quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O amiguinho americano

“O amigo americano” é um film noir realizado pelo alemão Wim Wenders, na altura em que este produzia obras de fôlego e não apenas postais ilustrados sobre cidades. O filme é uma adaptação de um livro policial da talentosa Patricia Highsmith, e na história há um americano a viver em Hamburgo, o cerebral e endinheirado Tom Ripley, que precisa de matar um homem e consegue convencer um alemão, Jonathan, a cometer o crime por ele. No final do filme, Jonathan morre, enquanto o seu amigo americano escapa, bem-sucedido e impune.

Com o nosso amigo americano o epílogo não será muito diferente. Sempre pressurosos em se afirmarem como estando do lado dos europeus, e atravessando o Atlântico a correr sempre que necessitam de ajuda para uma das muitas guerras em que se envolvem (e obtendo-a sempre do seu maior subordinado, o Reino Unido), os americanos espiam-nos. Vigiam os nossos mais pequenos movimentos, utilizam programas sofisticados para analisar se a mais ridícula parvoíce que escrevemos no facebook lhes interessa, podem reproduzir a mais embaraçosa conversa picante feita ao telemóvel. E fazem-no, mas não por coscuvilhice; fazem-no no mais abjecto desrespeito pela liberdade humana, na mais nojenta hipocrisia de quem caracteriza todos os outros países do mundo como inferiores e pouco democráticos. Ouvimos agora números dispersos como 70 milhões de contas de telemóvel em França (ou seja, todas) devassadas em apenas um mês; em Espanha foram 60 milhões, no Reino Unido 30 milhões, na Alemanha a própria chanceler, oriunda da Alemanha de Leste onde a espionagem a qualquer cidadão é uma chaga bem viva na memória (e na lei), teve o seu telefone sob escuta durante vários anos. E todas as nossas transferências bancárias guardadas nos servidores da SWIFT, uma empresa belga, também estão bem discriminadas algures em Washington.

Sim, o guarda-chuva da “luta contra o terrorismo” é enorme e conveniente, mas a maior razão da espionagem à Europa é económica: os EUA roubam-nos facilmente segredos industriais, comerciais, científicos, tecnológicos, financeiros. Empresas estratégicas, como por exemplo petrolíferas, são vigiadas de perto. A vantagem desleal é tão ou mais incompreensível sabendo que a UE e os EUA vão começar agora duras negociações com vista a um acordo de comércio livre entre os dois blocos – e nós entramos já em situação de completa subalternidade.

A dimensão da ignóbil espionagem é tal que mesmo os inefáveis líderes europeus se têm agora de mostrar relativamente escandalizados, batendo muito no peito e, com voz grossa, afirmando ir directamente à Casa Branca exigir explicações a Obama. Mas até agora, estes mesmos líderes eram colaboracionistas; as acções da NSA eram sobejamente conhecidas, e até mesmo parcialmente copiadas, pelos nossos serviços secretos. Os voos clandestinos da CIA tiveram o apoio logístico europeu, enquanto Snowden, o homem que nos permitiu descobrir todo estes podres, nunca obteve da Europa o asilo que requereu. Logo, as reacções ultrajadas de Merkel e Hollande são apenas para inglês ver – e o líder inglês, David Cameron, nem se preocupa em esconder o seu enfado com toda esta discussão que considera contraproducente. Afinal, que há de errado em espiar os próprios cidadãos e viver numa sociedade bigbrotheriana?

O nosso musculoso amigo americano é interesseiro e falso. Mas não podemos zangar-nos com ele – sabe tudo sobre nós, mais do que nós mesmos sabemos. Sabe, por exemplo, que não temos a firmeza de nos fazermos respeitar.

