quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Os automobilistas que paguem a crise

Em tempo de défices públicos crescentes, há muito que os Estados europeus encontraram uma forma aparentemente inesgotável de receitas: os infelizes automobilistas. As sacrificadas famílias que decidem deter um carro, ou os corajosos indivíduos que guiam um, vêem-se crivados de impostos, taxas, multas e imposições diárias. O exemplo mais gritante vem talvez de França, onde ser automobilista é hoje em dia um verdadeiro pesadelo (e não se fala aqui do trânsito caótico nas cidades ou das qualidades discutíveis do condutor francês médio, até porque há pior).

Fazer uma longa viagem de carro até Portugal, por exemplo, obriga-nos a atravessar dois grandes países europeus: França e Espanha. A passagem da fronteira de Hendaye para Irún, no fundo nada mais que duas localidades bascas, é no entanto muito vincada. Em França as auto-estradas têm quase sempre portagem, e bem alta; estão frequentemente (permanentemente, na Île-de-France) congestionadas; amiúde em obras; e sobretudo, pejadas de radares e de controlos policiais que, invariavelmente, incidem não sobre manobras perigosas mas sobre a velocidade instantânea de um veículo. A evolução das políticas para 2010 é a seguinte: cada litro de gasolina custará mais 11 cêntimos (tornando-a a segunda mais cara da União Europeia, depois dos Países Baixos) devido a uma nova “taxa sobre o carbono”; o número de radares, actualmente em 1400, duplicará em apenas um ano; os controlos de velocidade também aumentarão. Questão de segurança? Não, pura e simplesmente uma questão de dinheiro – dinheiro para os depauperados cofres do Estado francês, com as suas contas sempre no vermelho.

Se aceitarmos que os números de óbitos na estrada é uma medida fidedigna das políticas de segurança rodoviária, a repressão extrema – e custosa – praticada no Hexágono em relação a tudo o relacionado com o automóvel não está a resultar. Segundo números da Comissão Europeia, nos últimos 12 meses as mortes na estrada baixaram no país apenas em 1% – o quarto pior resultado da EU a 27, e apenas ligeiramente melhor que Grécia, Bulgária e Roménia. Na verdade, a comparação com o velho rival que segue na estrada uma filosofia de responsabilização em vez de repressão, a Alemanha, é embaraçosa para a França: quase os mesmos números absolutos de vítimas na estrada, quando há menos 20 milhões de gauleses, e quando as auto-estradas alemãs, mais antigas e em grande parte sem limite de velocidade, são cruzadas por camiões de toda a Europa…

Por vezes é possível encontrar cartazes nalgumas estradas secundárias em França: “Automobilistas = vacas leiteiras. Estamos fartos!”. Mas são precisamente os produtores de leite e não os automobilistas que estão na linha da frente da contestação social (e física) ao Estado. Talvez por isso uns paguem e outros sejam subsidiados.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Reinventar o Rio de Janeiro é uma ideia maravilhosa


O Rio vai organizar os Jogos Olímpicos em 2016 e esse atribuição de responsabilidades à Cidade Maravilhosa, tão bem-vinda quanto relativamente inesperada, vai consistir no primeiro grande projecto de renovação – mais do que isso, de reinvenção – urbana deste século XXI. Claro que as anteriores Olimpíadas realizadas em Sidney, Atenas e Pequim, bem como a de 2012 a ter lugar em Londres, provocaram também grandes mudanças na face destas grandes aglomerações humanas, mas o que está em causa no Rio de Janeiro é diferente: trata-se de recuperar, renovar e relançar – não tenho pejo em dizê-lo, trata-se de salvar – um dos locais míticos da Terra, a casa (e não por acaso Ruichi Sakamoto escolheu uma foto do Rio ao amanhecer como capa do seu excelente disco “Casa”...) de cerca de 12 milhões de pessoas em toda a sua área metropolitana. Uma casa que oscila entre a mansão em ruínas e o bairro social degradado.

