terça-feira, 10 de maio de 2011

Cuba, agora em versão livre

Ainda recordo o meu espanto ao visitar Cuba pela primeira vez e descobrir que a mistura de rum e da "água suja do imperialismo" (vulgo coca-cola) não só é consumida a toda a hora na linda ilha, como ainda por cima se chama ... uma cuba libre. Pensava eu ingenuamente que a presença de coca-cola na mistura, e o nome libertário, eram subversivas invenções ianques que tornariam o cocktail proibido no regime castrista, mas na verdade a bebida foi inventada em Havana em 1898, durante a guerra de independência — que na prática tirou Cuba das garras de Espanha e a lançou para as garras dos EUA. Aliás, é precisamente nestas duas potências coloniais que a bebida tem nome não comprometido: "rum e cola".

Lembrei-me destas divagações ao ver publicadas as 313 reformas adoptadas por Raúl Castro (que apenas ostenta um leve bigode) debaixo da supervisão cheia de bonomia do seu irmão mais velho Fidel (ele sim portador de barba rija e densa). As mudanças em Cuba desde o advento da "primavera raúlista" são de monta, e esta nova lista de objectivos inclui: a possibilidade dos cubanos comprarem e venderem casas ou automóveis, ou seja, a sua propriedade privada; a regra de que que os bancos (todos estatais) podem conceder créditos a trabalhadores que se queiram estabelecer por conta própria; e a intenção de limitar a dois os mandatos de presidente (de cinco anos cada), num país liderado há 52 anos consecutivos por Fidel (idade 84) e Raúl (79).

Mas a ideia mais bombástica, e naturalmente aquela que capturou a imaginação dos media, é a de permitir aos cubanos viajar e ver o mundo. O velho conceito do regime totalitário que só se mantém cerrando fronteiras e capturando balseiros vai ruir pela base. A medida é ainda mais extraordinária por ser genuinamente motivada pela pressão da sociedade cubana, já que sempre esteve no topo das reinvidicações deste povo alegre e amante das liberdades. De facto, não se descortina qual é o interesse do regime numa medida que pode levar a uma sangria de jovens educados para fora do país, a não ser talvez querer tornar os seus cidadãos menos infelizes.

Em rigor, já é teoricamente possível a um cubano viajar para fora da ilha, e uns poucos milhares por ano fazem-no (e voltam). Mas os candidatos precisam de dinheiro — no mínimo uns 400 euros — só para obterem convites e vistos do país de destino e a famosa "carta branca" do governo cubano, sistematicamente negada a várias categorias de pessoas (nomeadamente às que têm meios para a pagar). Num sistema onde um médico aufere legalmente 15 euros por mês, o visto burocrático e o mar do Caribe servem de serôdio Muro de Berlim: a liberdade é um conceito nominal esvaziado ao primeiro choque com a realidade.

Exactamente como funcionava um regime totalitário ainda mais sinistro, o Estado Novo português. Liberdade para viajar? Com certeza, desde que o português em questão pertencesse a uma das famílias "certas". Para os restantes dez milhões, forçados a guerrear em África por um país onde 1 em cada 12 crianças morria à nascença, um quinto da população era analfabeta e a miséria era tão escondida como generalizada, o único turismo possível era para França, Luxemburgo, Alemanha, EUA. Mas era "a salto" e não havia férias.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A segunda morte de Osama Bin Laden

Crise, cortes, taxas de juro, impostos, menos férias, menos bónus, menos empregos, aumento da idade de reforma, inflação, redução dos salários... o 1.º de Maio ultimamente tem pouco de Festa do Trabalho e muito de doloroso lembrete dos cinzentos tempos em que vivemos. Mas este último trouxe uma boa notícia: o desaparecimento de Osama Bin Laden. Certo, não cria empregos (a não ser um alto cargo que vagou na Al-Qaeda), mas a verdade é que faz do mundo um lugar melhor.

[Parto naturalmente do princípio de que Bin Laden foi efectivamente morto e lançado ao mar por forças especiais dos Estados Unidos. Nos próximos tempos - presumo que já nos próximos dias - seremos inundados por teorias da conspiração das mais variadas espécies que esmiuçarão todos os detalhes revelados, desconfiarão da ausência de fotografias, nos explicarão porque é que "nunca poderia ser assim" e concluirão que Bin Laden, tal como Elvis, afinal está vivo. Mas de más teorias da conspiração está a internet cheia.]

