terça-feira, 5 de abril de 2016

O alfaiate do Panamá


"O alfaiate do Panamá" é um produto bem feito, falemos do livro de John Le Carré ou do filme. No filme, que inclui um Pierce Brosnan a gozar com agentes secretos (ele que era à época o 007 de serviço), Geoffrey Rush interpreta um alfaiate que para melhor esconder os seus segredos tenta passar despercebido - mas cujas ganância e estupidez acabam por quase provocar uma guerra.

O alfaiate é uma metáfora do Panamá, um pequeno país aparentemente inofensivo (como um Luxemburgo da América Central, digamos) onde na verdade se esconde uma impressionante quantidade de dinheiro sujo – não gerado no local, evidentemente. São milhões de milhões que se escondem das administrações tributárias, das polícias, e das populações oprimidas de regimes tão opressivos como altamente lucrativos para os opressores. Escondem-se da decência, da ética e da vergonha.

As revelações deste domingo – os “documentos do Panamá” – são brutais, pela sua crueza, pela sua dimensão, mas sobretudo pelo que significam: uma gangrena. E o organismo gangrenado é todo o nosso modo de organização de sociedade, que (à falta de melhor descrição) englobarei dentro da descrição genérica “sistema capitalista”, cujos alicerces estão putrefactos. São 11 milhões e meio de nomes envolvidos, numa só empresa, num só paraíso fiscal. Uma empresa fundada pelo filho de um foragido da Alemanha nazi que é apenas a quarta maior do mundo neste tipo de negócios escuros; não é difícil imaginar que, quase sem excepções, os nomes conhecidos não mencionados na imensa quantidade de informação agora revelada aparecem nas listas de clientes das três maiores evasoras… ou qualquer uma das outras.

E é aqui que, em todo o seu esplendor, a realidade se nos revela. A narrativa do “não há dinheiro” é uma abjecta mentira, contada precisamente pelos mesmos que escondem esse mesmo dinheiro perto de palmeiras. O dinheiro existe, mas está parado, é improdutivo, serve apenas e só os interesses de 1% da população – mas como sabemos, esses 1% detêm (muito) mais de metade dos recursos do planeta. Estima-se que o total escondido em paraísos fiscais seja equivalente a duas vezes toda a riqueza produzida, por ano, em toda a União Europeia. Pausa para respirar e apreciar a frase anterior. E então percebemos porque nos contam que é preciso cortar nos sistemas de saúde por serem incomportáveis, que não haverá Segurança Social no futuro, que é preciso desmantelar todas as funções do Estado, desde a segurança à educação passando pelas infra-estruturas. Somos nós, o leitor e eu, cidadãos comuns, quem sustenta essas funções básicas, com todos os nossos impostos, taxas e multas, que não param de aumentar. Quem tem um pouco mais de dinheiro, qualquer que seja a sua proveniência, imediatamente se demite das suas responsabilidades perante a sociedade e, em vez de contribuir, esconde; em vez de retribuir à sociedade um pouco do seu sucesso, foge; em vez de ajudar, aproveita-se gratuitamente do que é pago por aqueles com vidas bem mais difíceis. É o velho problema económico do “free rider”, aquele que viaja de graça no avião pago pelos outros, mas agora de forma sistemática – ocupam todos os lugares de classe executiva.

Nunca o poder político quis acabar com esta podridão. Os paraísos fiscais da forma como os conhecemos são uma invenção dos anos 1930, foram e são utilizados por tudo o que é regime ditatorial ou “democrático” desde aí – e, desgraçadamente, sempre mais e mais. O tema tem vindo a tornar-se politicamente ensurdecedor, mas os corruptos políticos a que temos direito continuam a assobiar para o lado o máximo que podem, até que, muito pressionados, lá vomitam umas regras para inglês ver (e inglês contornar), algo que muda para que tudo continue na mesma.

