segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A chantagem da dívida


Os líderes europeus reuniram-se neste domingo para aprovarem um pacote de ajuda monumental à economia irlandesa. 85 milhões de euros. Os irlandeses já não têm empregos, e mais uma vez na conturbada história do país recomeçaram a emigrar. As atenções dos mercados, ou dos especuladores, ou dos inimigos do euro e da União Europeia – os três conceitos confundem-se demasiadas vezes – já estão totalmente viradas para as próximas vítimas: Portugal e Espanha. Mas afinal o que provoca todas estas notícias apocalípticas?

Os Estados soberanos estão endividados. Isto não é necessariamente mau - na verdade um certo nível de alavancagem financeira é racional e desejável, tanto para indivíduos como para empresas para Estados. Ou seja, o endividamento óptimo não é zero. O problema é que, e deixando a análise do “porquê” para outra altura, o endividamento é demasiado alto e dura há muito tempo. Traduzindo: o Estado irlandês - e português, e espanhol, e alemão, e todos - precisa de dinheiro. E precisa dele agora.

Um indivíduo que necessite de crédito imediato pode encontrá-lo em vários locais: num banco a uma determinada taxa de juro, junto de família ou amigos (por vezes a uma taxa de juro nula, mas com riscos de ordem social), junto de usurários mais ou menos mafiosos (geralmente em condições draconianas e que podem implicar acabar no fundo do rio em caso de incumprimento)... Os Estados, por seu lado, financiam-se nos “mercados de capitais”, também em condições de verdadeira usura, emitindo obrigações para compradores - os títulos da dívida pública especificam daqui a quanto tempo é que o Estado paga de volta, e a que juros. Ora, estas obrigações estão sempre a vencer e para as pagar no momento devido, é preciso existir fundo de maneio. A Grécia teve de recorrer ao maciço Fundo de Estabilização do Euro porque tinha de reembolsar, em Março último, empréstimos contraídos há dez anos. Se naquela altura o fundo não tivesse sido criado, a Grécia tinha declarado bancarrota: não iria cumprir com os seus compromissos (tal como a Argentina fez perante o mundo em 2001, contra a vontade do FMI). E aí teria sido, pela interligação dos bancos mundiais à economia grega, o início da queda dos dominós. Idem para a Irlanda, Portugal e Espanha - sussurrando-se já também os nomes “Itália” e “Bélgica”.

Portugal, e todos os outros, continua muito regularmente a reembolsar os seus empréstimos contraídos há algum tempo. Para o fazer, bem como para estourar dinheiro em brinquedos novos como um novo aeroporto ou salvar um banco privado de ir à falência, precisa de... contrair mais dívida. É esse o problema agora. Portugal precisará, em 2011, de encontrar 40 mil milhões de euros - 75% dos quais para reembolsar empréstimos antigos, o resto para o défice do Estado. E se quem lhe empresta dinheiro exige tantos juros (mais de 7%) para compensar o “risco de incumprimento”... o fardo torna-se insuportável. A emigração portuguesa vai acelerar.

domingo, 21 de novembro de 2010

“Portugal”. Uma obra-prima?

Talvez isso não tenha sido muito discutido na altura, mas Maio de 2010 foi um maná para a Arte na Grande Região. Em apenas uma semana daquele mês, a primeira, foram inaugurados dois museus, um deles bonito, o outro verdadeiramente magnífico. Mas ambos são espaços de visita e fruição que brilham mais intensamente durante um fim-de-semana chuvoso.

O museu bonito chama-se Villa Vauban e fica em pleno parque municipal do Luxemburgo. Claro, o edifício já existia – é uma bela villa urbana construída em finais do século XIX por uma rica família austríaca que fez a sua fortuna vendendo luvas – e até já servia, entre outras coisas, de museu, com quadros de Canaletto e Delacroix. A renovação profunda custou mais de 14 milhões de euros e quadruplicou o espaço de exibição, mas não melhorou a colecção; ainda assim, uma visita a uma sexta-feira à noite, com entrada grátis e aperitivos oferecidos, será sempre um plano interessante a partir de Dezembro, quando o museu reabrirá com uma nova exposição.

A outro nível, naturalmente (até orçamental – custou 70 milhões), encontra-se o novo Centro Pompidou de Metz, filial do famoso museu de arte moderna em Paris. O extraordinário edifício projectado pelo arquitecto japonês Shigeru Ban impressiona pela sua graça, cortesia de um telhado que parece moldável – a lenda diz que Ban se inspirou “num chapéu que encontrou numa loja de Paris” – e retira volume a um edifício de quatro andares. Metz, sonolenta cidade de província, é a mais recente a procurar o “efeito Guggenheim”, em que um novo museu-monumento é a ignição da mudança da face de uma cidade, como aconteceu em Bilbao.

O Pompidou Metz teve o privilégio de, para a sua exposição inaugural, escolher o que quisesse na extensa colecção (a maior de arte moderna na Europa) da casa-mãe em Paris, e percebe-se que os seus responsáveis se sentiram um pouco como o proverbial puto em frente à montra da pastelaria: quero levar aquele, e aquele, e mais aquele... o resultado é uma exposição sem coerência, cujo ténue conceito, sob o título “Chefs-d’Oeuvre?”, é o de analisar o conceito de “obras-primas” – se tal classificação ainda faz sentido, e também se ela é eterna. Pelo caminho, é possível ver algumas das obras que fizeram a História da Arte – e a exposição tem tido tanto sucesso que foi prolongada até 17 de Janeiro.

Em dado local do museu, ao longe, uma parede apresenta enormes formas coloridas que fazem lembrar mulheres com xailes e parelhas de bois. Uma peixeira leva uma canasta na cabeça. O título confirma os motivos familiares: “Portugal”, obra monumental (e gigantesca) de Sonia Delaunay. Fugindo à I Guerra Mundial, os Delaunay viveram por ano e meio em Vila do Conde em 1915, partilhando casa e vivência com Eduardo Viana, Almada Negreiros e o malogrado Amadeo de Souza-Cardoso, os grandes pintores portugueses da altura. Sonia Delaunay imortalizou “o período mais feliz da sua (longa) vida” naquele mural colorido. Uma obra-prima.

Vão-se os dedos, ficam os anéis

Muito se tem discutido sobre o estado de espírito “pessimista” que se vive actualmente (ou seja, mais do que de costume) em Portugal. Também se têm adicionado outros adjectivos: miserabilista, revoltado, apocalíptico… da minha parte, penso que a melhor descrição para o país ainda é “surrealista”. De facto, não tenho melhor forma de classificar a reiterada intenção de prosseguir com a construção de um novo aeroporto para Lisboa e de uma linha TGV Lisboa-Madrid ao mesmo tempo que o Estado em tudo corta e de quase todas as funções se parece demitir.

Não há heróis nesta história, só vilões. O actual Governo português chegou a um acordo com o maior partido da oposição de forma a viabilizar no parlamento do país o orçamento de Estado para 2011. A proposta de orçamento é nitidamente draconiana, incluindo mais um aumento de impostos – nomeadamente do IVA, mas também eliminando muitas deduções fiscais em sede de IRS – e um princípio de desmantelamento do Estado social “de estilo europeu” construído em Portugal durante o regime democrático. O maior partido da oposição obteve algumas concessões governamentais para “suavizar” os efeitos drásticos do documento na vida das empresas e famílias – por exemplo, aplicando os limites a deduções fiscais apenas aos rendimentos mais altos (não deixando de ser curioso que seja um partido de centro-direita, o PSD, a exigi-lo a um partido supostamente de centro-esquerda, o PS).

