quinta-feira, 15 de julho de 2010

0010 - Licença para jardinar

A História repete-se sempre – e da segunda vez, é em forma de farsa. A arrepiante máxima confirmou-se estes dias devido a uma troca de espiões descobertos entre os EUA e a Rússia. Nada de sobretudos cinzentos por entre o nevoeiro, um em cada direcção, caminhando na ponte de Berlim que ligava os dois lados da Guerra Fria; os dez espiões russos encontrados nos EUA, encobertos sob nomes falsos como “Donald Heathfield” no caso de Andrey Bezrukov, viviam pacatas vidas suburbanas em família (um dos vizinhos afirmou à tv não acreditar que se tratassem de agentes porque “repare no jeito que têm com as flores do quintal”) e, na verdade, eram tão incompetentes nas suas funções que nem sequer conseguiram ser formalmente acusados de espionagem. As escutas telefónicas que, entre outras provas, os desmascararam mostram diálogos que podiam ter sido saídos de uma sátira à espionagem internacional como O Nosso Homem em Havana, livro de Graham Greene (cuja primeira versão era aliás passada na Lisboa neutral da Segunda Guerra) que deu origem ao muito aconselhável filme O Alfaiate do Panamá. A ideia já não era transferir segredos nucleares entre duas superpotências a ponto de destruírem o mundo, mas tão-somente “descobrir qual é o opinião sobre a Rússia nos círculos políticos”. As informações que encontraram podiam ter sido obtidas simplesmente lendo jornais de qualidade.

O caso – descoberto no final de Junho – começou por embaraçar a Rússia, apanhada a espiar o seu (agora supostamente aliado) americano, e a fazê-lo de forma desastrada. Num país onde o SVR ou o FSB, as organizações herdeiras do KGB, são motivo de orgulho nacional e legitimidade política, a publicidade e os apartamentos moscovitas que estes ex-falsos americanos vão agora receber do Estado não caíram bem na opinião pública. O contra-ataque russo, no entanto, virou o resultado em uma semana: o país obteve o repatriamento dos seus agentes organizando a primeira troca de espiões desde 1985 – aconteceu na quinta-feira numa pista de aeroporto em Viena, e eu acredito que a cidade foi escolhida como homenagem encapotada a (outra vez) Graham Greene, que escreveu O Terceiro Homem (e este filme não é apenas aconselhável, mas absolutamente essencial). Mas em cima da mesa apenas estavam quatro prisioneiros de índole diferente e mais política, já que não há agentes encapotados para oferecer – é muito mais difícil a um ocidental disfarçar-se de russo que o contrário. Conhecidos espiões ocidentais, por sua vez, continuam atrás das grades, entre eles alguns dos britânicos que foram descobertos a utilizar um emissor/receptor camuflado numa rocha de um parque em Moscovo, em 2006.

A segunda profissão mais antiga do mundo, florescente, vai poder retomar o curso normal de actividades, e a Rússia ganhou a batalha diplomática – até porque seguindo a lógica do primeiro-ministro Putin, também ele um antigo espião, “se os nossos agentes forem apanhados, nós vamos certamente enviar outros. E pode ser que os novos sejam mais espertos e mais difíceis de apanhar”.

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