Se há uma esperança que os documentos do Panamá nos permitem é a de uma pequena janela de oportunidade para reformar a situação putrefacta a que chegámos. Ao longo das próximas semanas, à medida que mais nomes serão envolvidos – já não apenas ditadores contrários aos interesses americanos, mas também bancos, farmacêuticas, políticos ocidentais, cabeças coroadas, celebridades aparentemente impolutas – a justa indignação vai obrigar a uma limpeza séria, finalmente. Mas há uma alternativa, claro: que a raiva se esvaia e tudo continue como até aqui. Afinal, como o alfaiate avisa no filme, “ninguém perde a sua reputação no Panamá: deixa-se a secar uns meses e depois volta-se a usar, como se nada se tivesse passado”.

O embaraçoso amigo turco


29 de Maio de 1453 é um dia que viverá para sempre na parte sombria da História cristã e, porque não dizê-lo, europeia. Foi o dia em que Constantinopla caiu, após um cerco de 53 dias, nas mãos do sultão otomano Mehmet (então um jovem de 21 anos). Foi a perda que significou fim o do império Romano, após quase 15 séculos de existência.

Há um novo sultão na Turquia, um país extraordinário em muitos aspectos mas assustador, na ausência de um Estado de Direito, em tantos outros. Erdogan, o todo-poderoso líder do partido (islamista) da Justiça e do Desenvolvimento, resiste no poder há 13 anos à cabeça de um aparelho que se auto-perpetua enquanto reprime e bombardeia parte da sua própria população (curda). O regime turco vai perseguindo e desmantelando os meios de comunicação social que ainda não lhe tecem loas encantadas, como acaba de fazer com o jornal mais lido do país, o Zaman – invadido e saneado, os seus jornalistas despedidos e acusados de assédio sexual, artigos apagados dos arquivos, e o “novo” jornal coberto de gloriosas fotos de Erdogan e de como a Europa se verga perante o estadista.

E o pior é que neste último ponto estão certos. Nós, europeus, não queremos acolher as vagas de refugiados que batem às nossas portas. Nós, europeus, também não sabemos como resolver o problema, não sabemos como estancar essas mesmas vagas, não diremos como a América de outros tempos “Dai-me os vossos fatigados, os vossos pobres, as vossas massas ansiosas por respirar livremente” (o poema na base da estátua da Liberdade, da autoria da luso-americana Emma Lazarus). Decidimos subcontratar o trabalho duro a outrem, e para o fazer vimo-nos de repente a negociar, e ceder, perante o autocrata de um país vigiado e inseguro.

A Europa convenceu a Turquia – através de miraculosas promessas e generosos pagamentos (6 biliões de euros…) – a servir de zona-tampão para filtrar as dezenas de milhar de sírios, iraquianos ou afegãos que todos os meses chegam às margens do Mediterrâneo. Cada refugiado saído da Turquia que conseguir chegar à Grécia de forma “irregular” será reenviado à Turquia, que em troca enviará um refugiado presente no país para a Europa, já de forma “regular”, até um máximo de 72 000 pessoas (a partir daí os europeus só aceitam mais refugiados se quiserem).

O acordo é muito frágil no plano legal (para ser suave). Pressupõe que a Grécia vai processar todos os indivíduos que ali chegarem, o que será tarefa hercúlea; pressupõe também que a Turquia seja considerada “país seguro de reenvio”, algo que manifestamente não é (nem assim é reconhecida por nenhum país da UE, tirando a Grécia, que é obrigada a fazê-lo). Depois, em termos práticos, um acordo que aceita 72 000 sírios, quando há neste momento 2,7 milhões refugiados na Turquia, não lhes oferece uma perspectiva suficientemente animadora. Ou seja, os sírios (e os restantes) continuarão a arriscar a vida pelo mar; e não será necessário esperar muito para que tal se torne evidente.