Mas estas alterações são cosmética. Chegados à questão das famigeradas parcerias público-privadas (PPP) em que o Estado arca com o risco e com grande parte do investimento de um grande projecto enquanto os privados o constroem fisicamente, abocanhando todos os proveitos futuros, os dois grandes partidos preferiram continuar a satisfazer os grandes consórcios de obras públicas: já a partir de 2014 disparam os encargos com a dívida necessária para pagar novas autoestradas no interior e sobretudo um aeroporto e uma linha de TGV que são luxos incomportáveis e cuja construção ainda é evitável, mas sem que ninguém pareça ter juízo para a deter.

Mesmo no Reino Unido, um país certamente menos empobrecido que Portugal mas com uma infraestrutura de transportes incapaz, a construção de uma linha de alta velocidade que ligaria Londres a Birmingham (300 km) vai ser abandonada na conjuntura actual, dado que por cada euro investido só há um retorno de dois euros (uma autoestrada retornaria seis). Na Grécia, um país em situação económica similar à portuguesa, chega-se a considerar a venda desesperada de ilhas para poder fazer face à dívida. Em Portugal, país descrito por um antigo primeiro-ministro (e actual presidente da Comissão Europeia) como estando “de tanga”, reduzem-se salários já de si baixos, fecham-se escolas e hospitais, encolhe-se o consumo e a economia… mas continuam a planear-se obras faraónicas centradas em Lisboa. Mais do que de tanga, estas elites políticas só podem é estar na tanga.

Viagem ao centro da Terra

“Axel –disse o professor, numa calma imperturbável – a nossa situação é quase desesperada; mas há algumas possibilidades de salvação, e é a elas que me agarro. Se é verdade que a qualquer momento podemos sucumbir, também o é que a qualquer instante poderemos ser salvos.”

Assim falava o professor Lindebrock no livro de 1864 “Viagem ao centro da Terra”, de Júlio Verne. Mas poderiam ter sido palavras proferidas em 2010 por Luís Urzúa, o homem que aos 54 anos de idade (e 30 passados nas minas) liderou os mineiros chilenos por 69 dias de soterramento. Urzúa, um homem moldado na adversidade extrema – o pai comunista e o padrasto socialista foram assassinados pelos esquadrões da morte de Pinochet – foi o último a ser resgatado ao local do cativeiro, a 700 metros de profundidade, no epílogo de uma viagem ao centro da Terra em jornada laboral que se transformou em catástrofe. O mais difícil aconteceu logo nas primeiras duas semanas – incomunicáveis, sem que ninguém soubesse onde eles estavam, Luís racionou a comida que detinham: cada um dos 33 mineiros recebia duas colheres de atum, meio copo de leite e meia bolacha a cada dois dias. Alguns beberam água das máquinas, misturada com combustível. Quando foi finalmente escavado um pequeno túnel de contacto, os mineiros escrevinharam um papel que, ao chegar à superfície, arrepiou o mundo: “Estamos bem no refúgio os 33”. Talvez algum dos mineiros tenha até a verve literária de um Júlio Verne – veremos certamente em breve, dado que os contratos para livros e filmes sobre a sua história chovem sobre estes novos heróis. Por enquanto, uma pequena linha de texto sem pontuação escrita a marcador vermelho já foi suficiente para nos emocionar. Demonstração do poder da mensagem.


A extraordinária história dos 33 mineiros chilenos (para ser mais preciso, um deles é boliviano) vai ficar, na verdade, marcada a tinta vermelha na nossa consciência colectiva porque é uma saga heróica, admirável, que realça algumas das qualidades mais belas da essência humana. Eles precisaram de nós, e nós não os abandonámos: os poderes públicos, empresas privadas como a Collahuasi (que forneceu o seu equipamento sem cobrar nada), engenheiros, cientistas, jornalistas, e um público global que seguiu avidamente e com mensagens de apoio a sorte dos cativos constituíram um formidável esforço de mobilização que foi recompensado. Esta é uma vitória do espírito humano e também de uma das suas conquistas, a ciência: estamos em 2010 e a nossa espécie consegue, hoje em dia, fazer algumas coisas extraordinárias, corrigir erros passados e contribuir para a felicidade de todos. Que bela variação das habituais notícias sobre guerras, desastres e orçamentos. Que belo nome para o acampamento que recebeu os mineiros à superfície: Esperança.

Choque e temor



No seu livro de 2007 “Doutrina de Choque: a ascensão do capitalismo de desastre”, a canadiana Naomi Klein atira para cima do economista Milton Friedman e dos seus “Chicago boys” a grande responsabilidade para muitos dos males da globalização, acusando-os de procurarem impor a sua agenda económica ultraliberal aproveitando desastres naturais ou graves crises provocadas pelo homem – como guerras, por exemplo. Aproveitando um período de tempo relativamente curto em que as populações estão ainda em estado de choque e em temor pelo futuro próximo (shock and awe), os neoconservadores aplicam a sua receita, imutável qualquer que seja a situação: equilíbrio imediato dos orçamentos a todo o custo, redução sistemática do papel e peso do Estado na economia, desregulação total dos mercados, a começar pelo financeiro... as mesmas políticas que contribuíram directamente para o quase colapso do sistema financeiro mundial em 2008, portanto. A festa foi de arromba e a conta continua, pouco a pouco, a chegar para ser paga: a Irlanda acaba de anunciar que o seu Estado, outrora tão orgulhoso dos impostos reduzidos para empresas, vai salvar o Anglo Irish Bank da falência com fundos públicos – o que significa que o défice deste ano vai provavelmente atingir uns inacreditáveis 32% do PIB do país. Voltar ao equilíbrio vai ali exigir muito mais que “austeridade”, a palavra-chave de 2010 que muitas vezes apenas mascara uma outra: “declínio”.

Na quarta-feira, milhares de pessoas, impelidas por sindicatos de toda a Europa, convergiram em Bruxelas para declararem que não estão (ainda) tão em estado de choque para que não possam protestar contra as medidas de austeridade extrema que governos de toda a UE, com o português à cabeça, estão a anunciar. Os cerca de 80000 manifestantes insurgiam-se contra serem mais uma vez os mesmos – classe média, funcionários públicos, assalariados, pensionistas, menores de idade – a pagar por uma crise que não pediram nem criaram. O temor, por seu lado, é que políticas marcadamente restritivas vão provocar o “duplo mergulho” – uma nova recessão, quando a retoma era ainda muito frágil ou nem tinha ainda chegado a muitos países. Este é um círculo vicioso particularmente corrosivo: cortes na despesa provocam uma quebra imediata na procura e uma subida do desemprego (23 milhões de empregos perdidos na Europa desde o início da crise); tal provoca uma subida dos gastos com prestações sociais (como o subsídio de desemprego) ao mesmo tempo que trava a actividade económica, o que por sua vez vai reduzir o montante de impostos arrecadado pelo Estado; ou seja, os défices públicos ainda sobem mais, exigindo nova “austeridade”, o que vai recomeçar o círculo.

O choque está aí, o temor (pelo futuro) também. Sim, reformas dolorosas são cruciais para restaurar a confiança nos mercados e a solidez das instituições. Mas cortar, cortar e cortar indiscriminadamente é, neste momento, o pior que os governos europeus poderiam fazer. Arriscamo-nos a viver uma longa noite de “austeridade” provocada por opções erradas.