Elísios

Ano da graça de 2154. A Terra é agora um lugar poeirento, sobrepopulado e miserável, onde biliões de humanos sobrevivem graças a empregos precários ou sub-vidas criminosas, patrulhados por robots implacáveis. Entretanto, os membros da elite humana, facilmente distinguíveis por um chip que lhes confirma a cidadania e a pertença a um clube exclusivo, vivem na opulência e no luxo a bordo de uma estação espacial chamada Elysium, um satélite que se consegue vislumbrar, em dia limpo, a partir de qualquer uma das favelas terrestres. E que é alcançável a partir do planeta – seja através de uma pequena nave privada de um cidadão de Elysium, seja a bordo de um cargueiro espacial ilegal prenhe de desesperados terrestres clandestinos que pagam a contrabandistas de humanos todas as suas economias pela possibilidade remota de atravessarem o espaço e chegarem vivos ao paraíso artificial.

É esta a premissa de “Elysium”, filme estreado no final do verão, pouco tempo antes do grande drama de Lampedusa. Perto desta pequena ilha a meio caminho entre a Sicília e a Tunísia, no dia 3 de Outubro, um velho pesqueiro apinhado de homens, mulheres e crianças oriudos da Eritreia e da Somália naufragou nas águas do Mediterrâneo. A última contagem fixou 359 vidas humanas perdidas, e muitos ainda desaparecidos; mas essa contagem foi feita no dia 11, o mesmo em que um outro barco naufragou ali perto – e foi então necessário acrescentar mais 34 corpos, desta feita sírios e palestinianos, à calamidade. Já esta segunda-feira, dia 14, mais um barco, este com 137 migrantes a bordo, foi detido pelas autoridades italianas. Só este ano, 35 000 pessoas já arriscaram assim a sua vida no mar para chegar à Europa.

A Europa, a Elysium dos nossos tempos, acordou. A actual lei italiana de imigração, aprovada pela extrema-direita nos tempos de Bossi e Fini, foi exposta em toda a sua desumanidade – e a angustiada declaração do primeiro-ministro maltês, em como “estamos a construir um cemitério no nosso Mediterrâneo”, adicionada aos gritos de “assassino” com que Barroso foi recebido em Lampedusa, sublinharam a importância da cooperação europeia e de uma política comum para resolução de um problema que é de todos. Só que não há razões para qualquer optimismo quanto a isso: as eleições europeias de Maio serão, tudo o indica, um estímulo à extrema-direita xenófoba, e esta incentivará ainda mais a construção de uma “fortaleza Europa” falsamente estanque a vagas crescentes de refugiados. Não estaremos longe de vermos muros erguidos nas nossas praias, tal como hoje acontece na Califórnia – os EUA construíram um enorme muro ao longo de parte da sua fronteira com o México, perfazendo um total de quase 600 km de cerca (por vezes electrificada). Não sei quem desejará viver num continente transformado em condomínio fechado, mas eu decididamente não quero.

Não é simples o que a Europa tem de fazer: é deixar entrar mais pessoas – barrando a entrada aos indesejáveis, certamente, patrulhando os mares, certamente, mas acolhendo, como em outros séculos outros nos acolheram a nós, europeus. É cooperar com os países de origem para que estes ajudem a controlar a imigração ilegal. É promover o desenvolvimento nesses países, é abrir os seus mercados aos produtos agrícolas vindos daí, enriquecendo as suas populações. É fazer opções difíceis e apostar em resultados longínquos. Terá de ser assim – o nosso Elysium não é só nosso, e não podemos aceitar que tantos continuem a morrer para o atingir.

Geração Y, de ynfeliz

Sandra está infeliz.