Mas o pior falhanço deste acordo não é legal, nem sequer prático, mas sim moral. Demitindo-se das suas obrigações e responsabilidades, os líderes europeus estão dispostos a pagar bem, a contornar o direito internacional e, sobretudo, a satisfazer as vontades de um governante insalubre, tudo para evitarem sujar as mãos acolhendo refugiados. A Europa fundou-se sobre valores éticos profundos, de respeito pela igualdade e dignidade humanas, da democracia e do Estado de Direito. Hoje em dia, atemorizada, prefere esconder-se atrás da ilusão de uma empresa de segurança colocada à porta. Uma das coisas que aprendemos na semana passada: não são os refugiados que devemos temer. Eles fogem precisamente de terror como aquele sentido em Bruxelas.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Só não sabíamos o onde e o quando

"Há algo mau que se passa. Vai a Paris. Vai a Bruxelas. Ali estas pessoas querem a lei sharia, querem isto, querem aquilo... Eu visitei Bruxelas há muito tempo, 20 anos, tudo era tão bonito. Agora é um buraco infernal".

Estas palavras foram proferidas em Janeiro por aquilo que há de mais próximo a um político inimputável: Donald Trump. E no entanto... Trump, pelo menos por uma vez (estatisticamente é sempre possível que isso aconteça), tem razão no diagnóstico, mesmo que não nas soluções. Há realmente algo de mau que se passa em Bruxelas, a tal ponto que até um demagogo perigoso como Trump consegue passar por balbuciar profecias em relação à cidade.


Sabemos que há algo de errado quando sabemos, antecipadamente, que a cidade e os seus habitantes vão sofrer um selvático atentado terrorista. Era o caso. Só não sabíamos o onde e o quando, mas sabíamos que iria acontecer. Mais, sabíamos que estava para breve. Quando digo sabíamos, refiro-me a todos nós os que passamos muito tempo neste "buraco infernal"; a detenção de Salah Abdeslam, o nojento operacional dos atentados de Novembro em Paris, tinha ocorrido apenas quatro dias antes e só veio acelerar o horror. Isto mesmo foi dito por vários responsáveis, e peritos em terrorismo, nos dias e horas que mediaram a detenção e as explosões.

Os atentados de ontem não são surpreendentes. Provocam uma dor enorme; provocam raiva, fúria, desejos de vingança, medo, pesar, desespero, luto e até, estranhamente, uma certa atitude de desafio, como o café que insisti em ir tomar ao meu café preferido, como o amigo que ao ler as notícias decidiu ir fazer jogging para o parque, como as pessoas que, aparentemente calmas, continuam a caminhar pelas mesmas ruas onde horas antes mais de 300 concidadãos foram chacinados ou feridos.

Mas não provocam surpresa. Não depois do que aconteceu em Paris, por duas vezes, em 2015. Não depois dos quatro mortos à queima-roupa no museu Judaico, em pleno centro de Bruxelas, em 2014. Não depois dos atentados evitados in extremis em Verviers e dentro de um comboio Thalys que ia de Bruxelas para Paris. Em comum, à primeira vista, todos estes actos abjectos têm algo em comum - foram idealizados em Molenbeek, e executados por islamistas provenientes de Molenbeek. Não é um acaso. Bruxelas sofre duplamente, por um lado com as doenças da Bélgica, por outro com as doenças da Europa.

A Bélgica é um Estado falhado. Eventualmente não ao nível desta classificação quando aplicada à Somália ou ao Sudão do Sul, dado que o país é mais rico e tem, na aparência, as estruturas que mentalmente associamos a um Estado-providência de cariz europeu - e esse é desde logo um dos problemas, o laxismo com dinheiros públicos que criou subsídios de desemprego para a vida e encorajou a réplica de radicais estruturas de clã marroquinas no coração de um Estado laico e liberal. Não é esse o único laxismo: a Bélgica não se reforma, deixa-se ir. Os túneis da cidade estão a desmoronar-se sobre os carros, porque durante 40 anos ninguém se preocupou em dar-lhes manutenção. Foram ficando. As polícias (porque só em Bruxelas há seis diferentes) são completamente ineficazes. Os tribunais são inoperacionais. As prisões estão cheias e não corrigem. Os serviços secretos permitem que indivíduos altamente perigosos, conhecidos de todos e ajudados pelas suas redes de subterfúgios, se passeiem impunes por meses.