Palavras insensatas, círculos viciosos

8000 pessoas de etnia cigana expulsas de França em 2010. O Papa fez, em francês, um apelo à tolerância da diferença, subtilmente dirigido à França; um intelectual alinhado com o presidente francês alegou que “João Paulo II talvez pudesse condenar deportações, mas um papa alemão não tem esse direito”. O tom ficou ainda mais feio depois da intervenção da Comissão Europeia, que tem a obrigação de defender os Tratados – e consequentemente, a livre circulação de cidadãos entre os Estados-Membros, bem como o respeito das minorias. Barroso falou em “responsabilidade” e na necessidade de “não despertar os fantasmas do passado europeu”. A resposta áspera do ministro francês dos Negócios Estrangeiros foi, já de si, exemplar dos tempos estranhos que vivemos na arquitectura democrática europeia: “A Comissão pode dizer o que bem lhe apetecer. A França é um país soberano e não está em tribunal”. Um dia depois, a luxemburguesa Viviane Reding ameaçou pôr mesmo a França perante o Tribunal de Justiça, sedeado no Grão-Ducado. Mas foi a descoberta de uma instrução do ministro do Interior francês para o “desmantelamento de 300 acampamentos ilegais com prioridade aos ciganos” que forneceu a prova de imoralidade que faltava e fez Reding perder a cabeça. “Esta é uma situação, julgava eu, a que Europa não teria de voltar a assistir depois da II Guerra Mundial”. Seguiram-se segundos de silêncio estupefacto. Até porque a Europa, desgraçadamente, já assistiu (e o problema é que o verbo é mesmo esse, em vez de “interviu” ou “resolveu”) a muito pior: aconteceu entre 1992 e 1995 no território da antiga Jugoslávia.

A Comissão demarcou-se subtilmente das palavras da luxemburguesa, que se retratou ela própria no dia seguinte. Mas o debate já não é o mesmo. Mais uma vez, tornámos um problema ainda mais complicado ao compará-lo com o incomparável – o mal absoluto encarnado no nazismo. Não por acaso, a lei luxemburguesa proíbe a menção gratuita aos campos de concentração nazis na imprensa; é uma medida sensata que ajuda a que a discussão se mantenha em níveis sensatos. Livre de bom-senso, Sarkozy continuou a senda de disparates e ofereceu os ciganos ao Luxemburgo, “já que eles gostam tanto deles”.

Entretanto, os problemas dos ciganos (também chamados de Roma ou Romani) agudizam-se. Os indicadores socioeconómicos estão abaixo da média europeia em tudo o que importa: saúde, educação, esperança de vida, emprego, rendimento. E acima em criminalidade. Aqui nasce a discriminação da sociedade, que vem gerar ainda mais exclusão, que gera mais criminalidade, e assim por diante... o círculo vicioso tem de ser quebrado em algum lugar, possivelmente pela integração escolar – em Barcelos, por exemplo, a turma “exclusivamente cigana” acaba de ser misturada com outras. Medidas populistas como a deportação em massa, em compensação, só agravam um problema cigano que é também, incontornavelmente, um problema europeu. Não podemos dar-nos ao luxo de marginalizar ninguém, precisamos de todos para construir uma Europa competitiva.

E se o Benelux passasse a... Bruvaflanelux?

A Bélgica decidiu assinalar a rentrée com uma das especialidades locais: um espectacular falhanço político que coloca em causa, mais uma vez, a própria existência do país enquanto tal. Depois de nos anos 1940 a união aduaneira entre Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo ter criado o “Benelux”, servindo ao mesmo tempo de percursora para a União Europeia, o antes impensável torna-se cada vez mais possível: significaria retirar o “Be” e adicionar três novas abreviaturas à sigla, Bru(xelas), Va(lónia) e Fla(ndres).

Rápida cronologia dos acontecimentos: eleições em Junho revelam um país partido entre a esquerda na Valónia (o PS) e a direita radical na Flandres (o novo fenómeno eleitoral do NV-A), condenados a entenderem-se na premente reforma do pesadíssimo Estado belga, bem como na criação de um governo que assegurasse a presidência rotativa da União Europeia. O rei cria a nova figura do “pré-reformador”, a personalidade que procurará um acordo de Estado, tarefa que cai nos braços do líder do PS: Elio di Rupo junta 7 dos 8 maiores partidos do país (3 valões, 4 flamengos) para discutir concessões dos dois lados da barricada. Em 58 dias de trabalho, aconteceu de tudo neste “comité de pré-reforma”, desde os momentos de descontracção (como a partilha de doces trazidos de umas férias na Turquia da líder do CDH) aos de amargura apocalíptica (“Se não houver acordo sobre o estatuto de Bruxelas, preparem-se rapidamente para o fim do país”, ameaçou De Wever, líder flamengo).

O acordo esteve perto. A proposta final do “pré-reformador” di Rupo era ambiciosa e continha imensas concessões dos valões aos flamengos, impensáveis há apenas três anos: abandono das prerrogativas linguísticas nas comunas em redor de Bruxelas, transferência imensa de competências (e de mais 15 mil milhões de euros) do Estado central para as regiões, a promessa de uma nova lei de financiamento, e um montante (250 milhões de euros) para refinanciar a depauperada capital do país. Na prática seria uma nova Bélgica moldada à imagem flamenga, e convenceu cinco dos sete partidos. Mas no último dia, sexta-feira, o NV-A e o CD&V rejeitaram o histórico acordo. Di Rupo apresentou a sua demissão no mesmo dia, e o rei voltou a chamar líderes políticos ao seu palácio. O castelo de cartas ruiu mais uma vez, a possibilidade de (mais umas...) eleições gerais é real; e na grande questão que paira há tempos - os partidos flamengos agitam o fantasma do separatismo para obter ainda e sempre mais ganhos políticos ou desejam mesmo o fim da Bélgica? -, a segunda hipótese ganhou mais adeptos. Uma frase do discurso de demissão de di Rupo ainda ecoa nos ouvidos belgas: “Espero que possamos continuar a viver juntos em paz”. Preparem-se para o possível impensável, parecia querer dizer.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Força, icnitos de dinossauro!

Portugal tem 13 locais protegidos classificados como Património Mundial da Humanidade pela Unesco. É uma espécie de best of do país no que ele tem a mostrar ao mundo em termos de profundidade cultural e assombrosa espectacularidade. Se o caro leitor vai poder passar férias de verão no extremo ocidental da Europa, sugere-se vivamente que disfrute de pelo menos um deles; se não tiver férias, bom, poderá sempre visitar as casamatas da cidade do Luxemburgo, o único bem classificado do Grão-Ducado. Bélgica (sobretudo a Flandres e Bruxelas), Alemanha e França estão muito bem representadas nesta lista de 890 tesouros do nosso planeta, embora no caso da última, os dois mais próximos fiquem apenas em Nancy e Estrasburgo. Na Alemanha, tenho um fraquinho pela antiga siderurgia em Völklingen, perto de Saarbrücken; convertida em museu industrial, proporciona fotos magníficas e é um exemplo do que também poderia ser feito em Belval…

A Madeira entra aqui com o único bem português de património natural, a sua floresta de laurissilva, que mostra a ilha como ela era antes da colonização. Todos os outros locais inscrevem-se na lista de património cultural: o primeiro a ser classificado, logo em 1983, foi o centro histórico de Angra do Heroísmo – e isto pouco tempo depois do terramoto que, a 1 de Janeiro de 1980, o destruiu parcialmente mas veio também chamar a atenção para a sua existência. Os Açores também apresentam orgulhosamente o último local a entrar para a lista até agora (em 2004), a paisagem vinhateira da Ilha do Pico, feita à custa da força braçal e muita determinação. Para descrever os dez locais classificados em Portugal continental faltam os superlativos: centros históricos do Porto, Guimarães e Évora, mosteiros de Alcobaça e Batalha, convento de Cristo em Tomar, torre de Belém e Jerónimos em Lisboa, paisagem cultural de Sintra, arte rupestre em Vila Nova de Foz Côa e o Alto Douro vinhateiro constituem algumas das nossas mais preciosas contribuições ao mundo e são sítios a ver, fruir, respirar, viver.

