terça-feira, 11 de setembro de 2012

É a austeridade, estúpido!


“É a economia, estúpido” tornou-se uma das frases políticas mais conhecidas de sempre, criada pelo estratega de campanha eleitoral de Bill Clinton, quando o então comeback kid conseguiu a improvável proeza de, partindo de uma base eleitoral pequena e relativamente pobre dos Estados Unidos, derrotar todos os adversários democratas e finalmente, já nas urnas em 1992, também o presidente em exercício, George Bush (pai) – o homem que apenas um ano antes tinha atingido taxas de aprovação na ordem dos impensáveis 90% e não compreendia por que razão estava agora em dificuldades nas sondagens.

Clinton lembrou-lho. A frase, criada para consumo interno, acabou por tornar-se no mote da campanha: Bush não iria conseguir renovar o seu mandato presidencial porque os EUA estavam em recessão. O repto, é necessário sublinhá-lo, não encerra em si um insulto pessoal; a palavra “estúpido” marca a evidência da incontornável explicação. Ou seja, em vez dessa, poderia lá estar a palavra “obviamente!” – porque o problema era, obviamente, a economia.

O governo português descobriu, espantado, que não vai conseguir cumprir o valor do défice prometido às instâncias internacionais – e decidiu anunciar uma ronda de cortes cegos que vão afectar os suspeitos do costume, ou seja, trabalhadores por conta de outrém, funcionários públicos, reformados, todos os rendimentos provindos do trabalho (mais uma vez, os rendimentos do capital escapam incólumes), e no fundo toda a gente; todas as pessoas que juntas constituem uma sociedade e uma economia, pessoas de carne e osso que respiram e riem e sonham e vivem e consomem e - a cada decisão maldosa das elites que os manipulam – fazem um pouco menos de cada.

Se uma pessoa têm (muito) menos rendimento disponível, perdido na enxurrada de um enésimo aumento de impostos para alimentar o pântano de Lisboa, e se ainda por cima não tem alegria no presente ou confiança no futuro, vai consumir menos. Todos estes efeitos individuais somados, o impacto é brutal – a economia portuguesa vive em grande parte do consumo interno, como dele vivem grande parte das suas pequenas e médias empresas que não têm vocação exportadora. Estas, não vendendo, vão continuar a fechar a ritmo de hip-hop, lançando ainda mais pessoas no desemprego, obrigando o Estado a custos acrescidos com subsídios sociais. Simultaneamente, do outro lado, a actividade económica abranda, o Estado cobra menos impostos, as receitas descem – e a própria doença que queríamos resolver, o défice público, cresce inexoravelmente, lançando a necessidade de nova ronda de medidas correctivas.

Neste ponto, justiça seja feita ao governo português, que apesar de ser actualmente um dos mais radicalmente dogmáticos do mundo ocidental, ocupa apenas uma carruagem no enorme comboio da economia neoclássica que preconiza a mesma fórmula cega, contraproducente e sem histórias de sucesso para contar: orçamentos equilibrados custe o que custar, desmantelamento, empobrecimento, regressão. Em nome dos míticos objectivos da “confiança expansionista” - que não cria empregos nem crescimento - cada vez mais sacrifícios são pedidos, e há um certo espanto quando o paciente económico não apenas não melhora, como parece piorar constantemente. E no entanto para este pequeno mistério a resposta até é simples: é a austeridade, estúpido!

A RTP já não existe e ainda ninguém a avisou


A silly season de Agosto em Portugal tem três assuntos incontornáveis: incêndios, férias e a nova época futebolística. É adequado, porque em geral está calor e o cérebro merece descanso das preocupações trazidas pela política ou pela economia (ou melhor dito, por ambas). O governo do país aproveitou a distracção geral para lançar a discussão sobre um problema que urge resolver, lançando assim a guerra que está apenas a começar em nome do conceito - tão sacrossanto quanto mítico - do "serviço público de televisão".

O conflito acontece porque mais uma vez alguém tenta tocar na vaca sagrada chamada RTP - e quando tal sucede este lóbi, poderosíssimo no país, mobiliza todas as forças para morder quem ousou perturbar o seu sono profundo. Historicamente, a gigantesca empresa sai sempre vencedora destes braços-de-ferro, por vezes mesmo reforçada no seu rico imobilismo, e nada leva a crer que será diferente desta vez - até porque a carta ideológica foi imediatamente jogada, com todos os partidos à esquerda do centro político a saltarem a terreiro para defender o tal ideal mítico - que erroneamente, mas não por acaso, confundem com a velha empresa.

Não tem de ser assim. Sobretudo, não deveria ser assim. Olhemos de frente alguns factos: nos últimos dez anos, a RTP teve um prejuízo acumulado de 3770 milhões de euros. Para ajudar a medir a brutalidade de tal montante - suportado pelos contribuintes portugueses e europeus - consideremos outros dois valores ao acaso: no novo hospital de Barcelos, de média dimensão, foram investidos 50 milhões; e os custos dos mais caros filmes produzidos no país rondam o milhão de euros. Grosso modo, poderíamos afirmar que em vez de pagar a José Carlos Malato e outras pseudo-estrelas salários principescos de 28 mil euros por mês (4 vezes o do presidente da República), o Estado português poderia ter construído na última década 75 hospitais. Ou financiado 3770 filmes para promover a nossa cultura. Ou ainda construído uma rede de comboios rápidos para servir todas as cidades do território, ficassem elas no interior ou no litoral.

