quinta-feira, 20 de junho de 2013

Ninguém é livre

“O Grande Irmão está a ver-te”. A frase, arrepiante, está escrita em cartazes espalhados pela sinistra cidade de “Mil novecentos e oitenta e quatro”. O livro é de 1948 (George Orwell inverteu os dois últimos dígitos para encontrar o seu ano futurista) e o filme, com John Hurt, é de 1984; ambos são incontornáveis, e profundamente assustadores, porque actuais. Cada vez mais actuais.

Há muito tempo que mais ou menos todos, em maior ou menor grau, sabemos que tudo o que fizermos em linha não é seguro. Escolhemos não o saber; escondemos a cabeça na areia porque é mais confortável viver na ilusão do inofensivo, na falsa segurança de nos concentrarmos nas pequenas questões que podemos controlar em vez dos verdadeiros problemas, aqueles que nos abafam na sua magnitude. Mas ainda que não o admitamos, exercemos uma enorme autocensura. Criamos personagens virtuais online, no Facebook ou por emails, que apesar de levarem o nosso nome ou fotos não passam de versões  sanitizadas, limpinhas e glamorosas – e inevitalmente falsas – de nós próprios. Porque sabemos que o que escrevemos e dizemos não nos pertence. Porque abdicámos, sem querer, e irresponsavelmente, do valor extraordinário que constituía a nossa privacidade.


Hoje o mundo é muito diferente de há apenas duas décadas – e as interacções humanas também mudaram completamente. As organizações mais poderosas do planeta – governos ocidentais, grandes corporações ou outras hierarquias menos visíveis – aproveitaram a janela de oportunidade criada pelo medo de atentados terroristas, associado à nossa ignorância e passividade: a combinação perigosa levou-nos à situação actual, da qual um homem chamado Edward Snowden acaba de levantar a ponta do véu. Um programa secreto, controlado por um tribunal secreto, gerido por pessoal secreto, sobre o qual impera a lei do silêncio, permite aos EUA e aos seus aliados visualizar qualquer mensagem, foto ou vídeo, de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, suspeita ou não, importante ou não. O programa chama-se PRISM e permite a obscuros agentes do governo americano (ou britânico) acederem a todos os dados armazenados nos servidores da Apple, Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, Skype ou YouTube, entre outras. Certamente que o leitor já deixou uma parte (privada) de si em pelo menos dois ou três destes endereços, mas isso não é tudo: também as suas conversas telefónicas podem ser acedidas em qualquer momento, e isto incluindo o seu conteúdo.

A existência de espaços de privacidade invioláveis é uma condição essencial da nossa liberdade individual e colectiva, e é mesmo determinante na formação da nossa identidade. Nunca será possível vivermos humanamente em sociedades vigiadas por um espião sem rosto mas omnipotente. Não suportaremos viver num mundo totalitário, mesmo que ele esteja travestido de democracia; a máscara, ainda por cima, é neste momento muito fina. Em “1984”, o livro, o Grande Irmão que olhava de perto todos e cada um dos seus cidadãos era uma invenção do Partido ditatorial; a cada momento, em tempo real, o sistema podia ainda assim saber o que cada cidadão fazia. Nunca vivemos tanto em 1984 como hoje.

Declaro aqui que a crise acabou

... ou pelo menos foi mais ou menos isso que saiu da boca do presidente francês Hollande no sábado, falando perante uma plateia de empresários japoneses. “O que o Japão precisa de saber é que na Europa a crise acabou”. A frase, o soundbite, chegou rapidamente aos incrédulos ouvidos deste lado. A zona euro está enredada numa recessão recorde: há seis trimestres consecutivos, um longo ano e meio, que a economia está a decrescer. Estamos todos em geral mais pobres. E cada vez mais de nós não temos ocupação: a taxa de desemprego da zona euro atingiu outro recorde, 12,2%. Em toda a Europa, 25 milhões de pessoas não encontram uso para a sua energia e as suas competências. Nos países do Sul, a situação é dramática: a taxa é de 17,8% em Portugal (e sai mais um recorde), 27% em Espanha e na Grécia; 1 em cada 4 jovens abaixo dos 25 anos não têm emprego, e em Espanha a maioria dos jovens não o tem. E como cereja no topo do bolo, o sentimento dos agentes económicos em relação ao futuro próximo continua, grosso modo, a decair. Mas esta realidade crua o Japão, habituado talvez a demasiado peixe cru, aparentemente não precisa de digerir.