Eliminar Bin Laden é uma vitória bombástica, sobretudo para a propaganda da guerra - não esqueçamos que as democracias ocidentais, principalmente a Europa e os Estados Unidos, estão a travar uma guerra com linhas da frente no Afeganistão e na Líbia. O milionário de 50 anos (e que tinha também pelo menos 50 meios-irmãos e irmãs), por trás da sua aparência messiânica, não era mais que um horrendo Frankenstein: monstro criado pelos próprios Estados Unidos nos anos 80, quando o então líder dos mujahedin recebeu mísseis, espingardas e dinheiro para combater os soviéticos no Afeganistão, virando-se contra o seu criador mal essa guerra foi ganha em 1989. Longe já estava o jovem saudita que tinha ido estudar Engenharia Civil para Jedá. Foi nessa universidade, em 1975, que Osama foi contaminado pelos ideais radicais que acabaram por provocar tantas catástrofes em nome de uma suposta superioridade religiosa e, mais materialisticamente, de uma reedição de um "califado islâmico" que se estenderia desde o Afeganistão à Península Ibérica.

O mais extraordinário, contudo, é a súbita irrelevância de Bin Laden no seu desaparecimento. O terrorista não tinha, no seu confortável refúgio-mansão de três andares, televisão, telefone nem internet; mas isso não o impediu certamente de se aperceber da sua primeira, e metafórica, morte, quando "a rua árabe", aquela que ele sonhava segui-lo em êxtase na sua utopia fundamentalista, preferiu antes gritar "liberdade" e sublevar-se contra os déspotas de sempre na Tunísia, no Egipto, na Líbia, no Iémen, na Síria, em Marrocos. Nestes países, a figura de Osama é hoje pouco mais do que uma relíquia de um passado de divisões mortíferas entre o Ocidente e a civilização árabe, entre democracias e ditaduras. Bin Laden era um fantasma útil agitado por líderes que desejavam ter os seus povos sobre controlo - Mubarak, Kadhafi, George W. Bush... Mas a jovem população árabe, que dos seus 25 anos ou menos olha para o 11 de Setembro como uma recordação de infância, tem outras aspirações - casa, emprego, bem-estar, liberdade de expressão, e não as 71 virgens supostamente concedidas aos mártires por Alá. O facto de hoje isso ser mais evidente que na semana passada é a verdadeira grande vitória de um Nobel da Paz chamado Barack Obama.

AA, BB, junk: fragata portuguesa ao Fundo

“Ei, você aí, me dá um dinheiro aí...” Portugal assobiou a velha canção de Milton Nascimento há duas semanas, quando decidiu desistir de lutar nos mercados financeiros para reunir as somas de que precisa para reembolsar empréstimos antigos. As taxas de juro dos novos empréstimos (a serem reembolsados pelas gerações futuras...) não paravam de subir, deixando o país com duas alternativas: ou declarar bancarrota (ou seja, a falência do país por incapacidade de cumprir com os compromissos) ou pedir emprestado um enorme montante aos “amigos” das outras economias da zona euro e do FMI. Fomos pela segunda hipótese, como antes tinham ido Grécia e Irlanda.

A diferença está no pormenor: Portugal não precisava de o ter feito.

Não precisava pelo menos até ao momento em que as agências de rating, as mesmas que tiveram um papel central na crise global de 2008, decidiram que Portugal tinha que ir ao fundo (literal e figurativamente). A partir desse momento, com os juros crescentes que o mercado pedia ao país devido exactamente às opiniões das mesmas agências, era uma questão de tempo até que a profecia se realizasse.

Portugal tinha uma economia relativamente sólida. Sem a bolha imobiliária irlandesa e espanhola (e britânica e americana). Sem as ineficiências do mercado de trabalho grego. Sem a dívida pública da Itália. Sem o défice público de, por exemplo, a França. E com taxas de crescimento do produto que, sem serem estonteantes, eram apreciáveis antes da explosão de 2008 e mesmo já no início de 2010, quando Portugal era dos europeus que mais crescia no pós-crise (graças às exportações).