A Sandra, a personagem fictícia deste texto, nasceu algures entre final da década de 70 e o princípio da década de 90 – ou seja, está hoje em dia entre os seus vinte e muitos e os seus trinta e poucos anos. Pertence ao que sociologicamente se designa por “Geração Y”, os filhos dos baby boomers nascidos a seguir ao fim da II Grande Guerra, e netos da geração anterior, que teve de viver a Grande Depressão e lutar na mesma guerra. Mas claro, a Sandra é portuguesa, pelo que as condições dos seus pais e avós são algo específicas em relação ao resto do mundo ocidental: os avós não desembarcaram na Normandia, mas sofreram na década de 40 a escassez de alimentos que prolongou a Grande Depressão por muitos anos; e os pais, esses sim lutaram numa guerra - a colonial - ou tiveram que escapar da ditadura para fugir a esta. De uma forma ou de outra, as condições materiais eram mais duras que numa Europa (ou Estados Unidos) em pleno frenesim dos “trinta anos gloriosos” de crescimento contínuo. Os avós da Sandra tiveram vidas acanhadas, de trabalho árduo e poucas recompensas, e quiseram para os seus filhos – os pais da Sandra – uma vida economicamente mais fiável. A “segurança” no emprego ganhou laivos de obsessão. Os pais da Sandra foram educados com a esperança numa vida melhor do que a geração anterior, sabendo que teriam de trabalhar muito para isso.

Os resultados dos pais da Sandra saíram bem melhores que a encomenda. Logo no início da sua vida activa, na década de 70, aconteceu a revolução em Portugal. As oportunidades pareceram ilimitadas, as mulheres emanciparam-se, a educação deixou de ser uma utopia. No mundo ocidental, as décadas de 80 e sobretudo 90 foram, no seu cômputo geral, de uma prosperidade económica sem precedentes, e alguns pingos dessa prosperidade também salpicaram Portugal; os pais da Sandra chegaram mesmo muito mais longe do que esperavam no início da sua vida activa, quando tudo eram incertezas. Essa margem positiva entre as expectativas e a realidade fez deles pessoas ajustadas e felizes, e também os levou a educarem a Sandra de forma diferente – não tanto com ênfase numa carreira linear, mas sim levando-a acreditar que ela podia ser tudo o que quisesse, porque a isso tinha um direito quase divino.

O Google consegue provar a mudança de mentalidades: uma ferramenta muito útil, o Ngram, mede a ocorrência de palavras impressas em qualquer perído de tempo. Aí vemos que a popularidade de “segurança no emprego” tem vindo sempre a decair ao longo do tempo, enquanto que o conceito de “segue o teu instinto” só apareceu há uns 20 anos. A Sandra foi educada a “ser especial”, destinada a grandes voos. O problema é o choque com a realidade: se todos são especiais, por definição, ninguém o é; não há, numa sociedade em crise económica profunda e prolongada, oportunidades para crescer e chegar longe – e quando as há não chegam naturalmente para todos. A Sandra vive agora a sua vida abaixo das expectativas irrealistas que tinha; para compor o cenário, e graças ao fenómeno recente da internet social, tem a impressão (errada) que todos os seus conhecidos viajam muito e vão a muitas festas, enquanto ela está a ficar para trás. E talvez esteja: o peso da dívida que lhe chega das gerações anteriores vai cercear-lhe as possibilidades durante muitos e muitos anos. A Geração Y está a perder os sonhos e a tornar-se infeliz – ah, e a sua sucessora, a Geração Z, não tem esperanças mais altas.

E o Porto aqui tão perto

“Ai eu estive quase morto no deserto / e o Porto aqui tão perto”, canta Sérgio Godinho, repetidamente, na canção do mesmo título. A música é do trovador nascido na cidade mas, se as democracias soubessem cantar, a portuguesa não desdenharia interpretá-la também, já que acaba de ser (não diria ressuscitada mas pelo menos) redimida na eleição autárquica de domingo. Nesta, um independente chamado Rui Moreira
provou que o divórcio entre os cidadãos e a política, que é profundo, se confunde com a desconfiança que as pessoas sentem em relação aos partidos. E também foi provado, pela primeira vez, que os partidos não detêm o monopólio do poder em Portugal – câmaras lideradas por independentes não são uma novidade, mas nunca um cargo tão importante tinha sido detido por um.