Bruxelas é um caso particular, mas é também um símbolo genérico de uma certa Europa, uma Europa que sempre foi ingénua, que não pensou no longo prazo, que tem preguiça de agir pelos seus interesses vitais. Mas que também (ainda) defende muitos valores pelos quais nos tornámos um alvo: a liberdade, a tolerância, a igualdade, a união. Estão todos colocados em causa, mas é precisamente estes que temos de manter, a todo o custo, para que valha a pena sobreviver. Não nos podemos deixar intimidar. Não podemos dar parte de fracos. Nesta guerra aberta contra o islamofascismo, prevaleceremos.

Dinheiro caído do helicóptero

E se na rua um banco desconhecido lhe oferecer dinheiro? Isso não é um impulso, como diria uma antiga publicidade a desodorantes, mas sim uma tentativa ponderada de trazer de volta à vida as nossas estagnadas economias. E há um homem em Frankfurt que, agora que as outras estão a esgotar-se, talvez venha a convencer-se dos benefícios da ideia de distribuir dinheiro pelos cidadãos.

O homem em questão, Mario Draghi, do alto do seu cargo de governador do Banco Central Europeu, tem poder para o fazer. Mas terá mesmo? A Draghi teremos de estar sempre agradecidos por ter salvado, em 2012, o euro da desintegração com apenas três palavras (“whatever it takes”, ou seja, prometendo que o BCE faria o que fosse necessário para defender a moeda). A afirmação resultou porque era credível: os famigerados “mercados” sabiam que se havia uma vontade férrea para que o euro sobrevivesse, isso poderia ser feito. Quatro anos mais tarde, a situação é menos premente, mas mais complexa: o euro não corre perigo imediato, mas a Europa continua no pântano económico de um crescimento anémico e uma inflação quase inexistente (a nova previsão para 2016 é que os preços subam apenas 0,1%...), o que significa que estamos perto de um pesadelo: uma deflação persistente, aumentando os encargos com a dívida e paralisando a actividade económica pela incerteza que provoca quanto ao futuro. Por outras palavras, caminhamos direitinhos para repetir a “década perdida” do Japão, preso nas mesmas condições a partir de 1990 (e ainda não totalmente refeito das mesmas, já quase uma geração depois).

O Banco Central Europeu tem apenas um objectivo no seu mandato: manter uma taxa de inflação “abaixo mas próximo de 2%”. Está a falhar perigosamente, mas nem sequer é por inacção ou desinteresse. Os economistas de Frankfurt têm sido especialmente proactivos, entrando mesmo nas águas desconhecidas da “flexibilização quantitativa” (QE na sigla inglesa), que é basicamente um eufemismo para o acto de imprimir dinheiro novo e injectá-lo na economia através de bancos e compra de títulos. Na semana passada, ultrapassando mesmo todas as previsões mais arriscadas, o senhor Draghi atacou com todas as munições ao seu dispor, anunciando seis medidas diferentes para tentar fazer subir a inflação e aumentar a circulação de dinheiro. Todas estas medidas são históricas, ou seja, nunca tinham acontecido antes, e além da injecção de ainda mais dinheiro, incluem o facto de os bancos comerciais poderem agora pedir dinheiro emprestado ao BCE à taxa de 0%, sem qualquer custo… tudo para os incentivar a conceder mais crédito. O que acontece, no entanto, é que os bancos preferem agarrar-se a todos estes biliões vindos de crédito barato ou injecções estatais (públicas) para sanear as suas contas tóxicas e conceder bónus chorudos a administradores, ao invés de reemprestar o dinheiro à economia real.

Pouco importa. A influência do BCE já não é a mesma, e todas estas medidas (apelidadas carinhosamente de “a bazuca de Draghi”) não serão suficientes para nos tirar da estagnação. As verdadeiras boas notícias é que, ao anunciá-las, e reconhecendo desde logo que está a chegar o fim da linha das opções convencionais, Draghi não fechou a porta a uma ideia que é defendida por cada vez mais académicos e tem verdadeiras hipóteses de resultar: injectar dinheiro na economia, sim, mas distribuí-lo directamente às pessoas, sem passar pelo filtro poluidor dos bancos e instituições financeiras, que procuram que este dinheiro permaneça parado nas mãos de muito poucos.