Só que o país estava a jeito. Porque é pequeno, porque parece do Sul, porque tem um princípio de Estado social que não é do agrado ideológico dos “donos dos mercados”. Estes apostaram na queda do país, o resto já vamos sabendo.
Esta conspiração não pode nem deve ilibar os políticos de Lisboa das suas extensas culpas. Algumas das grandes reformas, como a da Justiça, estão há décadas por fazer. É verdade que a produtividade do trabalho estagnou. É sobretudo verdade que o desenvolvimento sustentado e equilibrado do país foi esquecido, substituído pela sôfrega construção de brinquedos de novo-rico na capital, que a tudo tem direito – estradas, pontes, aeroportos, comboios, metros, expos, museus, cimeiras, empregos e até novos hospitais e escolas anunciados ao mesmo tempo que o fecho de outros em diferentes partes do país. É ainda verdade que a corrupção profunda que é facilitada por todos estes negócios do betão, gizada entre pessoas que se conhecem do liceu e almoçam nos mesmos restaurantes, nunca foi devidamente investigada e talvez nunca o venha a ser. Por tudo isso escrevi aqui que gerir Portugal a partir de Bruxelas ou Frankfurt talvez não fosse pior para os portugueses do que fazê-lo a partir de Lisboa. A razão para que tal esteja agora a acontecer é que é errada e perigosa: os governos democraticamente eleitos por uma população não podem fazer as suas próprias escolhas sobre impostos e gastos públicos, sendo substituídos por uma obscura associação de especuladores, agências de rating e organizações tão secretas como poderosas. Cuidem-se, Espanha, Itália e Bélgica, vocês estão a seguir.

O princípio do fim do YouTube

A Rede Social conta a história, ou uma possível história, das origens do Facebook. Mas há outro sítio internet com origens romanceadas e um impacto social tremendo conseguido em apenas seis anos: o YouTube supostamente começou quando dois amigos de São Francisco fizeram um jantar em casa de um deles e queriam mostrar a um céptico terceiro amigo vídeos dessa festa. O resto é conhecido de nós todos que somos utilizadores, ainda que casuais, da internet: é difícil passar um dia sem dar de caras com pelo menos um vídeo alojado nos servidores da empresa da Califórnia - uma das mais lucrativas do mundo, e provavelmente também uma das mais poderosas. Um nome que será dentro de poucas décadas mais conhecido que a Coca-Cola ou os Beatles. Certo? Errado.


Os futurologistas (atenção: isto é profissão com muito futuro) que têm a audácia de se debruçar sobre como vai ser o panorama das tecnologias de informação daqui a 30 anos são unânimes em afirmá-lo: as maiores empresas tecnológicas desse altura ainda nem sequer nasceram hoje, tal é o dinamismo do mercado. Tal aprendeu a Netscape, que em 1997 detinha com o seu Navigator 80% do mercado mundial de browsers e cinco anos depois tinha virtualmente desaparecido... As actuais dominadoras têm poucas probabilidades de manter o seu estatuto de quase-monopólio por mais de alguns anos; por outras palavras, quase ninguém aposta que nomes como Google, Apple, Facebook ou Twitter tenham a relevância de que gozam agora nestes seus "15 minutos" de fama. O YouTube, então, está à bica para cair de maduro: com o seu visual datadíssimo, as suas regras por vezes arbitrárias (como suspender utilizadores sem aviso ou não os deixar recuperar a sua conta), a baixa qualidade - tanto técnica como conceptual - da esmagadora maioria dos seus vídeos e as batalhas legais em que se tem visto envolvida, a "velha senhora" dos vídeos pela internet pode já ter passado do seu apogeu. Até porque basta uma pequena pesquisa para descobrir concorrentes mais pequenos que são bem melhores a alojar vídeos: desde o Vimeo privilegiado por Obama até ao excelente Exposure Room, o meu favorito.

O próprio YouTube decidiu esta semana dar uma enorme machadada no seu interesse ao criar um sistema que elimina as contas dos utilizadores ao terceiro vídeo que eles coloquem em linha que "infrinja direitos de autor". Isto é: quase todos, com jeitinho. Desde imagens de futebol a videoclips de música, desde sátiras a filmes ou vedetas até à utilização de uma música romântica como fundo para o filme do casamento, são poucos os que não cabem nessa categoria. E os que até o fazem (exemplos aleatórios retirados da página inicial do sítio: "Assaltando a geladeira" ou "Renove o seu guarda-roupa") podem divertir uma ou outra vez, mas não são a base para um fenómeno social. Sejamos mais claros: ninguém vai voltar ao sítio só para ver material deste estilo, nem os jornais e blogues vão embeber estes vídeos nas suas próprias páginas.A ideia de base para este tipo de medidas é sempre a mesma: a suposta "luta anti-pirataria". A ganância das multinacionais dos "conteúdos artísticos" (eufemismo para quem prospera com a criatividade alheia) ainda não lhes permitiu ver para além da nuvem: a popularidade é o que interessa, o dinheiro só vem depois. A repressão online, essa só vai apressar o início do fim.