É certo que Rui Moreira recebeu no fundo o apoio expresso de um partido (o CDS), mas não é menos verdade que essa influência não se fez sentir na campanha, nem tanto nas suas listas (compostas por “notáveis” da cidade oriundos de diversas áreas políticas, e não tanto por militantes). No seu discurso de vitória, o economista de 57 anos voltou a deixar um recado: “espero que os partidos tenham percebido o que se passou aqui hoje”. O que ele queria dizer é que a sociedade, pelo menos a portuense, se fartou de esperar que os partidos evoluam, se abram às pessoas, e sobretudo deixem de ser as federações de compadrios e interesses minadas por lutas intestinas que – por vezes injustamente, é certo – parecem ser.

Mas não é apenas por significar uma rotura com a exclusiva lógica partidária, como se isso fosse pouco, que a vitória esmagadora de Moreira representa um interessante sinal dos tempos vividos em Portugal. É-o também pelas filosofias representadas pelos seus adversários, Manuel Pizarro pelo PS e Luís Filipe Menezes pelo PSD. O primeiro apoiado por um partido que, oferecendo aos eleitores um afrouxar do estrangulamento da austeridade, capitalizou grande parte do descontentamento com o governo do país, conquistando quase metade das câmaras; o segundo era a dado ponto considerado “imbatível” pelo trabalho notável feito do outro lado do rio em Gaia, ou pelas propostas ambiciosas, de grandes obras combinadas com preocupações sociais, que encontraram eco numa população cansada do miserabilismo do presidente cessante.

Só que a palavra-chave das eleições no Porto foi “dívida”. Justa e injustamente, Menezes nunca conseguiu afastar a imagem que lhe colaram de “despesista”, e rapidamente a dívida da câmara de Gaia passou a ser assunto de conversa mais relevante que a revolução operada nos últimos 16 anos daquela cidade. Ao mesmo tempo, e mal ou bem, o Porto é orgulhosamente visto pelos seus habitantes como contido nas contas, mesmo um exemplo para um país irresponsável e gastador – desde logo na capital, cuja autarquia deve quase tanto como todas as outras câmaras juntas e isto apesar do orçamento de Estado (ou seja, todos os portugueses) pagarem grande parte das obras em Lisboa. No Porto, uma cidade hoje economicamente deprimida e crescentemente abandonada, há muito que se sabe que em Portugal não há prémios para os cumpridores, nem penalizações para quem faz batota financeira. Desse ponto de vista, a rejeição da Invicta aos amanhãs que cantam despesistas em favor do realismo prudente é a opção pelo caminho mais difícil, e merece ser justamente realçada.

É preciso que nada mude para que tudo continue a piorar

“O Leopardo”, escrito pelo italiano di Lampedusa, é universalmente reconhecido como um dos grandes romances históricos de sempre (e o filme de 1961, com Claudia Cardinale, é também uma obra-prima). Em ambos, livro e filme, o personagem central, Don Fabrizio Corbera, declama as suas imortais palavras para justificar os seus actos de perpetuação do poder da família: “É preciso que algo mude para que tudo fique na mesma”.

No domingo, 66 milhões de alemães em idade de votar (13% da população da UE) foram chamados a escolher o líder da Europa. Sem surpresa, a escolha recaiu na senhora Merkel, a candidata do status quo. Nada mudará no rumo traçado nos últimos anos – e se nada muda, não podemos esperar que tudo fique na mesma, antes que o “novo normal” seja, paulatina e seguramente, um pouco pior. Esse pior, naturalmente, depende da perspectiva do observador. A regressão económica, mesmo civilizacional, que a Europa sofreu nos últimos anos não é subjectiva, é relaticamente fácil de medir; mas esse raciocínio não é válido para a Alemanha, que no meio de uma crise longa e generalizada faz figura de oásis – cinzento e regrado, mais ainda assim um oásis. Logicamente, para o eleitorado alemão a argumentação para uma mudança política é muito fraca: as exportações do país continuam saudáveis, a taxa de desemprego é a mais baixa de continente, os contribuintes alemães não sacrificam um milímetro do seu bem-estar para auxiliar os seus congéneres europeus que vivem do lado errado do euro – euro do qual até agora o próprio país retirou os maiores benefícios, tangíveis ou intangíveis. De facto, porquê mudar?