A lenda grega de Pigmaleão falava num escultor que, tendo criado uma estátua de uma mulher formosíssima, se apaixonou por ela, e tanto desejou que o frio mármore se transformasse em carne e osso que Afrodite acabou por lhe fazer a vontade; Pigmaleão viveu feliz com a sua ninfa e emprestou o seu nome a um fenómeno do campo da psicologia que afirma, em suma, que quanto maiores são as expectativas que colocamos sobre alguém, melhor será o seu desempenho futuro. Ou de forma mais simples, os desejos ardentes tornar-se-ão provavelmente realidade auxiliados pela própria força do desejo. O presidente Hollande está embevecido pela sua estátua – a estagnada economia europeia – e almeja muito que o sangue corra nas suas veias, mas Afrodite é uma deusa cipriota, e os ventos que sopram de Chipre não são benignos...

É óbvio que o título bombástico que o líder francês proporcionou é algo injusto, porque retirado do contexto. Hollande respondia a uma pergunta quando o afirmou, após um discurso em que se preocupou em realçar as boas relações com o Japão e tudo o que a Europa tem feito para estancar a sangria da crise, da qual “sairemos mais fortes, na maior potência económica do mundo”. Mas é duvidoso que a visão rósea seja suficiente para convencer os japoneses, que vivem numa crise circular da dívida parecida com a nossa desde 1990 – as chamadas “décadas perdidas”. É ainda mais duvidoso que a optimista declaração sirva para pôr pão, ou mesmo sushi, em cima de 25 milhões de mesas em todo o continente. O Japão precisa de saber que a crise na Europa acabou... a Europa precisa de senti-lo.

O Bósforo que acendeu o rastilho

A Turquia é um país em crescimento demográfico acelerado, o que a pode tornar o país mais populoso da União Europeia – isto se alguma vez a ela pertencer, o que é duvidoso. O que é certo é que se trata de uma sociedade estruturalmente muito jovem. Coincidência irónica, o poder actual faz os possíveis para apagar da História os Jovens Turcos; estes começaram por ser um movimento político do início do século XX que advogava a evolução da monarquia otomana, absolutista, sonolenta e corrupta. A forma agressiva e ditatorial como este partido acabou por impor as suas ideias fez com que o termo “jovem turco” se aplique hoje a quem, dentro de uma organização, a tente reformar de forma radical e progressista.

Os duplos jovens turcos – figurativos e reais – da praça Taksim, em Istambul, acabam de incendiar um rastilho potente. Tudo começou a 28 de Maio (curiosamente uma data negra para Portugal, dia do golpe militar que abriu caminho à ditadura) quando os bulldozers começaram a arrancar as árvores centenárias de um dos pouquíssimos parques da asfixiante cidade de Istambul; um pequeno grupo de 50 pessoas resolveu resistir pacificamente, colocando-se em frente das máquinas. A polícia dispersou-os. Eles voltaram. As redes sociais, com destaque para o Twitter, começaram a fervilhar, como fervilharam em tantas outras revoluções recentes. O protesto cresceu. A polícia começou a atirar gás lacrimogéneo sobre os manifestantes, pacíficos ou não. Estes multiplicaram-se. A 3 de Junho, não apenas a maior cidade da Europa (Istambul) mas toda a Turquia urbana estavam em convulsão social.