Cores do futuro: verde, vermelho, cinzento... e camaleão

O futuro é verde. Pela primeira vez no mundo, um partido “verde” (ou seja, que faz da ecologia a sua matriz orientadora) vai liderar um governo, o do estado alemão de Baden-Vurtemberga, precisamente um dos mais ricos e industrializados do país – e também um dos mais conservadores: por 58 anos, eleição após eleição, a vitória foi sempre para os democratas-cristãos. Até agora. O momento é histórico e as repercussões são retumbantes, podendo significar uma mudança fundamental nas escolhas políticas do nosso século; se os Verdes alemães conseguirem provar que é possível obter um progresso sustentável – não destruir o planeta em que vivemos mas ao mesmo tempo melhorar e desenvolver as nossas sociedades – tal pode mudar profundamente a forma de dirigir a Alemanha e a Europa.

Claro que estas altas expectativas são irrealistas, até porque os dois temas que ajudaram a eleger os Verdes tornaram-se agora, no dia a seguir à eleição, dois problemas bicudos: o grande projecto de reconstrução da estação de comboios e centro de Estugarda, que já está em marcha mas é profundamente impopular e contra o qual os Verdes sempre se bateram, custará em indemnizações por incumprimento quase tanto como se for em frente; e a oposição à energia nuclear é considerada essencial pelos eleitores, mas deixa-os com centrais desactivadas nos braços e um défice para pagar a conta de energia do Estado. Ainda assim, que evolução para um partido de protesto, quase anarquista, criado há apenas 30 anos!
O futuro é cinzento. Cinzento como os fumos emitidos por um Mercedes ou um Porsche, automóveis rápidos e poluentes, cujas míticas marcas sediadas em Baden-Vurtemberga escondem mal o seu desconforto perante o novo governo que já fala em limitar a velocidade nas autobahnen. Ou cinzento como o futuro próximo da economia portuguesa, cada vez mais apertada na tenaz da incompetência, laxismo e corrupção de sucessivos governos centrais, e com uma cura preconizada pelo FMI à base de sanguessugas económicas que vão prolongar a recessão do país. Os portugueses estão extenuados, e absolutamente fartos dos partidos tradicionais, vistos como nada mais que federações de interesses; estariam assim reunidas as condições para o aparecimento de um fenómeno tipo Verdes. Só que estes em Portugal não passam de “melancias” – verdes por fora, vermelhos por dentro, o partido não é mais que uma extensão do PCP, ali condenando a ecologia à irrelevância. Logo...

O futuro é camaleão. Na falta de esperança, os portugueses seguem o primeiro a prometer ar fresco. Há cinco anos, Manuel Alegre, político e partidário toda a sua vida, acenou com uma suposta independência: teve um milhão de votos. Em Janeiro, Fernando Nobre, um antigo simpatizante monárquico que em 2005 era mandatário do Bloco de Esquerda, foi lançado por Mário Soares e concorreu a presidente da República “acima dos partidos, pelos valores”. Teve 14% dos votos e em Março afirmou taxativamente “não querer nenhum cargo partidário ou governativo”. No sábado o PSD apresentou o seu cabeça de lista por Lisboa, chama-se Nobre. Ironias da nomenclatura.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Acenda as luzes quem quiser mais um museu em Lisboa

Este é um texto sobre a conta da luz. Não, não inclui piadas à vergonhosa atitude da direcção benfiquista de apagar as luzes do seu estádio quando o FC Porto comemorava um campeonato, mas tem sim a ver com o surpreendente anúncio feito pela EDP (a empresa monopolista de vários mercados da electricidade em Portugal) nesta segunda feira: a Fundação EDP vai gastar 19 milhões de euros na construção de um novo espaço cultural em Lisboa, mesmo junto ao rio.