O engraçado é que, enquanto estamos aqui a conversar sobre isto, a Unesco organiza desde domingo passado (e até dia 3 de Agosto) a sua reunião anual para avaliar novas candidaturas. Decorre em Brasília, a primeira cidade moderna a entrar para a lista, mas cuja preservação, no cinquentenário da cidade de Niemeyer e Lúcio Costa, está em risco. Outras propostas de inclusão incluem as grandes minas da Valónia. E Portugal tem uma candidatura conjunta com Espanha para as jazidas de icnitos (pegadas) de dinossauro nas serras de Aire e Arrábida. Torná-los Património da Humanidade seria uma grande vitória, algo para celebrar nas ruas com uma camisola de Portugal… Vamos, icnitos!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

0010 - Licença para jardinar

A História repete-se sempre – e da segunda vez, é em forma de farsa. A arrepiante máxima confirmou-se estes dias devido a uma troca de espiões descobertos entre os EUA e a Rússia. Nada de sobretudos cinzentos por entre o nevoeiro, um em cada direcção, caminhando na ponte de Berlim que ligava os dois lados da Guerra Fria; os dez espiões russos encontrados nos EUA, encobertos sob nomes falsos como “Donald Heathfield” no caso de Andrey Bezrukov, viviam pacatas vidas suburbanas em família (um dos vizinhos afirmou à tv não acreditar que se tratassem de agentes porque “repare no jeito que têm com as flores do quintal”) e, na verdade, eram tão incompetentes nas suas funções que nem sequer conseguiram ser formalmente acusados de espionagem. As escutas telefónicas que, entre outras provas, os desmascararam mostram diálogos que podiam ter sido saídos de uma sátira à espionagem internacional como O Nosso Homem em Havana, livro de Graham Greene (cuja primeira versão era aliás passada na Lisboa neutral da Segunda Guerra) que deu origem ao muito aconselhável filme O Alfaiate do Panamá. A ideia já não era transferir segredos nucleares entre duas superpotências a ponto de destruírem o mundo, mas tão-somente “descobrir qual é o opinião sobre a Rússia nos círculos políticos”. As informações que encontraram podiam ter sido obtidas simplesmente lendo jornais de qualidade.

O caso – descoberto no final de Junho – começou por embaraçar a Rússia, apanhada a espiar o seu (agora supostamente aliado) americano, e a fazê-lo de forma desastrada. Num país onde o SVR ou o FSB, as organizações herdeiras do KGB, são motivo de orgulho nacional e legitimidade política, a publicidade e os apartamentos moscovitas que estes ex-falsos americanos vão agora receber do Estado não caíram bem na opinião pública. O contra-ataque russo, no entanto, virou o resultado em uma semana: o país obteve o repatriamento dos seus agentes organizando a primeira troca de espiões desde 1985 – aconteceu na quinta-feira numa pista de aeroporto em Viena, e eu acredito que a cidade foi escolhida como homenagem encapotada a (outra vez) Graham Greene, que escreveu O Terceiro Homem (e este filme não é apenas aconselhável, mas absolutamente essencial). Mas em cima da mesa apenas estavam quatro prisioneiros de índole diferente e mais política, já que não há agentes encapotados para oferecer – é muito mais difícil a um ocidental disfarçar-se de russo que o contrário. Conhecidos espiões ocidentais, por sua vez, continuam atrás das grades, entre eles alguns dos britânicos que foram descobertos a utilizar um emissor/receptor camuflado numa rocha de um parque em Moscovo, em 2006.

A segunda profissão mais antiga do mundo, florescente, vai poder retomar o curso normal de actividades, e a Rússia ganhou a batalha diplomática – até porque seguindo a lógica do primeiro-ministro Putin, também ele um antigo espião, “se os nossos agentes forem apanhados, nós vamos certamente enviar outros. E pode ser que os novos sejam mais espertos e mais difíceis de apanhar”.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O desporto-rei vai nu

Evitei até agora tornar o desporto em tema desta coluna, não por falta de interesse, mas por achar que já demasiada gente diz disparates sobre o tema. Um campeonato do mundo de futebol, a decorrer, parece-me no entanto uma boa altura para quebrar esta regra. Até porque há aqui algo errado.

Rebobinemos até Junho de 1986, quando tem lugar, sem que ninguém disso se aperceba na altura, o último Grande Mundial de Futebol da História. Para o entusiasta do desporto-rei, o México 86 oferece tudo: jogadores carismáticos em quase todas as equipas, jogos épicos que entram para a “memória essencial” do adepto que se preze – França-Brasil nos quartos-de-final (2-1), por exemplo –, golos eternos (o de Maradona com a mão, o slalom do mesmo jogador no mesmo jogo contra a Inglaterra…), incertezas e reviravoltas no marcador, e golos: uma média de 2,54 por jogo, muito poucos 0-0 (apenas três), resultados como 6-1, 4-3, 3-2; e ainda insólitos, com uma selecção a entrar em greve (a portuguesa, em Saltillo). Tínhamos no Mundial o supra-sumo do futebol, o culminar de quatro anos de esforços para encontrar a melhor equipa, o mais importante objectivo da carreira de um jogador e treinador, e um festim para o adepto (naqueles tempos a tv quase não transmitia outros jogos). Atenção, não era (ou pelo menos não era somente) por aquela falácia de “representar o país” que toda a gente dava o seu melhor; era porque ali estava a cimeira, a exposição e o cartão de visita deste grandioso desporto.

O jogo mudou, uniformizou-se e aborreceu-se. Em 2010, como em 2006, 2002, 1998, 1994 e (especialmente) 1990, o anticlímax é quase diário; a antecipação gerada por imaginar duas grandes equipas/jogadores em confronto directo acaba, na maioria das vezes, numa decepção. Um Portugal-Brasil soa a alegria, risco, prazer, excitação, mas em 2010, este jogo (reunindo no mesmo espaço muitos dos supostos melhores praticantes do mundo) é um elogio ao medo, ao aborrecimento, à previsibilidade; e isto já não tem a capacidade de nos espantar, o 0-0 final passa desapercebido entre os outros, e é mesmo muito celebrado. Afinal, o que interessa é que “os nossos” passem e “os outros” sejam eliminados. As multidões ululantes que se reúnem em frente a ecrãs um pouco por todo o mundo pouco gostam (ou sequer entendem) de futebol, estão sim interessadas no folclore: o nacionalismo simplista que se alia às cores do equipamento e da bandeirinha. Mas se até o Brasil joga como se fosse a Itália, se todas as equipas jogam à espera de marcar um golo num erro do adversário e defender o precioso 1-0 até final, se os diferentes estilos das diferentes escolas nacionais se tornam indistintos, e se os países alinham com tantos jogadores oriundos de outros lugares, qual é sentido de uma competição futebolística entre nações? É preciso recuar a Orwell: “o desporto é o substituto da guerra, sem os tiros”. O Mundial cumpre a sua função, mas de futebol tem cada vez menos.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O improvável dueto belga