O Rio de Janeiro, capital brasileira por mais de 200 anos até 1960, a capital do Império português por 13 anos (1808-1821), a capital simbólica e espiritual da brasilidade, da América do Sul e de toda uma certa forma de ver e viver a vida, o local de nascimento do “malandro” e da bossanova, a detentora do título oficioso de “cidade mais bela do mundo”: a grande cidade está marginal, maltratada e maltratante, estar lá é uma prova de coragem e resistência, não só um privilégio. É uma cidade bloqueada com problemas profundos, e os Jogos Olímpicos constituem a sua grande oportunidade. O que está em jogo é enorme: simplesmente, tornar a cidade no desejável epicentro de um novo Brasil poderoso e global, cuja economia deverá ser a quinta maior do mundo em 2016. Banco Mundial dixit.

A tarefa é titânica. Para os Jogos propriamente ditos, os maiores problemas a resolver são a falta de segurança (um eufemismo, numa das cidades mais violentas do mundo), os caóticos e poluentes transportes à base de autocarros (o metro é limitado) e as insuficiências de alojamento (faltam 20 000 camas em hotéis). Mas há também questões ambientais gigantescas na cidade que acolheu a primeira grande conferência mundial sobre o ambiente, em 1992. Os JO vão proporcionar a motivação ideal para despoluir as águas da baía de Guanabara e da lagoa Rodrigo de Freitas. Mas claro, as gigantescas favelas continuarão sem água potável ou recolha de lixo, muito menos vão deixar de existir. Os Jogos não resolvem problemas sociais, só podem – e não é pouco – mudar uma cidade. Só que para isso é preciso muita pasta, e o Brasil pensa investir 246 mil milhões de euros a preços correntes no Mundial de 2014 e nos Jogos de 2016; o mesmo dinheiro chegaria para construir sensivelmente 35 TGVs portugueses, ou 70 aeroportos de Alcochete. O importante, dizem, é mesmo competir.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Uma década de Barroso

Há um português que faz parte daquele restrito, muito restrito grupo de governantes verdadeiramente globais que podem (querendo e sabendo) influenciar as grandes decisões a tomar – por exemplo em alturas de grave crise económica – e que aparecem em todas as fotografias que realmente interessam – como aquela na famigerada cimeira dos Açores que decidiu a invasão do Iraque, juntamente com Bush, Blair e Aznar. Esse português chama-se José Manuel Barroso e foi reeleito na semana passada como presidente da Comissão Europeia por mais cinco anos. Em 2014, os europeus terão visto nada menos que dez anos de Barroso como presidente da instituição que é o tradicional motor da construção europeia, longevidade de que apenas o primeiro presidente da Comissão, o alemão Walter Hallstein, e o mais conceituado de todos, o francês Jacques Delors, se podem igualmente gabar.
Claro que existir um "presidente da Comissão Europeia português" é relevante pelo prestígio internacional; e também é possível, embora não demasiado provável, que a acrescida influência política do país possa ser importante para, por exemplo, assegurar sempre importantes fundos de coesão para Portugal. Acresce que Barroso era o único candidato proposto, o que significa que terá alguns méritos. Esses argumentos são esgrimidos sempre que um português balbucie algo que possa ser assemelhado a criticismo ao primeiro mandato barrosista. E no entanto…
No entanto, poucos europeístas estão especialmente entusiasmados com a reeleição de um presidente que viu a Comissão perder, uma vez mais, protagonismo e cuja reacção à crise financeira foi tardia, tímida e muitas vezes ignorada; uma Comissão que passa um teste crucial em duas semanas, devido ao referendo na Irlanda, e que se for aí bem sucedida terá de conviver com um Conselho Europeu ainda mais poderoso; uma Comissão que não tem um verdadeiro troféu para apresentar relativamente aos cinco anos passados, e cujo presidente é acusado amiúde de "não ter uma ideia para a Europa e ter passado demasiado tempo preocupado com a sua reeleição" (Die Zeit) ou de ser "apenas o joguete nas mãos de Angela Merkel" (Wolfgang Münchau do Financial Times, e Münchau não é qualquer um). O Le Monde refere-se a um dos seus epítetos políticos – o de "camaleão". Ao elegê-lo, o Parlamento Europeu exigiu-lhe efectivamente que mude, não de cor (o bronzeado de Barroso é sempre leve) mas de políticas. Veremos se daqui a mais cinco anos a oportunidade terá sido aproveitada.