Um apreciador de arte fica em princípio sempre satisfeito com a criação de um novo museu. Mas esta ideia suscita interrogações, para não dizer objecções, de variada índole. Para começar: o timing deste anúncio, indissociável da questão financeira. De facto, o gestor António Mexia (3 milhões de euros de salário em 2009) anunciou o novo projecto com mal disfarçada vaidade no preciso dia em que o rating da empresa foi cortado, pela segunda vez em 15 dias, pela Fitch. Dado que os títulos da dívida do próprio Portugal são considerados agora apenas um nível acima de “lixo”, no que é um reflexo (e também a causa, mas isso será para outra crónica) de graves situações financeira, económica e política no país, as preocupações das pessoas estão longe da criação de novos museus, sobretudo quando eles custarão 19 milhões – o orçamento da “Fundação EDP” é de 14 milhões anuais. A organização foi supostamente criada para apoiar “projectos de natureza social”, mas na mesma conferência de imprensa, Mexia apelou para que os consumidores de electricidade, ao pagar a sua conta da luz, contribuíssem voluntariamente com 50 cêntimos a mais para esses projectos. Isto faz franzir o sobrolho – se a fundação pode usar quase todo o seu orçamento para um novo museu ao lado do que já detém (o Museu da Electricidade, também em Lisboa), precisa mesmo de contribuições voluntárias adicionais?

É que os portugueses já pagam bem a sua electricidade – o preço está na média da UE, mas num país com baixo poder de compra; o preço por kW horário é apenas um cêntimo mais baixo que no Luxemburgo, por exemplo, e há uma ressalva importante – o Estado subsidia, através de um IVA reduzido, o consumo de electricidade (na Europa apenas o Reino Unido, que produz petróleo, faz algo parecido). E o Estado também ainda detém 25% da EDP...

Há objecções menos tangíveis. Numa altura em que Souto Moura ganhou o segundo Prémio Pritzker para o Porto, caso único numa cidade com dois premiados desde a atribuição deste “Nobel da Arquitectura”, e afirmou quase só trabalhar fora de Portugal por não existirem projectos no país, a EDP escolhe para construir o edifício uma arquitecta britânica conhecida apenas pelo seu trabalho com o falecido marido, o checo Kaplicky.

E como se não bastasse, o local escolhido para mais um museu financiado pelos contribuintes e consumidores de electricidade de todo o país é... Lisboa. Enquanto todo o país definha à míngua de empregos, investimentos e equipamentos sociais e culturais, o desequilibrado Estado encoraja mais um flamejante museu na capital de todos os gastos e todos os edifícios existentes desaproveitados. Já nem sequer surpreende. Mas ainda indigna.

Portugal em boas mãos: mãos europeias

O conceito de “Portugal”, variável ao longo dos tempos e presente nos mais recônditos recantos deste mundo (até, imagine-se, no Luxemburgo!), é dono de uma História interessante, rica e por vezes mesmo épica. Não suscita, isso é certo, a indiferença; até porque para cada momento heróico da gesta lusitana parece haver um outro, simétrico, que nos afunda na raiva e humilhação. A semana passada trouxe mais um destes últimos, com a demissão do governo um dia antes de um Conselho Europeu crucial para o futuro da zona euro.

O país está, todos o dizem, muitos o sentem, asfixiado economicamente. Um país repleto de pessoas destemidas, criativas, abnegadas, alegres, aventureiras, que no entanto se encontra de rastos finalmente vergado por um Estado que habituou os portugueses a viver dos seus humores e da sua esmola – uma das piores heranças do Estado Novo – para finalmente se tornar num obeso ladrão que asfixia a iniciativa privada e existe apenas numa lógica de sustento dos seus “amigos”, que se servem dos bens públicos em vez de servirem o público – a pior herança da democracia. Em comum, a mesma vertigem centralizadora que nos últimos séculos, nas últimas décadase sobretudo nos últimos anos fez mais do mesmo: desenvolver “Lisboa” à custa do resto do país. A lógica do eucalipto, que tudo seca em seu redor. Cavaco, enquanto primeiro ministro, desistiu de lutar contra “o monstro”, como lhe chamou. Guterres, que o substituiu, identificou-o antes como “o pântano” quando se demitiu, fugindo do mesmo. Eça de Queirós, um século antes, chamara-lhe “a choldra lisboeta”, à qual Barroso escapou ao ser promovido para Bruxelas. Depois chegou o arrivista Sócrates, o hábil manipulador da opinião pública que, também ele, deixou passar o tempo das reformas cruciais enquanto elas eram possíveis. A produtividade foi caindo, a criação de riqueza desaparecendo, o desemprego crescendo, a protecção social definhando. O Estado, o tal pântano, esse foi crescendo de forma voraz, alimentado a impostos crescentes e sempre em benefício dos seus filhos privilegiados, seja quem lucra nas parcerias público-privadas (melhor dito, com prejuízos públicos e lucros privados) ou gestores de empresas públicas com salários obscenos. Dificilmente haverá maior ironia que a notícia, saída exactamente no mesmo dia em que o governo português caiu de podre, de como Armando Vara (uma das eminences grises do regime) recebeu 800 000 euros do BCP em 2010, num ano em que esteve suspenso do banco por ser arguido no maior processo de corrupção e tráfico de influências de sempre.