O governo islamista turco pode não cair, mas a sua máscara já o fez: logo no primeiro dia de protestos, o primeiro-ministro Erdogan ventilou a sua fúria contra os fundadores da república laica, entre eles o venerado Kemal Atatürk: “são uns bêbados”, disse. A proibição do álcool desejada pelo seu partido religioso, tal como a vigilância de costumes (“nada de beijos em público”, dizem os altifalantes no metro), fazem parte da lista de queixas dos manifestantes. O parque vai ser destruído para ali ser feito mais um centro comercial, mas também poderia ter sido para uma nova mesquita – o governo de Erdogan já construiu 17 000, em apenas 12 anos. É assustador, e é difícil chegar a sabê-lo, já que o país está amordaçado: as redes sociais (“a nova praga da nossa sociedade”, diz o PM) são controladas, as tv mostram programas de culinária enquanto a polícia bate em civis no centro de Istambul. A Turquia detém o recorde mundial de jornalistas na prisão. O seu vizinho oriental, a Síria, passou os últimos dois anos em autodestruição por causa de um governante ditatorial e autista; a ocidente, também sentada em cima de um barril de pólvora social, está a Europa. E o rastilho de Istambul (uma semana após outros confrontos similares nas ruas de Estocolmo) já fica bastante próximo, cada vez mais próximo. Olhemos para lá com atenção, porque é um ensaio para o Inverno do nosso próprio descontentamento.

Forca sem carrasco

“Groundhog Day” (o “Feitiço do Tempo”, em português) é um filme de culto, uma pequena produção que foi já seleccionada para o Registo Nacional de Filmes dos EUA como “culturalmente relevante”: nele, o personagem principal tem a estranha experiência de ficar bloqueado no tempo, e cada dia que ele vive é exactamente igual ao anterior. Na Europa acontece-nos algo parecido: os anos passam, mas – há meia década – continuamos a viver em 1931. Os primeiros tempos a seguir ao grande crash bolsista de 1929 prolongaram e agravaram a Grande Depressão: as políticas seguidas pelos países ocidentais, a obsessão pela dívida, as falências de bancos que levaram a uma redução brutal do dinheiro em circulação  (algo defendido para controlar a inflação...) levaram ao desemprego em massa e ao desempenho das economias muito abaixo do seu potencial. A situação só começou a melhorar em 1933, com a eleição de Roosevelt e a
aplicação do “New Deal” keynesiano.

Hoje não temos um Roosevelt para eleger, e como tal, a narrativa continua a ser uma só – a da austeridade supostamente redentora. Mas há uma mudança recente no argumento deste drama à escala europeia: perante os indisfarçavelmente desastrosos efeitos das políticas negativas nas nossas economias (e nas nossas vidas), já ninguém quer ser o responsável, já não há actores para o papel do carrasco. Nas últimas duas ou três semanas, vimos o FMI a criticar a própria austeridade que impõe; Durão Barroso, presidente da Comissão (que é membro da troika), sentindo os ventos cambiantes, afirmou que tínhamos atingido “os limites da austeridade”; a chanceler Merkel, que escolheu Barroso e que o guiará a um outro futuro lucrativo cargo, imediatamente o desautorizou avisando que a austeridade era para manter; Barroso, obediente, rapidamente corrigiu o tiro e afirmou que afinal tinha sido mal interpretado, porque a austeridade estava aí para durar; oportunidade evidente para que os alemães fechassem o círculo, na semana passada, declarando que a culpa da austeridade (que eles no fundo até detestam, até porque a palavra em alemão tem conotações de “sofrimento extremo”...) era sobretudo da troika. Ou seja, de Barroso.

Em Portugal a situação enferma da mesma hipocrisia. O governo, que assinou o “programa de ajustamento” com a mesma troika, tem uma agenda económica que o leva a por vezes querer ir mais além do acordado – o que significa que um bode expiatório externo dá um imenso jeito, até porque é bem melhor impôr medidas tremendas por “não haver alternativa” do que por ser esse, como de facto é, o programa político desejado. O resultado? Uma situação de caos social; a deterioração de quase todos os indicadores económicos; a destruição do tecido económico do país, como admiravelmente exposto pelo Financial Times há apenas alguns dias. Tantos anos depois de 1931, parecia impensável ter chegado a este ponto porque parecia ilógico apostar em ideias que no fundo constituem o contrário daquilo que é necessário fazer. Mas é esse garrote, essa forca aquilo a que vamos tendo direito; e por mais que o disfarcem e neguem, os carrascos chamam-se Alemanha, BCE, Comissão e Conselho europeus, FMI, indústria financeira, organizações patronais e alguns (muitos) meios de comunicação social. Que fique para memória futura.