É possível assegurar que novo dinheiro injectado beneficie cidadãos trabalhadores, consumidores, pensionistas ou desempregados. Três formas de o fazer: empréstimos directos à economia real através do Banco Europeu de Investimentos, a esquecida instituição europeia sediada no Luxemburgo; investimentos em infra-estruturas, cujo efeito multiplicador no crescimento é conhecido desde, pelo menos, 1933; e transferências directas a cada empresa ou agregado familiar de um montante a determinar – aquilo que é conhecido por “dinheiro de helicóptero”. Seria óptimo ter a minha conta bancária reforçada com, digamos, uns 10000 euros, senhor Draghi. Prometo gastá-los todinhos de formas produtivas – e nada de produtos chineses, isto se conseguir encontrar algo que ainda seja feito na Europa.

terça-feira, 8 de março de 2016

#NemUmaMais


Ontem foi Dia Internacional da Mulher. No mundo ocidental, o 8 de Março tem vindo a ganhar progressiva e saudável importância ao longo dos anos (curiosamente, na Europa de Leste a data está muito conotada com os antigos regimes comunistas e como tal é vista com desconfiança por parte da população). O dia serve diferentes propósitos, mas sobretudo permite parar para pensar e avaliar em que ponto estamos nisso da igualdade de género.

E o quadro continua negro.

É inegável que muitos progressos foram feitos, sobretudo nas últimas décadas (também mau seria…). Já não estamos na Antiguidade Clássica de Lisístrata, e muito nos separa das sufragistas que lutaram, por vezes com meios violentos, pelo direito de voto. O papel essencial das mulheres no domínio político e económico também já é (ou vai sendo…) reconhecido mundialmente. Tudo isto são conquistas árduas e meritórias.

Mas depois olhamos para os “factos duros” e somos forçados a perceber que muito está ainda por fazer. As últimas semanas têm sido pródigas em derrotas simbólicas para as mulheres; por exemplo quando alguma multinacional, como a Zara ou a McDonald’s, decide por razões puramente gananciosas criar produtos “neutros em género”, estes são invariavelmente uma capitulação ao gosto predominantemente masculino. Outro caso amplificado pelas redes sociais é a foto agora divulgada de Leonardo DiCaprio, aos dois anos de idade, carregado pelos pais; a “notícia” que se tornou viral não versa sobre o actor enquanto jovem, mas sobre as críticas às axilas não depiladas da sua mãe, como se esta não tivesse o direito de decidir sobre como tratar o próprio corpo (as guedelhas do pai nunca são referidas).

Esta exigência mais alta pode ser injusta, mas nem é nada comparado com o que se passa no mercado de trabalho, onde as mulheres participam, sim, mas continuam – não obstante legislação já antiga que procura assegurar “salário igual por trabalho igual” – a receber menos que os seus colegas homens. Quanto menos? As variações são grandes consoante o sector de actividade e o país, mas grosso modo será cerca de 25% a menos para o mundo todo, 15% se contarmos apenas os países da OCDE, onde alguns fazem fraca figura (Estónia ou Países Baixos, por exemplo) e outros ficam melhor na fotografia (os poucos dados disponíveis para o Luxemburgo apontam para uma diferença de 8,6%). No Reino Unido, novos cálculos afirmam que ser mulher pode significar, no total da carreira, auferir menos 400 000 euros que o seu colega masculino. É o preço de uma casa…

Mas ainda há pior, como o demonstrou um recente crime hediondo. Duas jovens argentinas foram agredidas sexualmente e depois assassinadas enquanto viajavam pelo Equador no final de Fevereiro. O caso comoveu grande parte da América Latina, mas os media relataram o caso, mais uma vez, culpando as vítimas – que “viajavam sozinhas”, por “sítios perigosos”, “brincando com o fogo”. Mas como podiam as turistas, maiores de idade e estando as duas juntas, “viajar sozinhas”? Tal nunca seria escrito sobre dois homens, mas se duas mulheres viajam juntas, parece que falta algo, e que os seus direitos se desvanecem – não têm elas o direito de ser respeitadas, de poder andar no espaço público sem receio, de manter o seu corpo intacto, nem sequer o de voltar a casa vivas?