Um cartoon do desenhador Kroll publicado na própria noite das eleições de domingo na Bélgica resumia em parte o espírito que se vive no país. Ao contrário dos desenhos habituais, a cena está claramente dividida em duas partes, com um traço grosso a meio; do lado esquerdo, alguém se agarra às pernas do magríssimo Elio di Rupo, líder do PS francófono que venceu as eleições na Valónia, e diz “Socorro, Elio! Contamos contigo!”. Do lado direito, os personagens incentivam um homem com uma barriga enorme, Bart De Wever, líder dos nacionalistas flamengos do N-VA: “Vamos lá, Bart! Contamos contigo!”. Os dois lados esperam dos seus campeões algo de completamente oposto.
Di Rupo é uma espécie de última esperança de salvar a Bélgica da forma que ela actualmente (não) funciona, de manter as “linhas vermelhas” das quais os valões não querem abdicar: manutenção da segurança social, da fiscalidade (que é a mais pesada do mundo sobre o trabalho), dos direitos linguísticos das minorias à volta de Bruxelas.
De Wever é o terramoto político que sacode as águas e foi eleito por quase 30% dos flamengos para… acabar com a Bélgica. O N-VA foi criado em 2001 e, em apenas nove anos e três eleições federais, tornou-se o partido mais votado no país; o seu objectivo central é a secessão pacífica da Flandres e a sua independência dentro de uma Europa unida. No domingo, os líderes valões apressaram-se a relembrar que “70% dos flamengos não votaram em De Wever”. Mas a mensagem do eleitorado flamengo é clara – estamos fartos, dizem; é preciso reformar o país, e/ou acabar com ele. De Wever falou mesmo em “dois países que devem agora encontrar um acordo”. E tal não pareceu um lapso linguístico. Do outro lado, ripostou-se: “Se a Flandres sair, a Valónia juntar-se-á ao Luxemburgo!”.
O problema da Bélgica está aqui reflectido: não há uma democracia, mas duas; o eleitorado francófono está na fase da negação e vota nos socialistas francófonos, símbolos de um (insustentável) Estado-providência, numa tentativa de manter o status quo; do outro lado do ringue, o eleitorado flamengo escolhe tudo mudar, tomando decisões unilaterais e, se necessário – e a possibilidade torna-se cada vez mais real – desfazendo o país. O vastíssimo campo central do consenso e da negociação está abandonado, não porque falte bom-senso, mas porque ele teve muito tempo para agir – e falhou. A Bélgica está bloqueada há demasiado tempo, enredada nas suas contradições internas; agora, este duo de perfeitos opostos, o magro socialista francófono e o gordo nacionalista flamengo, são a estranha proposta para desbloquear o(s) país(es).
Afinal, há uma dívida federal de 99% do PIB a pagar pelas gerações futuras, há uma dívida regional de mais um terço deste valor, há uma crise económica europeia e mundial para combater, há um mundo em constante mudança. E sobre tudo isto, na campanha belga não se ouviu nem uma palavra.

Agora começa a ser a sério


"O fracasso do euro significaria o fim da Europa". Angela Merkel acordou para as duras realidades dos mercados financeiros e começou finalmente a explicar aos alemães porque é que é essencial salvar os gregos, os portugueses, os espanhóis e todos os governos europeus que andaram a gastar por conta (o ex-secretário do Tesouro britânico, um trabalhista, acaba de deixar uma singela mensagem por carta assinada ao seu sucessor conservador: "Caro secretário: já não há dinheiro". No Tesouro do Reino Unido, entenda-se).

A retórica política passou de repente de soporífera a explosiva: até há bem pouco tempo, a enunciação da palavra "fracasso" era raríssima entre os líderes europeus, e conjugar sequer a possibilidade do "fim da Europa" seria sinal de extremismo ou irresponsabilidade. Mas os tempos estão a mudar – e cada vez mais rápido. Merkel pronunciou as suas palavras em plena entrega (ao primeiro-ministro polaco Donald Tusk) do prémio Carlos Magno em Aachen, ocasião solene que celebra a causa e o espírito europeus. Outros líderes têm contribuído para um sentimento apocalíptico. "A França ameaçou sair do euro se a Alemanha não interviesse", foi a inconfidência de Zapatero; "A Europa atravessa a sua pior crise desde a Segunda Grande Guerra", disse no domingo o presidente do BCE, Trichet, conseguindo ainda adensar o tom histórico. O timing, pelo menos, foi bom: o fim-de-semana que passou foi mesmo absolutamente histórico e a Europa respondeu a um grande mal com um grande remédio e um gigantesco passo em frente.

O grande remédio é um comprimido absolutamente colossal feito de 750 mil milhões de euros. Para se ter uma pequena ideia, o valor representa cerca de quatro vezes o PIB de Portugal (e 20 vezes o do Luxemburgo), foi constituído com fundos comunitários, do FMI (o que significa também de EUA, Canadá e Japão) e dos Estados-membros da UE, e será utilizado para dar liquidez a países incapazes de se financiar no mercado – ou seja, salvá-los. Mas o mais interessante é o grande passo em frente: o primeiro no sentido de uma verdadeira união política e económica europeia. O euro foi criado há 11 anos e já prestou muitos e bons serviços às nossas economias, mas está incompleto: uma união monetária não pode sobreviver a longo prazo com comportamentos divergentes e sem a correspondente união de políticas económicas. Este "fundo monetário europeu" – e as condições de disciplina que a Alemanha vai estabelecer para o criar – é o início dessa união, e já provocou que alguns países tenham em alguns dias dado reviravoltas de 180º e deixado de brincar aos endividamentos. O governo português, por exemplo, adiou para as calendas... gregas... os projectos faraónicos de uma nova ponte e aeroporto, que insistia em manter enquanto aumentava impostos e cortava na despesa. Mais uma vez, Bruxelas provou ter muito mais juízo que Lisboa.

Diário de um maratonista acidental

Começo por avisar que não sou um corredor. Regra geral, e bem vistas as coisas, acho que uma boa posta à mirandesa ganha sempre à partida contra uma vida regrada em que a recompensa é simplesmente a virtude, e conheço poucos prazeres mais urbanos – e genuínos – que uma longa noite de copos entre amigos. Não é que não goste de desporto, muito pelo contrário, simplesmente sempre me atraíram os jogos em que há duas equipas e uma bola a saltar em qualquer lado, e nunca percebi bem o prazer de simplesmente correr, em linha recta, sem nenhum outro fito que não seja o de… correr.
Estou no entanto impressionado com o que as provas de atletismo podem fazer para dinamizar uma cidade, nestes novos tempos em que estas competem entre si para atrair pessoas, acontecimentos, movimento, publicidade, negócios. Uma corrida bem pensada e publicitada segue o princípio estatístico minimax: minimiza as possíveis perdas – afinal, as ruas já estão construídas e são os cidadãos quem cria o acontecimento – e maximiza o ganho potencial, ao pôr a cidade no mapa, trazendo tantos turistas ocasionais como uma final europeia de futebol (e os corredores, com as suas famílias, até são bem mais pacíficos). Até o pequeno Luxemburgo já o compreendeu, encorajando (mas pouco…) uma maratona que na sua edição 2010, há duas semanas, sempre contou com 8000 corredores.
Por curiosidade, decidi inscrever-me numa prova que tem crescido de popularidade a cada ano (as inscrições, para 30000 vagas, abriram a 1 de Março e esgotaram no mesmo dia!). Os 20 km de Bruxelas apresentam um percurso que liga as zonas mais verdes e as mais endinheiradas da capital europeia. A organização deixa pouco ao acaso, com reabastecimentos regulares aos atletas e um pequeno chip electrónico que permite controlar os próprios tempos (e aos amigos seguirem a prova em tempo real no facebook). Restava, portanto, correr 20 quilómetros. Quão difícil pode ser?A resposta é: bastante difícil. Sobretudo para quem (como eu) decide sair na noite anterior, ou para quem (como eu) leva demasiado à letra as recomendações para “comer massas” e engole enormes quantidades de macarrão algumas horas antes da prova, acompanhadas de fatias de salmão fumado. Passei 12 km em luta com o estômago, até que as dores agudas nos joelhos e nas costas começaram a exigir mais atenção. Ainda assim acabei a prova, no mesmo dia em que escrevo este texto, e se bem que as pernas recusam-se agora a fazer o mais pequeno serviço, valeu a pena: pelo espírito especial do dia, pelas demonstrações de força interior e vontade humana que testemunhei, pela emotividade da chegada sob os aplausos e os incentivos da multidão. E porque Bruxelas se torna muito bela em tons pseudo-heróicos. Da próxima, só preciso de me lembrar para não comer mais salmão.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Pequena introdução a um país surrealista

