quinta-feira, 31 de outubro de 2013

E o Porto aqui tão perto

“Ai eu estive quase morto no deserto / e o Porto aqui tão perto”, canta Sérgio Godinho, repetidamente, na canção do mesmo título. A música é do trovador nascido na cidade mas, se as democracias soubessem cantar, a portuguesa não desdenharia interpretá-la também, já que acaba de ser (não diria ressuscitada mas pelo menos) redimida na eleição autárquica de domingo. Nesta, um independente chamado Rui Moreira
provou que o divórcio entre os cidadãos e a política, que é profundo, se confunde com a desconfiança que as pessoas sentem em relação aos partidos. E também foi provado, pela primeira vez, que os partidos não detêm o monopólio do poder em Portugal – câmaras lideradas por independentes não são uma novidade, mas nunca um cargo tão importante tinha sido detido por um.

É certo que Rui Moreira recebeu no fundo o apoio expresso de um partido (o CDS), mas não é menos verdade que essa influência não se fez sentir na campanha, nem tanto nas suas listas (compostas por “notáveis” da cidade oriundos de diversas áreas políticas, e não tanto por militantes). No seu discurso de vitória, o economista de 57 anos voltou a deixar um recado: “espero que os partidos tenham percebido o que se passou aqui hoje”. O que ele queria dizer é que a sociedade, pelo menos a portuense, se fartou de esperar que os partidos evoluam, se abram às pessoas, e sobretudo deixem de ser as federações de compadrios e interesses minadas por lutas intestinas que – por vezes injustamente, é certo – parecem ser.

Mas não é apenas por significar uma rotura com a exclusiva lógica partidária, como se isso fosse pouco, que a vitória esmagadora de Moreira representa um interessante sinal dos tempos vividos em Portugal. É-o também pelas filosofias representadas pelos seus adversários, Manuel Pizarro pelo PS e Luís Filipe Menezes pelo PSD. O primeiro apoiado por um partido que, oferecendo aos eleitores um afrouxar do estrangulamento da austeridade, capitalizou grande parte do descontentamento com o governo do país, conquistando quase metade das câmaras; o segundo era a dado ponto considerado “imbatível” pelo trabalho notável feito do outro lado do rio em Gaia, ou pelas propostas ambiciosas, de grandes obras combinadas com preocupações sociais, que encontraram eco numa população cansada do miserabilismo do presidente cessante.

Só que a palavra-chave das eleições no Porto foi “dívida”. Justa e injustamente, Menezes nunca conseguiu afastar a imagem que lhe colaram de “despesista”, e rapidamente a dívida da câmara de Gaia passou a ser assunto de conversa mais relevante que a revolução operada nos últimos 16 anos daquela cidade. Ao mesmo tempo, e mal ou bem, o Porto é orgulhosamente visto pelos seus habitantes como contido nas contas, mesmo um exemplo para um país irresponsável e gastador – desde logo na capital, cuja autarquia deve quase tanto como todas as outras câmaras juntas e isto apesar do orçamento de Estado (ou seja, todos os portugueses) pagarem grande parte das obras em Lisboa. No Porto, uma cidade hoje economicamente deprimida e crescentemente abandonada, há muito que se sabe que em Portugal não há prémios para os cumpridores, nem penalizações para quem faz batota financeira. Desse ponto de vista, a rejeição da Invicta aos amanhãs que cantam despesistas em favor do realismo prudente é a opção pelo caminho mais difícil, e merece ser justamente realçada.

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