Mais arrogância, por favor

Este não é um texto sobre desporto, que para isso há secções do jornal mais adequadas; é sim sobre símbolos, marcas e percepções. O ponto de partida é a recente, ainda que não surpreendente, quebra de contrato entre o português José Mourinho e o “maior clube do século XX” (eleição da FIFA), o Real Madrid.

Mourinho construiu uma imagem fortíssima: não é por coincidência que a sua “marca” funciona melhor em determinados mercados que em outros. Funciona, nomeadamente, bem em Inglaterra (e é aqui que Mourinho vai voltar a vender o seu produto), dado que as características particulares dos ingleses os fazem adorar personagens “bigger than life”, primas donnas controversas e apaixonantes que involvam as massas na sua grande gesta. O homem Mourinho é assim, uma espécie de Vasco da Gama da sua profissão – mas esta não é uma comparação grandiloquente, apenas me refiro aos perfis de liderança de cada um: também o navegador era um antagonizador empedernido, por vezes quase cruel, que dividia completamente as opiniões e grangeava muitos inimigos, mas também muitos fiéis dispostos a lutar com ele pelos objectivos altamente ambiciosos a que se propunha.

Vasco da Gama, depois de se ter libertado da lei da morte deixando o seu nome para sempre gravado na História, também teve os seus períodos mais humanos. Ao regressar da primeira viagem à Índia, foi-lhe atribuída a sua pequena vila natal de Sines; mas a sua administração como alcalde revelou-se muito pouco competente. Já Mourinho no Real Madrid não foi um fracasso total: elevou os níveis competitivos de um clube que andava a falar em “maldição dos oitavos-de-final”, e venceu uma liga obtendo nada menos de 100 pontos (e contra o Barcelona). Mas o gestor futebolístico de Setúbal, que até nem fica longe de Sines, entrou no clube como o melhor treinador do mundo e sai apenas como um dos melhores, desgastado, conflituoso, incompreendido, perdedor. E – o que seria uma novidade – parecendo desorientado.

O profissional Mourinho regressará ao topo. Mas para já, é merecedor de um bem-haja pela enorme mais-valia que representa para a marca “Portugal” e todos os que dela beneficiam – ou seja nós, portugueses. Para um país, produzir um ou dois grandes jogadores de futebol não produz efeitos fora do desporto em si, até porque grande parte do talento para jogar é inato (e logo, “fortuito”). Mas as qualidades simbólicas transmitidas por um gestor como Mourinho são aquelas de que mais necessitamos não só para valorizar o “Made in Portugal”, como mesmo a um nível psicológico mais profundo, que pode vir a ser importante na forma de lidar com os tremendos desafios individuais que cada um de nós enfrenta. José Mourinho é um líder, e é atento, completo, meticuloso, ambicioso, inspirador, corajoso, provocador, preparado. E muito seguro de si. Tanto que a sua transbordante (auto)confiança é amiúde confundida com arrogância – mas francamente, tão melhor estariam os portugueses espalhados pelo mundo, e tão mais bem-sucedidos seríamos, se essa arrogância (sempre justificada, claro) fosse nosso património comum.

Vamos lá então falar de electricidade

Este domingo realizaram-se eleições na Bulgária. Entre acusações generalizadas de batota eleitoral, o partido de direita que já estava no poder obteve uma maioria relativa. Um resultado surpreendente após o governo anterior ter caído em Fevereiro, empurrado por dramáticas manifestações que nas ruas gritavam “mafia!” e “demissão já!”.