Para mim a surpresa residiu sim nas grandes expectativas que a Europa, e sobretudo os países da periferia em dificuldades, tinham em relação a esta eleição. A ilusão narrava que para que a Alemanha fosse mais solidária, mais decidida e assumisse mais as responsabilidades – e os custos – da sua agora incontestada liderança, bastaria que Merkel perdesse as eleições para uma coligação de esquerda; quando se tornou evidente que tal não aconteceria, a esperança passou a residir numa “grande coligação” CDU-SPD; e agora que essa mesma se afigura provável, crescem as suspeitas de que a política dos “pequenos passos”, fazendo apenas o estritamente necessário para que o euro – e a Europa – não se desintegrem, vai manter-se imperturbável.

CDU e SPD, os dois maiores partidos alemães, não divergem substancialmente na sua receita de consenso, forjada na grande tradição do ordoliberalismo do país. E os ganhos que o SPD vier a obter na sua negociação política serão apenas para consumo interno: eventualmente um maior orçamento social, e talvez a adopção de um salário mínimo (que a Alemanha não tem). “Europa” continuará a ser uma competência exclusiva da chanceler – uma pasta que ela ocupa de forma relutante e sempre da mesma forma cautelosa e apenas reactiva, com os resultados que todos conhecemos, ou seja, uma animosidade crescente entre todos os países europeus que a médio prazo levará à deriva totalitária do projecto da UE. Nessa altura todos perderemos, e a Alemanha mais que todos. A menos que algo mude, e ainda assim... “O Leopardo” termina com a ruína ou morte de todos os seus personagens.

O ocaso de “Ronaldo”

“Durão Barroso é o nosso Cristiano Ronaldo da política internacional”. A frase faz sorrir pelo seu absurdo, mas se lhe dedicarmos mais um pouco de atenção, não deixa de ser ligeiramente insultuosa – desde logo para o próprio Ronaldo, que é indubitavelmente um futebolista excepcional, o melhor de sempre em Portugal e um dos melhores da história do próprio desporto; mas também para a nossa inteligência, que mesmo sabendo como todos os políticos tentam sempre colar-se à imagem dos vencedores na busca vã de algumas migalhas de aura, é ferida por uma comparação tão estapafúrdia. O autor da afirmação é o embaixador da União Europeia em Washington, João Vale de Almeida, e compreende-se melhor se soubermos que ele foi por muitos anos chefe de gabinete do próprio Barroso.

O “Ronaldo” dos políticos portugueses aproxima-se do final da sua carreira além-fronteiras – dois mandatos, de cinco anos cada, oferecidos graciosamente pelo “Özil” da política internacional, Angela Merkel, com a assistência mais ou menos activa do “Benzema” da política internacional, Jacques Chirac, e do “Gareth Bale” da política internacional, Tony Blair. E tal como Cristiano acaba de fazer, também Barroso, cujo salário actual como presidente da Comissão Europeia não é nada de transcendente, deve estar prestes a assinar o contrato da sua vida com algum conglomerado privado, enquanto espera por eleições presidenciais em Portugal. As semelhanças terminam aí: a saída de Barroso não vai provocar saudades. Os dez anos em que ocupou o prestigiado cargo coincidiram com um declínio permanente da importância da Comissão (e foi mesmo criado um cargo de presidente permanente do Conselho, ocupado por Van Rompuy, que retira muita da relevância àquela); mais do que isso, foi a própria construção europeia que estagnou primeiro e regrediu depois, pela fadiga do alargamento, pela falta de inspiração ou competência para lidar com novos desafios. E depois, há exactamente cinco anos, o banco Lehman Brothers faliu – e a Europa compreendeu rapidamente que o abismo económico não estava assim tão longe.