O que obtemos nós, cidadãos, por tanto dinheiro? Exactamente o mesmo que nos canais dos botõezinhos do telecomando mesmo ao lado: os mesmos concursos alarves, telenovelas, touradas, o mesmo entretenimento contínuo e embrutecedor, o mesmo jornalismo sensacionalista - só que com ainda menos profissionalismo ou isenção, seja esta política ou desportiva. "Serviço público" não é o telelixo; seria sim produção própria (de documentários ou investigação, não de novelas), uma defesa coerente da língua portuguesa, uma preocupação com a qualidade, a diversidade e os públicos minoritários (em vez da ditadura das audiências); algo como a RTP2, com um orçamento low cost, consegue raramente ser. E também - em vez de uma RTP Internacional que, na sua ideologia salazarenta, mostra ao mundo um Portugal de "quatro paredes caiadas" (em) que nenhum português (se) deseja ver ou rever - uma difusão para a diáspora portuguesa do melhor que se faz em televisão no país, viesse de que canal viesse. Mas não temos nada disto.

No fundo, a relevância da RTP terminou simbolicamente no dia em que o sinal televisivo foi aberto à concorrência, há vinte anos. Hoje, com audiências que não chegam a um décimo das de 1986, perante uma geração que olha muito mais para o ecrã do computador que para o televisor, se a RTP desaparecesse de um dia para o outro poucos se lembrariam dos seus canais ao fim de um mês; em certido sentido, na filosofia absolutista do "tudo para toda a gente" com que foi criada, já não existe há muito. Só ainda não se apercebeu que não passa de um espectro.

Morto a 4 de Julho


Não sou eu quem vai negar que os cínicos se sentem à vontade na política, mas por vezes esta também permite que a democracia representativa puxe dos seus galões, as elites decidam dar ouvidos aos cidadãos e os interesses destes prevaleçam sobre a ganância corporativa. Não acontece muitas vezes – e como tal, quando acontece, merece ser realçado.

A 4 de Julho, data mítica da independência dos Estados Unidos da América, o Parlamento Europeu reuniu-se em Estrasburgo pela última vez antes das férias de verão e fechou a época em beleza, ferindo de morte o acordo de comércio anti-contrafacção (ACTA, na famigerada sigla em inglês). O voto do hemiciclo europeu foi tão esmagador (478 votos contra, apenas 39 a favor, e 165 abstenções) quanto certeiro; Vital Moreira, o cabeça de lista socialista que no PE tem servido como verdadeiro testa-de-ferro das grandes corporações e obteve a duvidosa honra de ser o único deputado em toda a metade esquerda da sala (bem como o único de todos os deputados portugueses) a votar a favor, admitiu-o: "este acordo, neste formato, está morto".

O monstro que caiu trespassado a 4 de Julho era uma lei negociada às escondidas nos últimos meses por obscuros políticos e agentes não eleitos que trabalham para defender os interesses não dos eleitores, não dos cidadãos, mas sim das grandes multinacionais. Uma lei ratificada em tempo recorde - para que ninguém tivesse tempo para sequer se aperceber do que estava a acontecer, quanto mais para protestar - por quase todos os países ocidentais, entre eles 22 europeus; uma lei redigida em termos propositadamente vagos para que o poder discricionário da repressão fosse ainda mais vasto. Disfarçado de "acordo de comércio", coberto com uma fina camada de "anti-contrafacção" (para que a Europa, detentora da maior fatia de propriedade intelectual do mundo, engolisse melhor a pílula), o ACTA servia como (mais) um instrumento poderoso para retirar direitos a cada um de nós e atirá-los para o confortável regaço de governos sem rosto e corporações sem escrúpulos. O texto tencionava transformar os fornecedores de acesso à internet em polícias da rede, responsáveis por tudo o que nela aparecesse - e prontos a cortar o acesso, sem recurso possível, a quem eles bem entendessem. As indústrias musical e filmográfica passariam a ter a última palavra sobre tudo o que pode circular na net; a indústria farmacêutica, não satisfeita com o seu nível obsceno de lucros, poderia impedir o acesso dos mais necessitados a medicamentos genéricos, e a indústria agro-alimentar poderia cortar a utilização de muitas sementes "patenteadas", o que lhe daria um efectivo controlo sobre as colheitas e a cadeia alimentar.

A beleza poética é que a espada que derrotou este monstro foi espetada pela única instituição europeia directamente eleita pelos cidadãos, os mesmos que endereçaram sete petições ao PE - uma delas reunindo uns absolutamente impressionantes 2,8 milhões de assinaturas - exigindo a rejeição do ACTA em nome dos direitos humanos e da liberdade de expressão. Sim, esta batalha foi ganha, mas o império contra-ataca: nos EUA já há uma nova tentativa da indústria, chamada IPAA, a ser empurrada para os comités do Congresso antes que alguém repare; na Rússia, há apenas uma semana, foi aprovada uma lei que permite ao governo fechar qualquer sítio web dissidente. E na Europa, o fantasma do ACTA também regressará, fatalmente. Não baixemos a guarda.