A historieta não tem heróis, qualquer que sejam as nossas simpatias partidário-ideológicas. O governo PS fez todos os possíveis para criar uma crise política que forçasse a sua própria demissão, permitindo a estratégia da vitimização e a manutenção das hipóteses eleitorais (que é considerado o essencial); pelo mesmo tacticismo mesquinho, a oposição PSD/CDS preferiu obter eleições agora por estar convicta de as poder ganhar, mesmo que isso implique a (agora quase certa) entrada do FMI em Portugal; a oposição à esquerda, nunca olhando para lá do seu umbigo, continua empenhada em não apresentar nenhum tipo de alternativa governativa responsável. Entretanto, por força das nossas responsabilidades na moeda que partilhamos com os europeus, a economia portuguesa é cada vez mais dirigida por Bruxelas e Frankfurt, estreitando ao mínimo a margem de manobra dos políticos lisboetas. E ainda bem que assim é.

Estrela (de)cadente

“It’s better to burn out than fade away” é uma expressão inglesa. Significando algo como “é melhor uma extinção repentina que uma decadência lenta”, as palavras tornaram-se famigeradas devido a Kurt Cobain: o cérebro dos Nirvana, incapaz de lidar com a popularidade estelar da sua banda de “derrotados da vida”, escreveu-as na sua nota de suicídio.

No mundo artístico abundam os casos de “burn out” – o apagar repentino da vela. Os exemplos desfilam; o próprio Cobain é dos primeiros a vir à memória, tal como John Lennon, Freddy Mercury, ou Elvis Presley. O fenómeno não é tão-pouco restringido à música moderna: Edgar Allan Poe, um dos maiores escritores de sempre, abandonou este mundo aos 40 anos de idade e no auge da carreira, enquanto Amadeo de Souza-Cardoso, o grande pintor de Manhufe (Amarante) que privava com os cubistas em Bruxelas e Paris, morreu em Espinho aos 31 anos, antes mesmo de a começar. Marylin não seria o mito Marylin se ainda hoje fosse viva, em vez de se ter extinguido ao vento aos 36. E James Dean, ícone cultural ao fim de apenas três filmes, repetia a bravata “vive rápido, morre jovem, deixa um corpo bonito” – estampando-se fatalmente com o seu Porsche aos 24 anos. Mas a morte também não é a única razão para descer repentinamente do cume da fama: Rimbaud, o grande poeta libertino que com 15 anos escrevia versos em latim, abandonou totalmente a escrita aos 21. Salinger produziu um único (mas vertiginoso) livro, “Uma agulha no palheiro”, e em seguida escondeu-se do mundo durante os restantes 60 anos da sua existência.




Depois, claro, há aqueles excelentíssimos dinossauros que atingem uma notoriedade tal que têm cada vez mais público no que quer que façam. É muito discutível se os méritos criativos estão ainda intactos, mas qualquer digressão dos Rolling Stones, filme com Robert de Niro, qualquer quadro da última fase de Picasso arrastará sempre muito mais atenção, pessoas, dinheiro e recursos que os seus trabalhos iniciais, indiscutivelmente muito superiores até pela própria lógica – já que foram estes que construíram as suas reputações.