Se a compreensão foi rápida, a reacção foi lenta e hesitante – e pior que isso, tem vindo a agravar os nossos problemas, num círculo vicioso de egoísmo, empobrecimento e decadência. Barroso veio esta semana fazer o seu último discurso do “Estado da União”, um ritual anual onde se escamoteia a realidade e se amplificam as boas notícias. Neste caso, elas vieram sob a forma de uma tímida fuga à recessão em alguns países do sul, e talvez o número de 26 milhões de desempregados tenha deixado de aumentar a cada mês... muito pouco para apresentar como resultados de um bom trabalho. O panorama inegavelmente cinzento levou a que grande parte do discurso tenha sido passado em autojustificações pelo passado, cinco “anos de chumbo” que nos deixam agora em terreno fértil para os candidatos populistas anti-Europa no ciclo de eleições continentais que começará agora na Alemanha. Barroso anunciou algumas vagas ideias para o futuro (algumas delas já referidas em anteriores ocasiões), como “reforçar o crescimento e o emprego” e concretizar a união bancária, ou investir na inovação e na ciência, bem como na segurança energética. É muito difícil discordar de algo aqui, mas francamente, passaram dez anos – já seria mais que tempo que este “Ronaldo” descobrisse como marcar golos. Com este tipo de avançado, a Europa nunca se qualificará para o campeonato do mundo.

Nascemos Selvagens

“Quando alguém nasce, nasce selvagem – não é de ninguém...” trauteavam os Resistência há uma boa vintena de anos, sensivelmente pela mesma altura em que o exército português me considerou apto para todo o serviço mas teve a gentileza de me colocar na “reserva territorial”, sujeito a ser chamado para a tropa, em caso (por exemplo) de uma invasão espanhola, a qualquer momento até completar 42 anos.
O tempo passou e eu esqueci o meu possível compromisso com as armas, cortesia da União Europeia e da sua oferta de paz e prosperidade entre os europeus  - e se esta última tem os seus altos e baixos, a primeira é tão sólida que um conflito armado entre dois membros da UE é hoje impensável. Mas... será mesmo? Os recentes (e, francamente, um pouco ridículos) espasmos nacionalistas vindos de Espanha começam a deixar-me um pouco nervoso. Ainda me faltam uns anitos para atingir os 42 e, francamente, agora não me dava mesmo nenhum jeito abandonar a casa, o emprego e tudo o resto e radicar-me no quartel de Elvas aos comandos de uma chaimite.

A situação económica em Espanha é desesperante. O desemprego oficial anda nos 27%, 1 em cada 2 jovens não têm emprego, as casas perderam o valor que tinham, várias regiões desejam a independência, não há crescimento económico há seis anos, e os crimes financeiros desacreditaram totalmente a elite política e a realeza. A estratégia do governo do país, incapaz de resolver estes problemas, é a de criar manobras de diversão que procurem inimigos externos e apelem ao bacoco orgulho nacionaleiro: ou seja, mais uma candidatura falhada aos jogos olímpicos e disputas sobre rochedos perdidos. O primeiro ensaio já aconteceu em 2002, no rochedo de Perejíl junto à costa marroquina, e aí houve mesmo um pequeno conflito armado, com a Espanha a capturar seis prisioneiros da guarda costeira do país árabe; no mês passado, a tensão aumentou em Gibraltar, outro rochedo periférico, com Espanha e Reino Unido a trocarem insultos públicos e verem-se repreendidos por Bruxelas como meninos pequenos.


Agora chegou a vez de Portugal: a Espanha contesta as ilhas Selvagens. Não discute desta vez a soberania – em 1911 e 1975, farejando a instabilidade momentânea em Lisboa, procurou aglutinar as Selvagens às Canárias – mas discute o seu estatuto: em vez de “ilhas”, deveriam ser considerados meros “rochedos”. A diferença não é semântica, porque uma ilha confere ao país a que pertence direitos sobre o fundo do mar e as águas até 200 milhas a partir da costa, enquanto os rochedos apenas permitem 12 milhas – na prática, isso significa que os hipotéticos rochedos Selvagens seriam rodeados completamente por águas espanholas.