Aparentemente ainda não. Por isso a missiva escrita por uma estudante paraguaia sobre o caso, e que começa com as palavras “ontem mataram-me”, é tão forte quão difícil de ler sem sentir lágrimas nos olhos. Por isso foram criadas nas redes sociais as campanhas #ViajoSola e #NiUnaMás. Ou seja, nem mais uma mulher duplamente vítima: de crime, e do machismo remanescente.

O Caso Spotlight


Um filme sobre três crises acaba de ser considerado o melhor do ano. O Caso Spotlight venceu, para surpresa generalizada, o Óscar de Melhor Filme, ultrapassando grandes produções – cheias de vedetas e efeitos especiais, muito mais ao gosto de Hollywood – como eram O Renascido ou Mad Max. Mas não é só por isso que a vitória de Spotlight numa competição industrial tão desacreditada como os óscares surpreende: é porque se trata de um filme sério, sóbrio, bem delineado, que não apela para os instintos mais básicos do espectador mas antes lhe desenvolve (e o envolve em) uma óptima história que o vai fazer pensar. Assim chegamos à primeira crise de que trata Spotlight: a do cinema, uma arte tornada produto, e um produto tornado de consumo rápido que deixa nos nossos sentidos um certo sabor a plástico. Mais do que isso, um produto esgotado de ideias, agora que o barril das sequelas de super-heróis já foi raspado até ao fundo. O óscar de Spotlight também acontece porque a indústria do cinema tem a consciência pesada (ainda mais por, no ano passado, não ter outorgado a estatueta ao ponto de viragem conceptual que representava “Boyhood – Momentos de uma vida”) e quer ser vista como também sendo capaz de gostar de filmes para gente grande.

Spotlight é um filme sobre a investigação feita por um jornal americano, o Globe, desvendando o escândalo de abusos sexuais cometidos por padres sobre menores na arquidiocese de Boston, nos EUA. O próprio filme, no final, refere que no total foram acusados em tribunal 169 padres, e referindo “mais de 1000 sobreviventes” na área (muitas das vítimas caíram em dependências várias e não viveram muitos anos). Naturalmente, estas revelações encorajaram muitas outras vítimas a ousarem falar, tendo escândalos similares sido revelados em outros locais do planeta. A crise subsequente, não obstante algum trabalho de reconciliação que tem sido feito, continua hoje a abalar os próprios pilares da Igreja Católica.

Não pretendo escrever sobre cinema, até porque o Raúl Reis já o faz muito bem neste mesmo jornal, que por sinal conta também com cronistas muito mais habilitados em dissertar sobre a acção da Igreja. A crise de Spotlight que me interessa é a terceira: a do jornalismo. A investigação do jornal durou seis meses, durante os quais a célula de jornalismo de investigação (quatro pessoas que podiam passar um ano sem escrever uma linha no jornal, um luxo já na altura, em 2001, e algo utópico nos dias de hoje) sofreu todo o tipo de pressões para abafar a história: desde advogados a outros jornalistas, passando por católicos devotos e antigos colegas de escola. Logo no início, ao ouvir as possíveis implicações do caso, o maior accionista do jornal avisa o repórter: “mais de metade dos nossos leitores são católicos… e eles não vão gostar de ler esta história”. O jornalista responde “acho que lhes vai interessar”.

Como se lida com a descoberta de uma verdade explosiva? Os jornalistas do Globe, entre eles o lusodescendente Mike Rezendes, ganharam o prémio Pulitzer, recompensando o “excepcional serviço público graças a um corajoso trabalho de investigação que furou o secretismo, provocando reacções internacionais e reformas nas instituições”. Triste é que talvez este trabalho não pudesse acontecer hoje, em jornais que baixam a circulação todos os meses, redacções depauperadas por cortes, histórias cada vez mais leves e patetas, e um clima de insegurança no emprego e pressão económica latente que faz dos jornais pouco mais do que caixa de ressonância do(s) poder(es), e das mulheres e homens que neles escrevem pouco livres, logo pouco capazes de exercerem o essencial papel dos media. Descobrir, denunciar, garantir, mostrar, explicar, enquadrar… contam-se pelos dedos os meios de comunicação que ainda o conseguem. Em Portugal, por exemplo, não há nenhum. Quantas conspirações, quantos escândalos acontecem à nossa volta sem que alguma vez o venhamos a saber?