O homem que vai tocar hoje em Nancy e no dia 20 de Abril no Luxemburgo (o local escolhido é improvável – as instalações do CNA em Dudelange) é uma das excepções a esta regra: Lloyd Cole é um “fade away”, o raro caso da estrela que se transforma lentamente num planeta frio, distante e baço. No final dos anos 80, Cole e os seus Commotions já tinham escrito a “canção pop perfeita”, vendido milhares de discos, enchido salas de concertos por todo o mundo, nomeadamente em Portugal, França ou Suécia. Pois bem, Lloyd Cole não desapareceu; não teve um acidente nem deixou de fazer o que sabe fazer. Mas as ideias parecem ter-se gasto nos primeiros trabalhos. Pouco a pouco, o público foi desaparecendo, depois as editoras, depois a banda, também algumas namoradas a avaliar pelas suas canções... hoje, os seus concertos são um exercício de nostalgia acústica, uma homenagem de um resistente aos seus ideais de pureza folk. Sem staff de apoio (“não temos ninguém para afinar as guitarras porque depois teríamos de convidá-lo para jantar”, brinca), sem artifícios cénicos outros que um foco de luz e meia dúzia de guitarras, tocando em cidades como Dudelange ou Tomar, é estranho ouvir uma estrela (de)cadente 25 anos depois. Um pouco como ver Futre a arrastar-se no Reggiana ou Eusébio no União... de Tomar.

Tsunami nuclear

Há catástrofes e catástrofes. O que aconteceu no Japão é uma catástrofe de proporções bíblicas, que desafia a nossa capacidade de compreensão e a nossa forma de vida. Um terramoto de 9 na escala de Richter. Um tsunami de 10 metros de altura que até atravessou o oceano Pacífico e chegou ao México. 250 réplicas do terramoto, das quais 30 acima dos 6 graus Richter (ou seja, só por si seriam terramotos graves). 350 mil pessoas estão agora sem abrigo e cerca de cinco mil casas estão destruídas, para além dos mais de 20 mil edifícios que ruíram. 600 mil pessoas evacuadas das zonas mais perigosas. 100 mil soldados, metade de todo o exército, mobilizados para o resgate. E claro, o número mais chocante é ainda desconhecido: provavelmente as vítimas mortais chegarão aos cinco dígitos, pelo menos 10 mil pessoas.
O país atravessa a sua pior crise desde a II Guerra Mundial. E a memória desses tempos obscuros foi avivada devido a um par de imagens terríveis captadas a grande distância: os mini-cogumelos nucleares formados após as explosões dos reactores 1, 2 e 3 da central de Fukushima, perto do epicentro do terramoto. Acontecimentos aterradores num país ainda traumatizado, mesmo 66 anos volvidos, por Hiroxima e Nagasáqui.
A opção nuclear revela-se de repente em todo o seu esplendor. Ao construir 17 centrais, a maioria nos anos 1960, o Japão tornou-se refém das mesmas; o problema era um terramoto com tsunami, mas em poucos dias, a catástrofe ficou incomparavelmente mais séria – e tornou-se mundial – devido aos acidentes nucleares. Foi necessário evacuar mais populações, ficar sem energia, contaminar o planeta e... descobrir que não há alternativa e que, para restaurar toda a energia de que precisa, o país terá de reaproveitar reactores que já sofreram danos estruturais. Um pesadelo sem fim.
Rapidamente – e é estonteante a velocidade a que tudo isto se está a suceder – os governos europeus foram obrigados a reagir às manifestações antinucleares que começaram a aparecer mal as pessoas abriram os olhos para os riscos. Na Alemanha, milhares de pessoas formaram um cordão humano de 45 km no sábado ligando Estugarda à sua (velha) central nuclear; dois dias depois, Merkel recuou e congelou por três meses a decisão de prolongar a vida útil das suas centrais para lá do ano 2021, como tinha decidido Schroeder (e os Verdes). A Suíça suspendeu os projectos de renovação das suas centrais. E o comissário europeu da Energia, enumerando o desenrolar dramático dos acontecimentos – tremor de terra, tsunami, falha energética, aquecimento dos reactores, explosões – afirmou que o exemplo japonês mostra que o impensável até há poucos dias pode mesmo acontecer.
A fissão do átomo é uma tecnologia do passado e invendável depois de mais este (triplo) desastre? Em termos globais talvez, mas há um canto do globo onde por vezes as notícias parecem surreais: chama-se Portugal. Na segunda feira (o próprio dia em que explodiram os reactores 2 e 3 em Fukushima) um lobby empresarial que quer lá construir uma central nuclear (a expensas dos contribuintes) avisou que vai reapresentar “ao próximo governo” o projecto já apresentado e rejeitado em 2005, dado que o terramoto no Japão “prova que esta tecnologia é segura”. Haverá limites para a insensatez?