“O Grande Irmão
está a ver-te”. A frase, arrepiante, está escrita em cartazes espalhados pela
sinistra cidade de “Mil novecentos e oitenta e quatro”. O livro é de 1948
(George Orwell inverteu os dois últimos dígitos para encontrar o seu ano
futurista) e o filme, com John Hurt, é de 1984; ambos são incontornáveis, e
profundamente assustadores, porque actuais. Cada vez mais actuais.
Há muito tempo
que mais ou menos todos, em maior ou menor grau, sabemos que tudo o que
fizermos em linha não é seguro. Escolhemos não o saber; escondemos a cabeça na
areia porque é mais confortável viver na ilusão do inofensivo, na falsa
segurança de nos concentrarmos nas pequenas questões que podemos controlar em
vez dos verdadeiros problemas, aqueles que nos abafam na sua magnitude. Mas
ainda que não o admitamos, exercemos uma enorme autocensura. Criamos
personagens virtuais online, no
Facebook ou por emails, que apesar de levarem o nosso nome ou fotos não passam
de versões sanitizadas, limpinhas e
glamorosas – e inevitalmente falsas – de nós próprios. Porque sabemos que o que
escrevemos e dizemos não nos pertence. Porque abdicámos, sem querer, e
irresponsavelmente, do valor extraordinário que constituía a nossa privacidade.
Hoje o mundo é
muito diferente de há apenas duas décadas – e as interacções humanas também
mudaram completamente. As organizações mais poderosas do planeta – governos
ocidentais, grandes corporações ou outras hierarquias menos visíveis –
aproveitaram a janela de oportunidade criada pelo medo de atentados
terroristas, associado à nossa ignorância e passividade: a combinação perigosa
levou-nos à situação actual, da qual um homem chamado Edward Snowden acaba de
levantar a ponta do véu. Um programa secreto, controlado por um tribunal
secreto, gerido por pessoal secreto, sobre o qual impera a lei do silêncio,
permite aos EUA e aos seus aliados visualizar qualquer mensagem, foto ou vídeo,
de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, suspeita ou não, importante ou não.
O programa chama-se PRISM e permite a obscuros agentes do governo americano (ou
britânico) acederem a todos os dados armazenados nos servidores da Apple, Microsoft,
Yahoo, Google, Facebook, Skype ou YouTube, entre outras. Certamente que o
leitor já deixou uma parte (privada) de si em pelo menos dois ou três destes
endereços, mas isso não é tudo: também as suas conversas telefónicas podem ser
acedidas em qualquer momento, e isto incluindo o seu conteúdo.
A existência de
espaços de privacidade invioláveis é uma condição essencial da nossa liberdade
individual e colectiva, e é mesmo determinante na formação da nossa identidade.
Nunca será possível vivermos humanamente em sociedades vigiadas por um espião
sem rosto mas omnipotente. Não suportaremos viver num mundo totalitário, mesmo
que ele esteja travestido de democracia; a máscara, ainda por cima, é neste
momento muito fina. Em “1984”, o livro, o Grande Irmão que olhava de perto
todos e cada um dos seus cidadãos era uma invenção do Partido ditatorial; a cada
momento, em tempo real, o sistema podia ainda assim saber o que cada cidadão
fazia. Nunca vivemos tanto em 1984 como hoje.