Sabotar por dentro


“Deixe-me explicar-lhe algo, senhor ministro”, diz com ar divertido o funcionário público. “Estamos determinados a fazer tudo o que seja necessário para que a Comunidade Europeia não funcione; tentámos sabotá-la a partir de fora, mas não estava a resultar, por isso entrámos e agora sabotamos a partir de dentro. Dividir para reinar. Porque haveríamos de mudar a nossa política centenária, que tem funcionado às mil maravilhas?”

“Sim, senhor ministro”, como produto inteligente que é, resiste muito bem à passagem do tempo – mais até, a série da BBC continua actualíssima em muitos aspectos, e isto passados mais de 35 anos. O Reino Unido, ou para ser mais preciso, a Inglaterra continuam hoje a ter esta relação de amor-ódio com a Europa, e para ser ainda mais preciso, a relação oscila entre o puro interesse (comercial, financeiro, económico) e o ódio desabrido, porque amor, se existe, é muito pouco perceptível. E é precisamente a falta de amor o drama da situação actual.

Em Junho os eleitores britânicos vão ser chamados a uma tomar uma decisão enorme, um veredicto que, sem qualquer tipo de exagero, vai definir o curso da História. E não apenas dentro do próprio país – o resultado do referendo sobre a permanência na União Europeia vai também moldar o futuro desta, e em parte, do mundo inteiro. A decisão não vai ser discutida no plano da racionalidade. As organizações empresariais vão aconselhar o voto no “sim” (permanência na União) argumentando com os efeitos nefastos que uma saída traria aos números do emprego, do crescimento económico e das exportações. Os grandes partidos políticos tradicionais, desde o Labour aos próprios conservadores passando pelos liberais-democratas, vão de forma mais ou menos sincera apelar ao voto no “sim”, alegando a segurança, a posição geopolítica ou a capacidade de atrair investimento, todas potenciadas pela pertença à UE. Os analistas financeiros, receosos pela incerteza e já avisados pela queda da libra durante estes primeiros dias pós-acordo, vão aconselhar ao voto no “sim”. Os aliados norte-americanos já avisaram que a sua “relação especial” com o Reino Unido seria menos especial com o país isolado da Europa.

São tudo argumentos fortes e sólidos, que provavelmente inclinarão muitas pessoas a votar pela permanência. Mas o resultado final do referendo vai jogar-se num campo muito menos racional: grandes questões complexas, multifacetadas e de tantas implicações futuras que se tornam impossíveis de abarcar pelo mais bem informado dos cidadãos foram repentinamente reduzidas à simplificação máxima. Sim ou não? Branco ou preto? Dentro ou fora? Não há lugar a ponderação nem razoabilidade. O que significa que as emoções viscerais vão desempenhar um papel fortíssimo; o “amor” pela Union Jack, a nostalgia pelo império perdido, a repulsa por um imaginado ataque aos valores tradicionais da “old England” consubstanciado numa suposta fúria normalizadora e burocratizante de “Bruxelas”, e tantas outras questões sentidas pelas entranhas de cada súbdito de Sua Majestade e agitadas regularmente pela imprensa tablóide vão, muitas vezes, levar a melhor sobre previsões económicas feitas por peritos em quem, afinal de contas, o público confia cada vez menos.

Por razões mesquinhas de pura política partidária interna – para ganhar espaço eleitoral dentro de um partido conservador cada vez mais extremista –, David Cameron inventou um facto político que pensava ter sob controlo mas que na verdade pode muito bem terminar com um “não”, enviando repentinamente o país para um limbo económico e político (pois nessa altura a Escócia quererá separar-se do RU), ao mesmo tempo que enterra a UE num círculo vicioso de egoísmos e separatismos. Chama-se a isto brincar com o fogo. Daqui sairemos pelo menos chamuscados, talvez mesmo queimados.