ao aperceberem-se de que nenhum progresso está garantido indefinidamente.

Sonhos hipersónicos

No meio de tantas notícias apocalípticas, seja sobre Portugal, o euro, a Europa e o mundo em que vivemos, é quase um prazer proibido ler algo que nos faça sonhar. Falo de uma ideia - ou um projecto ou uma descoberta ou um acontecimento - que nos faça reconciliar com a velha e desacreditada ideia de progresso. É raro que tal suceda, mas acaba de acontecer na Expo Aérea de Paris, que decorre esta semana em Le Bourget. Num aeroporto intimamente ligado à história da aviação, os europeus levantaram o véu sobre o possível futuro desta. E de caminho, também relembraram que este continente formidável continua na vanguarda do desenvolvimento humano e tecnológico.

O slogan escolhido para o novo avião, e repetido por meios de comunicação pelo mundo fora, fica no ouvido: "de Paris a Tóquio em duas horas e meia". A partir daí podemos continuar a fazer contas... de Bruxelas a Nova York em pouco mais de uma hora, de Londres a Sidney em três horas e meia, do Luxemburgo ao Porto em 20 minutos. 20 minutos! Menos do que os que são necessários para chegar da garagem de casa ao emprego todas as manhãs, e isto sem encontrar pelo caminho os três ou quatro maus condutores habituais.

O responsável por estas proezas é uma deliciosa utopia. O ZEHST (significa Transporte HiperSónico com Zero Emissões) é um avião ultrasónico, concebido na Europa e a ser fabricado na Europa. Não tem ainda formato definido, mas inspira-se claramente no mítico Concorde, desenhado nos anos 1960... a mais extraordinária tecnologia, no entanto, está na propulsão, com três tipos de motores - turborreactores convencionais, motores de foguetões espaciais, e motores usados para mísseis de altíssima velocidade - a serem alimentados apenas por biocombustíveis feitos a partir de algas marinhas. Um avião cuja velocidade de cruzeiro é de 5000 km/h (quatro vezes a velocidade do som) e que é também o menos poluente de sempre... tudo isto enquanto voa 32 km acima do nível do mar, acima das camadas mais densas da atmosfera terrestre (os jactos actuais voam a 10 km de altitude).

Se parece bom de mais para ser verdade, é porque provavelmente o é mesmo. Os próprios responsáveis por esta máquina, a EADS - o consórcio europeu que fabrica os aviões Airbus - só avança com a data longínqua de 2050, a 40 anos de distância, para os ter em funcionamento comercial. Mas de acordo com a empresa, toda a tecnologia apresentada já existe (ainda que alguma numa fase de desenvolvimento) e um protótipo sem piloto pode ser testado em 2020. Mais do que um supersónico castelo no ar, portanto. 100 pessoas de cada vez, pela módica quantia de 8000 euros por voo, poderão nessa altura ir jantar um sushi a Tóquio e voltar a tempo de chegar frescos ao escritório pela manhã. Um verdadeiro luxo asiático.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Desculpe, quer trabalhar até mais tarde?

O dossier eleições em Portugal está encerrado, mas algumas pequenas ondas de choque ainda reverberam a partir do seu epicentro. Passos Coelho faz um contra-relógio para conseguir ter um governo pronto a usar no dia 23 - mas isto virá três longos meses após a demissão do anterior, o que é demasiado... O PS tenta decidir quem o vai liderar na sua travessia do deserto. Um dirigente do CDS avisou ao mundo que "os militantes do seu partido devem agora ser recompensados com cargos políticos". Ana Gomes, do PS, fez declarações tão explosivas sobre Paulo Portas que das duas uma, ou sabe o que está a dizer e tem razão, ou a política acaba de descer mais um patamar de dignidade. E o recorde histórico da abstenção, registado precisamente numas eleições vendidas como "as mais cruciais de sempre" (o que não é verdade, dado que o argumento dos próximos anos já estava escrito de antemão) trouxe a habitual ladaínha do "desencanto dos cidadãos com a política" e da necessidade de mais democracia directa.

Que os referendos estão na ordem do dia é inegável. E utilizados de forma sensata, eles podem completar na perfeição a democracia representativa ao devolver a palavra aos cidadãos em questões cruciais da sua vida e do seu futuro. Só que a tentação de os usar como arma de manipulação e arremesso é grande, até porque habitualmente isso resulta: na maior parte das vezes, os eleitores votam exactamente ao contrário daquilo que o governo em funções pretende. Mais do que coincidência, trata-se de castigo. Aconteceu em Portugal nos anos 90, com o "não" à regionalização (um voto que o país mais centralista da Europa Ocidental continua aliás a pagar bem caro). Aconteceu em Malta no mês passado: em referendo e contra as indicações do primeiro-ministro, os malteses aprovaram a possibilidade de divórcio, que ali era ilegal (deixando assim às Filipinas o curioso título de único país do mundo onde os casais não se podem divorciar). Em Itália aconteceu ontem: quatro perguntas em referendo, e a todas os italianos responderam com um rotundo "não!" ao desejado por Berlusconi (este, em mais um inédito, aconselhou os eleitores a irem à praia em vez de votar). Nomeadamente, a intenção do libertino primeiro-ministro italiano de reactivar as centrais nucleares do país foi rejeitada com 95% de votos, o que é de saudar em nome da segurança europeia e das energias renováveis.

Mas os melhores exemplos de desvirtuamento da opção referendária vêm da pequena Eslovénia. Neste país, convocar um referendo é relativamente simples: uma minoria de 30 deputados pode fazê-lo - e 40000 assinaturas de cidadãos também. Resultado: só nos últimos 12 meses os eslovenos foram chamados às urnas para dar o seu veredicto sobre cinco questões que poderiam ter sido decididas pelo parlamento - e em cada uma delas votaram ao contrário daquilo que o governo pedia. O caso mais burlesco aconteceu na semana passada com a formulação da questão "Concorda com a subida da idade mínima de reforma para os 65 anos?" - ou seja, a verdadeira pergunta feita aos cidadãos era: "Deseja trabalhar sem contrapartidas por mais 4 anos da sua vida, ou prefere que sejam as gerações futuras a arcar com o seu sustento enquanto inactivo?" Agora adivinhe o leitor qual foi o resultado deste referendo.