"De todos os povos da Gália, os Belgae são os mais valentes", escreveu Júlio César nos seus "Comentários à Guerra da Gália". Inspiradas pelas palavras do imperador romano, as grandes potências europeias ressuscitaram as tribos celtas denominadas por Belgae quando, em 1830, precisaram de arranjar um nome para o território secessionista a sul dos Países Baixos: Bélgica. O nome, o país e o novo rei (escolhido numa lista de candidatos e importado da Baviera) eram, de qualquer forma, transitórios, dado que o novo país aglomerava diferentes populações sem cultura ou laços comuns, nem grande interacção mútua, entre francófonos, flamengos e germanófilos. Um embaixador da Grã-Bretanha, interessada sobretudo em que o território não caísse nas mãos da rival França, declarou mesmo que a Bélgica "foi criada para durar uns 15 anos".

180 anos depois, o problema da incompatibilidade entre (sobretudo) dois campos populacionais não só persiste mas até se agravou em determinados aspectos. Devido a factores históricos, culturais, linguísticos, económicos, ou simplesmente surrealistas - e não há país mais magritteano que este, a começar pelos seis governos e parlamentos que operam no país -, a Bélgica é hoje um país politicamente bloqueado, a tal ponto que a esperança em resolver o cerne da mais recente discórdia reside... em fazê-lo quando não há governo, ou seja, durante o presente vazio de poder depois do pedido de demissão (o quinto na sua curta carreira) do primeiro-ministro Yves Leterme.

O cerne da questão é, há três anos, a região de Bruxelas: em volta da capital mas já fora da região "Bruxelas-Capital" e sim na região "Flandres" - e graças a um círculo eleitoral e judicial denominado "Bruxelas-Hal-Vilvorde" - há várias comunas onde os francófonos - que constituem por vezes a maioria, a ponto de elegerem burgomestres francófonos, que em seguida não são empossados pelos flamengos - usufruem aí de direitos linguísticos minoritários (como o voto em partidos francófonos). A Flandres, na lógica territorial que enferma todas as discussões no país, quer acabar com estes direitos, enquanto os valões propõem aumentar a área do enclave (maioritariamente francófono) de Bruxelas. E na quinta-feira, perante a ameaça flamenga de votar unilateralmente a partição do distrito BHV, usaram a "campainha de alarme", último recurso da Constituição, em que uma minoria pode bloquear a maioria (sempre flamenga) e pedir um adiamento por 30 dias até que o governo resolva uma questão. Como daqui a 30 dias ainda não haverá governo, o destino dos três anos de discussões é... o caixote de lixo.

Hoje, o terreno comum entre as duas comunidades é tão pequeno, as discussões são tão estéreis, e a ausência de personalidades que façam a ponte entre os diversos interesses tão aguda, que a desintegração do país é uma possibilidade real. Os diversos cenários para que isso aconteça serão assunto de próxima crónica.

terça-feira, 20 de abril de 2010

2010: o ano sem verão

É bem possível que o caro leitor venha a ouvir falar várias vezes nos próximos tempos do ano da graça de 1816, o “ano que não teve verão”. 1816 foi um ano tão estranho quanto terrível: o frio ininterrupto provocou a destruição das colheitas, a fome generalizada, motins em França, Inglaterra e Suíça para obter comida, e epidemias de tifo. O Reno esteve congelado até junho, inundando depois disso devido às chuvas torrenciais. A temperatura média em Inglaterra nos três meses de verão foi de 13 ºC. No início de julho, Goethe escreveu no seu diário: “Hoje o sol brilhou pela primeira vez este ano”.

Houve duas razões para um ano tão anormal. A primeira foi a de em 1816 se estar em pleno período de actividade mínima solar denominado “mínimo de Dalton”; actualmente e desde 2004, atravessamos um outro período semelhante denominado “mínimo moderno” – o ciclo de manchas solares atingirá provavelmente o seu ponto mais baixo em 2010, começando a crescer até 2013 ou 2014.

A segunda razão foi mais importante: a erupção do vulcão Tambora na ilha de Sumbawa, na Indonésia. O Tambora expeliu para a atmosfera toneladas de cinzas, areia, pedras e substâncias tóxicas – a nuvem atingiu as altas camadas da atmosfera e os ventos espalharam-na por todo o planeta, deixando passar muito menos raios solares.


O querido vulcão islandês a quem afectuosamente já podemos chamar “nosso”, o Eyjafjallajökull (eyja=ilhas, fjalla=montanhas, jökull=glaciar, em islandês) é apenas um pequeno vulcão que os islandeses consideram parcialmente extinto. A sua erupção, que continua uma semana depois e tanto pode acabar aqui como demorar meses, teve o condão de bloquear mais de meia Europa, afectar os planos de milhões de pessoas e deixar de joelhos, com perdas de 200 milhões de euros por dia, companhias aéreas que mal tinham saído de uma recessão. Os fantásticos pores-do-sol amarelos e laranja da semana passada são apenas uma amostra das alterações climáticas que um vulcão pode provocar. Mas e se a erupção fosse mais forte? Bem…


No último século, o Eyjafjallajökull entrou em actividade três vezes. De todas, acabou por contagiar o cercano e muito mais poderoso vulcão Katla, cuja hipotética erupção alteraria repentinamente a vida como a conhecemos: não apenas o transporte aéreo, com todas as suas implicações, mas o próprio clima, a alimentação, o combustível, as migrações forçadas… tal como aconteceu em 1816.


O lado positivo do “ano sem verão” foi o impulso que deu à cultura. Mary Shelley escreveu “Frankenstein” porque não parava de chover durante as suas férias na Suíça, e as paisagens amarelas pintadas por Turner continuam impressionantes.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Como treinares o teu urso alemão

O mais recente filme saído dos estúdios da Pixar, estreado há poucos dias no Luxemburgo, chama-se “Como treinares o teu dragão” (How to manage your dragon). Não é um conjunto de conselhos para Jesualdo Ferreira, mas parece que o título serve também de código entre a equipa económica de Obama para as delicadas relações com a China, em que esta será o “dragão”. A Europa tem um desafio parecido, interno e mais premente: como lidar com a Alemanha, o país mais importante da União Europeia sob vários aspectos, nomeadamente os económico e populacional. Um país especial que se vem tornando mais “normal”, e isso traz consequências para os seus parceiros.
A Alemanha actual já não está agrilhoada pelo seu terrível passado; a geração no poder viveu na sua juventude 1989, o ano da queda dos muros, e embora carregue ainda aos ombros algum sentimento de culpa colectiva, dá passos firmes no sentido do renascer de um orgulho benigno. O exército desfila em Paris e participa em missões no estrangeiro (Afeganistão); durante o campeonato de 2006, os germânicos agitaram a sua bandeira negra, vermelha e dourada como verdadeiros discípulos scolarianos (os portugueses aliás também, o que enfureceu alguns sectores da intelligentsia luxemburguesa). Mais significativo: a Alemanha, verdadeira inspiradora de uma Europa funcionando como enquadramento e caixa amplificadora da sua relevância mundial, está um pouco cansada de pagar as facturas e, para desespero dos que querem uma UE forte e agindo em bloco, tem interesses de curto prazo muitas vezes divergentes dos europeus e age, qual França ou Reino Unido, apenas em função destes.
A Grécia descobriu-o da forma mais dura – e Portugal pode seguir-lhe os passos. A depauperada economia grega sofre e a ajuda financeira é mitigada e tardia, sob o signo do redutor argumento “as cigarras gregas podem reformar-se aos 57 anos, enquanto as formigas alemãs terão em breve de trabalhar até aos 67”. Não há dúvidas de que são precisas alterações dolorosas nas economias do sul da Europa, e de que a Alemanha comprimiu de forma brutal os salários nos últimos 10 anos de forma a manter-se competitiva (custos unitários do trabalho caíram 1,4% entre 2000 e 2008, enquanto em França e Luxemburgo não pararam de subir...); mas os desequilíbrios não podem ser corrigidos só por um lado. Os défices grego ou português acontecem também porque estes países, não podendo desvalorizar a sua moeda, perdem competitividade e importam maciçamente bens alemães (a Alemanha exporta metade dos seus bens para a UE). Não o reconhecer, e sobretudo não o corrigir – fazendo os alemães gastar mais dinheiro, seja em turismo ou vinho do Porto... –, não é a longo prazo do interesse de nenhum europeu. E pode mesmo levar ao desmembramento da zona euro.