O país mais pobre da UE entrou em convulsão social, não directamente devido à cartilha da austeridade (ali seguida à risca  - o Estado praticamente não tem défice, pagando isso com uma economia estagnada e uma população que tem de emigrar para poder viver dignamente), mas sim devido aos preços da electricidade. Estes são os mais baixos da Europa, mas neste país os salários são também os mais baixos da UE (em média, 400 euros; como mínimo, 159 euros por mês). Enraivecida pelo último aumento, conhecendo as obscenas margens de lucro dos operadores do mercado da electricidade, a população revoltou-se.
Felizmente para António Mexia e Eduardo Catroga, dois saudosistas dos regimes de antigamente, os portugueses constituem um povo muito mais manso que os búlgaros; se não o fossem, não aceitariam ser espoliados pela EDP que aqueles dirigem. A companhia monopolista em Portugal (79% da produção através participações nos concorrentes, e 99% da distribuição e comercialização) faz-se cobrar bem por uma das electricidades domésticas mais caras da Europa, mais cara que na Suécia, França ou Reino Unido, com o propósito confessado de “maximizar a criação de valor para os seus accionistas” (estes são principalmente chineses, havendo também bancos portugueses, argelinos...). Aparentemente tal não chega, porque a empresa acaba de ser condenada pela segunda vez em tribunal a reembolsar 105 mil clientes a quem cobrou demasiado, propositadamente e sem pudor.

E se as tarifas da EDP são altíssimas (permitindo a uma das empresas mais abastadas em Portugal projectar um segundo, e faraónico, “Museu da Electricidade” em Lisboa de forma a conseguir gastar algum do excedente), os impostos sobre a electricidade doméstica também o são. Isso permitiu ao Estado criar uma “entidade reguladora dos serviços energéticos” cuja missão é “proteger os consumidores em relação às tarifas” e “promover a concorrência entre os agentes intervenientes nos mercados” (está no sítio web da ERSE, sem nenhum smiley a denotar ironia). Este sonolento organismo pode não fazer muito, mas é pelo menos bom empregador: os seus administradores auferem 12 000 euros por mês e “continuam a receber 2/3 do salário, por dois anos, mesmo após cessarem funções” (está no Diário da República, também sem ironia).

O lucrativo e bem protegido monopólio da EDP ou o governo búlgaro que vence eleições suspeitas depois de ter caído nas ruas são duas faces da mesma sociedade-casino em que vamos vivendo: aparentemente há muitas “alternativas”... mas no fim a casa ganha sempre.

E agora ainda mais perigoso

O mundo acaba de tornar-se um sítio pior de um dia para o outro. Aconteceu este fim de semana, num deserto anónimo perto da cidade de Austin, no Texas (e sim, tinha mesmo que ser no Texas). Para o homem foi um pequeno frémito, para a Humanidade é um grande arrepio.

O homem disparou uma arma no deserto. Por si só, tal facto não é notícia, muito menos num país que perdeu nada menos de 170 mil pessoas mortas com uma arma de fogo só nos últimos dez anos. Mas esta é uma arma especial: é feita de plástico, e foi o próprio atirador – um radical “libertário”, ou seja alguém anti-social que odeia tudo o que sejam poderes públicos – quem a imprimiu em casa. Imprimiu? Exactamente. Cody Wilson, um estudante de Direito de 25 anos, usou uma tecnologia revolucionária e com um potencial tão grande que chega a ser difícil de avaliar – e a história é sempre a mesma: a metralhadora foi inventada antes da máquina de escrever, o átomo serviu para fabricar bombas antes de fornecer energia limpa ou barata, uma nova ideia poderosa pode sempre ser usada para o mal em vez de para o bem. Cody Wilson resolveu usar uma impressora 3D para o mal.

Uma impressora 3D é uma máquina industrial que utiliza alguns tipos de polímeros (plásticos, basicamente) para, camada a camada, “imprimir” objectos reais seguindo instruções de um computador comum. A tecnologia, antes imperfeita e proibitivamente cara, tem vindo a democratizar-se ao ponto de existirem já um ou dois modelos que custam menos de 2000 euros – a impressora usada por Wilson, do tamanho de um frigorífico, custa mais do dobro mas continua a ser acessível a muitos indivíduos. E a vontade do libertário é mesmo essa: que qualquer pessoa com um aparelho destes e uma ligação à net, em qualquer ponto do planeta, possa obter uma cópia dos seus planos e fabricar uma arma que “funcione”. Ou seja, que possa disparar uma bala e matar outrém.