Portugal protegeu-se bem. As Selvagens pertencem ao Estado desde 1971, e a reserva natural aí existente implica habitação permanente de duas pessoas (no farol, onde também o presidente pernoitou em Julho). Além disso, existe na maior ilha uma casa de férias de uma família madeirense. A nota diplomática de Portugal às Nações Unidas, enviada na semana passada, é inteligente: tranquila, não valoriza demasiado a questão, e sublinha que os dois países não têm nenhum conflito territorial (embora as fronteiras na água não estejam definidas). Tudo está bem, vamos continuar a ser Selvagens. E eu vou continuar tranquilamente na reserva territorial. 

É fogo que arde e vê-se bem

“É fogo que arde sem se ver, uma ferida que dói e não se sente”, dizia o poeta sobre o amor. Mas o amor que os portugueses sentem pelo Verão é sistematicamente chamuscado pelos incêndios florestais, o flagelo que ganha ali laivos de fatalidade irreversível. Nas últimas décadas, arderam em Portugal 3,5 milhões de hectares – uma área equivalente a toda a Bélgica.

É inútil repetir o óbvio, os incêndios são um drama devastador, deixando à sua passagem um rasto desolador de destruição e morte. O facto de a cada ano o ciclo se repetir deixa-nos raivosos perante a impotência. Nunca falha: chegados ao final de Julho, ouvimos as primeiras más notícias. Entrado Agosto, com a floresta seca e cheia de folhas secas, qualquer faúlha é suficiente para despoletar a habitual espiral de recursos perdidos, casas e pessoas em perigo, bombeiros no hospital (ou pior). Este ano, também a macabra novidade de uns desmiolados se vangloriarem dos seus horrendos feitos no facebook ainda antes de serem presos. Mas isso é assunto para outro local deste jornal.

O facto é que nem todos os incêndios são de origem criminosa – e também não há nenhuma inevitabilidade na sua existência, os fogos florestais não são nenhum castigo divino. Depois do Verão catastrófico de 2003 (em que arderam 425 mil hectares de floresta, um recorde absoluto), o país revoltou-se e passou a combater o problema com novos meios. Então, e apesar de uma pequena recaída em 2005, a área ardida efectivamente diminuiu; paradoxalmente, esse sucesso levou a um certo relaxamento posterior – e este ano, a situação voltou a agravar-se. Tipicamente, fez-se o mais fácil, que no caso era atirar dinheiro sobre o problema reforçando-se os meios de combate – que recebem, ano após ano, 80% das verbas destinadas à protecção da floresta. Sempre mais esquecido fica o longo prazo, que exige paciência e planeamento: limpar, gerir, prevenir, estar presente no terreno durante todo o ano, trabalhando com as populações locais – as poucas que restam num país dramaticamente macrocéfalo onde o interior está exangue, os seus filhos vivendo e trabalhando em Lisboa ou no Luxemburgo.

A prevenção dos fogos é complementar ao seu combate, e sem aquela, nem os melhores Canadair podem salvar as serras lusitanas. Por isso mesmo, a ideia (surgida originalmente em 2004) de criação de uma força especial de bombeiros dedicada exclusivamente, e durante todo o ano, ao tratamento da floresta tenha voltado agora em forma de petição lançada por especialistas da área. Mesmo os mais cépticos, que duvidam da sua exequibilidade, admitem que algo terá de mudar sob pena de continuarmos a queimar – literalmente – um dos poucos recursos naturais de um país onde eles não abundam. É que a floresta não significa apenas ar puro, turismo e piqueniques, mas também toda uma fileira industrial que, segundo os números disponíveis, vale 10% das exportações portuguesas e dezenas de milhar de postos de trabalho. Números que pouco a pouco se esvaem em fumo enquanto assistimos angustiados a mais um inferno estival.