A maior feira de arte do mundo está a 200 km

Maastricht é um nome popular entre os habitantes do Luxemburgo. A cidade é bonita, tem canais e arquitectura antiga e moderna, a universidade é reputada, e o carácter estudantil que esta lhe empresta cria uma atmosfera fresca e lojas muito originais que vendem todo o tipo de coisas difíceis de encontrar no Grão-Ducado, algumas mesmo ilegais aqui.

Mas a pequena cidade neerlandesa encerra um às na manga, ultrapassando de forma notável o velho choradinho da “falta de dimensão”: em Maastricht celebra-se todos os anos a maior feira de arte do mundo. O leitor já não vai a tempo de pagar os 55 euros da entrada para a visitar – encerrou no domingo – mas o centro de congressos e exposições albergou um certame de superlativos, com 263 expositores (24 mais que no ano passado) vindos de 17 países diferentes, e pelo menos 25 000 obras de arte à venda – tudo o que estava exposto, desde antigas estatuetas egípcias até pinturas pós-modernas –, que valiam no total uns extraordinários 3 mil milhões de euros. Na sua maioria as obras de arte estavam orientadas para o pequeno coleccionador, o que não impede que alguns verdadeiros tesouros, bem como outros de gosto discutível, não só estavam disponíveis como encontraram comprador. Exemplos notáveis: um dos grandes últimos quadros de Paul Gauguin no Tahiti ("Deux femmes"), por 18 milhões de euros; uma cama que pertencia ao grande diplomata Talleyrand (400 mil euros); um dos primeiros trabalhos do artista plástico britânico Damien Hirst, e que consiste num enorme porco conservado num tanque cheio de formaldeído (8,8 milhões de euros); outro quadro, este de Modigliani ("Jeune fille en bleu"), vendido por 13 milhões; uma pulseira em ouro maciço e diamantes feita em 1979 para Elton John (52 mil euros); ou belos exemplos de arte oriental e africana, cada vez mais procuradas. Seria interessante que os curadores dos museus do Grão-Ducado, com especial destaque para o MUDAM – um museu com magníficas instalações e quase nada na sua colecção para mostrar – seguissem com atenção a TEFAF (é o nome da feira). Lá estavam representados muitos dos museus europeus e norte-americanos.

Depois de dois anos de marasmo, o mercado da arte está outra vez vivo e vários negociantes afirmaram que esta foi a sua "mais bem-sucedida feira de sempre". Ou seja, nos escalões mais altos da sociedade, representados no desfile de jactos privados e roupas em caxemira que é também parte integrante desta feira, a crise está ultrapassada e esquecida. E a arte recuperou a sua função de bom investimento.

Mas se quiser comprová-lo ao vivo, só para o ano: a edição de 2011 começa a 18 de Março. Marque no seu smartphone.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Pequenos erros, daqueles que matam

Um terrível choque entre comboios perto de Bruxelas, enxurradas e inundações dantescas na Madeira. Em uma semana, duas catástrofes na Europa, uma lista arrepiante de vidas perdidas, rompidas, abaladas. Perdi para sempre uma colega, ela que naquela manhã apenas procurava vir trabalhar como em qualquer outra segunda-feira, e foi vítima de um comboio desgovernado. Amigos na Madeira também não ficaram ilesos. Não foi uma semana fácil. E as duas tragédias têm muito em comum; nomeadamente, poderiam ter sido evitadas ou mitigadas e não o foram porque os Estados ainda não se preocupam o suficiente em garantir a segurança básica dos que neles vivem.


A perda de uma vida humana, sempre irreparável e estúpida, ainda o é mais quando advém de um acidente – pior ainda quando esse acidente era evitável. Dois comboios chocaram na Bélgica, em Hal, porque um deles, conduzido por um jovem de 31 anos com licença há apenas um, passou um sinal vermelho. Falha humana? O serviço de segurança dos caminhos-de-ferro belgas contou 78 sinais vermelhos transgredidos por comboios ao longo de 2008 – nem todos podem ter sido por culpa dos maquinistas, mas o mais importante aqui seria saber porque é que isto não é evitado, quando seria evitável: bastaria equipar toda a rede com o sistema-padrão europeu ERTMS, que trava o comboio automaticamente se ele passar demasiado rápido num sinal. O sistema existe noutros países desde 2001 – o mesmo ano em que 8 pessoas morreram num outro choque na Bélgica, em Pécrot, devido a um maquinista inexperiente ter passado em sinal vermelho. Estas pessoas morreram em vão, dado que pouca evolução houve desde aí; 18 pessoas acabam de perecer em Hal. Entretanto, os SNCB têm dispendido os seus apreciáveis fundos em muitos domínios, com destaque para novas estações faraónicas (depois da de Liège, que custou 500 milhões de euros, o arquitecto Calatrava ultima a de Mons), mas a dotação para tal sistema no ano passado foi de uns simples… 18 milhões de euros. Agora a sua aplicação é prometida “para 2013, ou 2015 o mais tardar”.

Na Madeira a catástrofe foi “natural”; não há aqui espaço para discutir as importantes responsabilidades humanas nas alterações climáticas e no ordenamento do território inexistente que permite habitações sobre a linha da água ou estradas feitas ao longo de instáveis barrancos… mas a chuva torrencial caiu na manhã de sábado, e logo no dia seguinte o presidente do Instituto de Meteorologia afirmou que a existência de um radar (custo de dois milhões de euros) teria permitido “prever o temporal e lançar o alerta vermelho três horas antes”. Quantas das 42 vidas perdidas até agora contabilizadas teria sido possível salvar em três horas de preparação, não é possível saber. Mas sabe-se que quando as prioridades dos dinheiros públicos não estão em prevenir a vida dos seus cidadãos, os desastres são mortíferos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Os gigantes também caem, mesmo que se chamem Toyota

“How the Mighty Fall”, ainda sem edição em português mas que se poderia traduzir por “Como caem os poderosos”, é um livro escrito pelo especialista em gestão Jim Collins e publicado há alguns meses. Nele o autor identifica cinco fases sucessivas do declínio de grandes e bem-sucedidas organizações humanas – o objecto da análise são as empresas, mas não é difícil transpor os argumentos para universidades, clubes de futebol, países ou mesmo civilizações… Registe-se que aos cinco estádios sucessivos da queda, Collins chamou: 1. Arrogância devido ao sucesso; 2. Procura indisciplinada de mais e mais; 3. Negação de riscos e perigos; 4. Desespero pela salvação e 5. Capitulação perante a irrelevância ou morte.