Plástico não é o material ideal para fabricar armas – nem as bisnagas de Carnaval funcionam durante muito tempo devido às deformações. Mas apresenta vantagens: é leve, barato, e não acusa num detector de metais. Está dado o primeiro passo para a proliferação de armas mortíferas – contornando as leis e os controlos, um terrorista, ou um doente mental, pode fabricar uma na sua garagem e levá-la consigo no avião. É talvez a isto que o inventor da arma de garagem chama “criar o seu próprio espaço soberano”. Os auto-elogios ao sucesso do primeiro disparo de sempre, realizado no domingo, são assustadores no seu messianismo: “É uma nova ordem que nasce da velha ordem em ruínas. Vão haver aqui grandes mudanças”.

A mudança é a única constante dos nossos tempos. Mas terá mesmo de ser sempre mudança para pior?

É tempo de mudarmos de supermercado

Foi há exactamente um ano que uma cadeia de supermercados portuguesa, Pingo Doce, investiu 10 milhões de euros num golpe de efeito: pagou extra aos seus funcionários em todo o país para abrir no feriado 1 de Maio e vender os produtos a 50% do preço habitual. Com isso, provocou motins entre pessoas para quem açambarcar couves ou fraldas justifica a perda da dignidade pessoal, mas não só: também chamou inadvertidamente a atenção sobre as margens de lucro obscenas que a distribuição podia arrecadar num dia normal. De facto, se a empresa que gere estes supermercados acabou por pagar uma multa (irrisória, de 12 mil euros) por vender um ou outro produto abaixo de custo (o que é ilegal), o facto é que mesmo com tudo a metade do preço habitual continua a ser possível ficar a ganhar dado que a margem de comercialização anda habitualmente pelos 70%, sobretudo em produtos alimentares. Já os produtores recebem tipicamente 15% do preço que pagamos por um bife que é amiúde borrachoso e cheio de nervo, ou por uma maçã que parece saída de um instituto de beleza, de tão redonda, colorida e perfeita – apenas apresentando o ligeiro problema de não ter quase nenhum sabor.

Inconformados com este estado de coisas, alguns vizinhos de uma zona pouco fabulosa de Nova York decidiram criar o seu próprio supermercado. A ideia de base – tornar disponível comida saudável e barata – é simples, mas é também algo que as grandes superfícies não estão interessadas em fazer. A grande ruptura é conseguida graças ao trabalho voluntário: só pode comprar na “Food Coop” quem for membro da cooperativa, e só pode ser membro quem se dispuser a trabalhar perto de 3 horas por mês no supermercado. Não há excepções.

Esse trabalho voluntário representa a maior parte das necessidades de gerir a empresa (há alguns funcionários a tempo inteiro e pagos) e permite a esta grande superfície comunitária cobrar preços tipicamente muito mais baixos, remunerar os produtores de forma muitíssimo mais justa e, ainda assim apresentar lucro - que é redistribuído pelos membros; estes já são 16 mil, provavelmente o máximo que o sistema tem capacidade para acolher. E não são apenas os preços que atraem mas também a qualidade dos produtos: produtos “locais” (tanto quanto a grande cidade permite), muitos deles biológicos, e com uma indicação de origem que pode ser tão precisa quanto a morada da quinta – e quanto mais pequena e familiar for esta, melhor. Mas sem que a cooperativa tenha um ar de mercado de rua, já que se trata de uma loja completa, uma “one stop shop” para fazer todas as compras no mesmo sítio.

Não é preciso atravessar o Atlântico para ver um bom exemplo da economia social aplicado à “revolução orgânica” que se passa nos nossos frigoríficos e travessas. Em Londres, o “People’s Supermarket” segue os mesmos princípios básicos; em Paris há outra versão a abrir em breve, além de uma organização que usa a internet para pôr em contacto directo, sem intermediários, produtores e consumidores de vegetais bio. O Luxemburgo tem a sua própria versão modesta de uma cooperativa de consumo em Bonnevoie (redistribuição de lucros pelos consumidores incluída) e mesmo em Portugal, um mercado (e um país) tradicionalmente oligopolizado por grandes grupos económicos de distribuição, há algumas tímidas iniciativas neste sentido. Mas não chega. Ainda é preciso grande esforço para comprar bem e evitar todo os produtos caros e plastificados que pomos no carrinho de supermercado. Há muito trabalho voluntário a fazer aqui.