“O amigo
americano” é um film noir realizado
pelo alemão Wim Wenders, na altura em que este produzia obras de fôlego e não
apenas postais ilustrados sobre cidades. O filme é uma adaptação de um livro
policial da talentosa Patricia Highsmith, e na história há um americano a viver
em Hamburgo, o cerebral e endinheirado Tom Ripley, que precisa de matar um
homem e consegue convencer um alemão, Jonathan, a cometer o crime por ele. No
final do filme, Jonathan morre, enquanto o seu amigo americano escapa,
bem-sucedido e impune.
Com o nosso amigo
americano o epílogo não será muito diferente. Sempre pressurosos em se
afirmarem como estando do lado dos europeus, e atravessando o Atlântico a
correr sempre que necessitam de ajuda para uma das muitas guerras em que se
envolvem (e obtendo-a sempre do seu maior subordinado, o Reino Unido), os
americanos espiam-nos. Vigiam os nossos mais pequenos movimentos, utilizam
programas sofisticados para analisar se a mais ridícula parvoíce que escrevemos
no facebook lhes interessa, podem reproduzir a mais embaraçosa conversa picante
feita ao telemóvel. E fazem-no, mas não por coscuvilhice; fazem-no no mais
abjecto desrespeito pela liberdade humana, na mais nojenta hipocrisia de quem
caracteriza todos os outros países do mundo como inferiores e pouco
democráticos. Ouvimos agora números dispersos como 70 milhões de contas de
telemóvel em França (ou seja, todas) devassadas em apenas um mês; em Espanha
foram 60 milhões, no Reino Unido 30 milhões, na Alemanha a própria chanceler, oriunda da Alemanha de Leste onde a espionagem a
qualquer cidadão é uma chaga bem viva na memória (e na lei), teve o seu
telefone sob escuta durante vários anos. E todas as nossas transferências
bancárias guardadas nos servidores da SWIFT, uma empresa belga, também estão
bem discriminadas algures em Washington.
Sim, o
guarda-chuva da “luta contra o terrorismo” é enorme e conveniente, mas a maior
razão da espionagem à Europa é económica: os EUA roubam-nos facilmente segredos
industriais, comerciais, científicos, tecnológicos, financeiros. Empresas
estratégicas, como por exemplo petrolíferas, são vigiadas de perto. A vantagem
desleal é tão ou mais incompreensível sabendo que a UE e os EUA vão começar
agora duras negociações com vista a um acordo de comércio livre entre os dois
blocos – e nós entramos já em situação de completa subalternidade.
A dimensão da
ignóbil espionagem é tal que mesmo os inefáveis líderes europeus se têm agora
de mostrar relativamente escandalizados, batendo muito no peito e, com voz
grossa, afirmando ir directamente à Casa Branca exigir explicações a Obama. Mas
até agora, estes mesmos líderes eram colaboracionistas; as acções da NSA eram
sobejamente conhecidas, e até mesmo parcialmente copiadas, pelos nossos
serviços secretos. Os voos clandestinos da CIA tiveram o apoio logístico europeu,
enquanto Snowden, o homem que nos permitiu descobrir todo estes podres, nunca
obteve da Europa o asilo que requereu. Logo, as reacções ultrajadas de Merkel e
Hollande são apenas para inglês ver – e o líder inglês, David Cameron, nem se
preocupa em esconder o seu enfado com toda esta discussão que considera
contraproducente. Afinal, que há de errado em espiar os próprios cidadãos e
viver numa sociedade bigbrotheriana?
O nosso musculoso
amigo americano é interesseiro e falso. Mas não podemos zangar-nos com ele – sabe
tudo sobre nós, mais do que nós mesmos sabemos. Sabe, por exemplo, que não
temos a firmeza de nos fazermos respeitar.