Conta-se que Akio Toyoda, neto do fundador da Toyota e presidente da maior fabricante de carros do mundo (9 milhões de veículos vendidos em 2008…), ficou muito impressionado após ler o livro, situando a sua companhia pelo menos no terceiro nível, mas mais provavelmente no quarto. De repente, o presidente de um gigante com mais de 300 000 assalariados, criador de toda uma cidade no Japão, orgulhoso de se ter tornado o maior construtor automóvel do mundo (ultrapassando a americana GM) e reputado construtor de sólidos produtos lançava ao mundo declarações muito pouco ortodoxas pelo negrume contido, com referências a “arrependimento ou morte”. Isto foi em Agosto.

Seis meses depois, o horror pressentido por Akio desvendou-se. Pressionada por mais de 2000 incidentes de “aceleração não desejada” – causando pelo menos 19 mortes – a Toyota decide-se finalmente a recolher e consertar os aceleradores de nada menos de 8 milhões de carros, na Europa, nos Estados Unidos, na China e em toda a parte. E como cereja no topo do amargo bolo, até o Prius, veículo destinado não a ser lucrativo mas a apresentar a Toyota como uma empresa nas vanguardas tecnológica e ecológica, não trava bem. Akio Toyoda escreveu esta semana ao mundo: “Lamento profundamente as inconveniências causadas…”

Ainda mais danosas para a marca do que os problemas técnicos são as revelações de que a Toyota já recebia queixas sobre estes problemas desde… 2003. E, como bom gigante em declínio, em plena fase 3 de Collins, nada fez, numa indesejada metáfora de todo um país, o Japão, estagnado numa “década perdida”. Agora pode ser demasiado tarde para a salvação – os concorrentes, grupo Volkswagen à cabeça, parecem muito determinados a arrebatar o ceptro de maiores do mundo.

Já fui o feliz proprietário de dois Toyotas; não desiludiram, não entusiasmaram. Dificilmente procurarei um terceiro, mas o livro de Jim Collins, esse aconselho-o vivamente.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O falcão luxemburguês e a pomba portuguesa

Quem é neste momento o líder europeu que torce mais o nariz ao ouvir o nome de Jean-Claude Juncker? Se o leitor respondeu “Sarkozy” é bem possível que se tenha enganado, já que a resposta pode muito bem ser “Sócrates”, ou pelo menos “Teixeira dos Santos”. De facto, a pugna entre Portugal e o Luxemburgo pelo cargo de vice-presidente do Banco Central Europeu está ao rubro e a partida disputada entre os governadores dos bancos centrais dos dois países, respectivamente Vítor Constâncio e Yves Mersch, tem tido alterações constantes no marcador e continua de vencedor incerto no fim do tempo regulamentar. E Teixeira dos Santos, adepto incondicional de Constâncio, acaba de chamar caseiro ao árbitro Juncker.

Juncker foi reeleito como presidente do Eurogrupo e, nessa mesma reunião, a sua primeira tarefa seria precisamente a de organizar uma votação entre os ministros das finanças da zona euro que decidisse o substituto (a partir de Junho) do grego Papademos. Mas sob pretexto de recear um empate (os mais maquiavélicos afirmam que na verdade o receio era de uma derrota de Mersch), o árbitro mandou todos para as cabinas e marcou uma finalíssima para Fevereiro – o pretexto foi o de pedir entretanto um parecer jurídico para definir como votar à luz das novas regras do Tratado de Lisboa (ironias da alta política, a mesma cidade onde labora Constâncio).


O governo português, desconfiando que Juncker sabia ser muito difícil eleger dois luxemburgueses no mesmo dia, não gostou do adiamento (“É estranho e prejudica a candidatura portuguesa”) e preferia ter ido a penáltis. Até porque Constâncio é conhecido por ser bom à defesa, ou seja, por ser em jargão “uma pomba”: menos preocupado com a inflação e mais com o desempenho económico e o desemprego, e reticente em começar a retirar os apoios públicos concedidos nos momentos mais duros da crise.

Mersch, pelo contrário, é a definição do “falcão”: a ortodoxia financeira é o seu credo, o combate à inflação o seu primeiro e grande objectivo; e como tal, a retirada do dinheiro público da economia uma prioridade. Mersch é “tão alemão como um alemão”, monetariamente falando, e isso também parece jogar contra si: a Alemanha quer para um alemão o lugar de presidente em 2011, e sabe que é necessário equilibrar presidente e vice com filosofias diferentes – daí parecer inclinar-se para Constâncio. Resta saber em que equipa jogará a França, depois da operação de charme de Juncker em Paris há duas semanas.

Se o empate persistir, o cargo – e os 21 532 euros mensais que ele significa para o seu titular – pode cair nas mãos de mais um outsider belga, neste caso em Peter Praet, o governador do banco central do país. Ou então num candidato de última hora. Aí está um desfecho que não agradaria a nenhum dos contendores, Portugal ou Luxemburgo, em luta para subir de divisão… política.

O império contra-ataca. E o objectivo é entrar no seu bolso.

Agora, é mesmo a guerra: depois de ter passado 2009 todo a negar que fosse lançar o seu próprio telemóvel, a Google começou 2010 apresentando o seu próprio telemóvel, o Google Nexus One (na verdade o aparelho é fabricado pela HTC). Estamos num novo período da apaixonante (e rápida: há apenas 15 anos, a sua utilização era marginal) história dos telefones portáteis e da sua actual encarnação, ou seja, um pequeno computador que está sempre connosco e faz muitas, mesmo muitas tarefas, e está ligado à internet para a maioria delas. Disse internet? A Google até nasceu depois dos telefones móveis (em 1997), mas já é indissociável da rede e vive dela – 99% das suas receitas advêm da publicidade em linha. Como todos nós vamos começar a fazer as nossas buscas usando telefones em vez de computadores, então o telefone Google está explicado.

Os riscos que o gigante corre são grandes. O negócio dos telemóveis é implacável e só os melhores sobrevivem: um mau aparelho pode arranhar profundamente uma marca, mesmo valiosa. Curiosamente, um bom aparelho também trará problemas à Google, porque o novo telefone usa o Android, um bebé da própria Google, numa versão mais avançada (2.1), irritando as aliadas que tem sido usadas (HTC, Samsung, Motorola, LG, Sony Ericsson, etc.) para fazer o trabalho de sapa de promoção deste sistema operativo. E com bons resultados, a tal ponto que os analistas de mercado prevêem que este seja o segundo maior do mundo em 2012, apenas atrás do Symbian da Nokia – esta empresa europeia continua a vender mais de um em cada três telemóveis no mundo, e também lidera nos smartphones, seguida pela Blackberry. Em terceiro vem o criador e referência deste mercado, o iPhone da Apple. E é esta a grande guerra.

Este seminal objecto de design continua a crescer e já significa 17% dos smartphones mundiais; para ter sucesso, a Google terá necessariamente de conseguir entrar no minado quintal da Apple. As duas empresas, inicialmente aliadas contra o império Microsoft, cada vez se foram dando pior ao competir pelo negócio da publicidade online, e a apresentação do Nexus One é a última declaração de guerra. A Apple respondeu no mesmo dia ao comprar uma empresa cuja tecnologia permite colocar publicidade em dispositivos móveis. Sejam telemóveis ou… computadores tablet, do tamanho de ardósias de escola, que vão ser o próximo campo de batalha.
E o utilizador? Qualquer que seja o seu telefone, a Google sabe muito sobre si. E guarda religiosamente pelo menos por dois anos tudo aquilo que escreve na internet. Em resposta às preocupações quanto à invasão da privacidade dos cidadãos, o CEO da Google acaba de declarar: “Se faz algo e não quer que ninguém saiba, provavelmente nem deveria estar a fazê-lo”. Agora ele também quer conhecer os seus bolsos.