sexta-feira, 16 de março de 2012

Colheitas ou golfe?

Fevereiro de 2012 será lembrado em Portugal como o Fevereiro mais seco de sempre – é-o, pelo menos, desde 1931, primeiro ano de que existem dados meteorológicos fiáveis no país. Praticamente não choveu durante todo o mês, e o problema já vinha de trás. Resultado, um terço do território português está em seca “extrema”, e os outros dois terços estão em seca “severa”. O solo definha, os animais não se alimentam convenientemente, perdem os seus pastos e a sua saúde. As colheitas não são viáveis, pois os produtos agrícolas que necessitavam da água atempadamente definham, não atingindo o nível de desenvolvimento necessário. A rega é caríssima, e não é suficiente para obviar o problema. As barragens esvaziam-se, fazendo subir ainda mais o preço da electricidade num país que depende a 60% dos seus recursos hídricos para produção de energia. Um país ressequido assiste resignado a algo confrangedor: o início da angustiante época de fogos florestais de verão... logo no início de Março!

A seca não é uma situação normal, antes um valor extremo, excepcional por definição. O problema é que esses valores extremos repetem-se com cada vez maior frequência; os invernos chuvosos do litoral atlântico transformaram-se em amenos verões. As palavras proferidas em 2005 (aquando da última grande seca no Alentejo antes da deste ano) pelo presidente do Instituto da Vinha e do Vinho retinem, como escreveu Pessoa, lívidas ainda aos ouvidos: “Em 50 anos o Alentejo será demasiado quente para a produção de qualquer tipo de vinho. Será como Marrocos, e que eu saiba não se produz vinho aí ou na Argélia”. Se quisermos ser implicativos, ambos os países produzem efectivamente algum vinho (violento e de baixa qualidade), mas o ponto não é esse: a verdade inconveniente é que, indiferente à nossa típica estratégia da avestruz, o clima está a mudar rapidamente e perante os nossos olhos. E os avisos de diferentes analistas geopolíticos começam, aos poucos, a tornar-se plausíveis: as guerras do século XXI já não serão travadas tanto pelo acesso ao petróleo como pelo acesso à água. Também neste ponto, a China é um permanente factor de tensão – o país apresenta 20% da população mundial mas detém apenas 7% das reservas de água, e destas a esmagadora maioria está poluída. 330 cidades chinesas sofrem de falta de água crónica. O consumo de água per capita de cada habitante chinês é de um terço de cada português – o facto já é extraordinário por si, mas ainda mais ao descobrirmos o restrito lote de países que constituem os maiores consumidores de água por habitante no planeta: EUA, Tailândia, Sudão, Grécia, Itália, Espanha... e Portugal.


Um país em seca “severa” ou “extrema” é um dos grandes consumidores mundiais de água. Uma explicação fácil para o paradoxo estaria na invocação de falta de consciencialização e hábitos culturais: gostamos de tomar banho, de ter o carro lavadinho, de um quintal florido e cheio de couves... Mas melhores razões podem ser encontradas nas indústrias que restam no país: a do papel, para além de substituir pinheiros pela árvore voraz que é o eucalipto, exige grandes volumes de água para produzir. Já outro nicho económico é bem mais patético. Sob pretexto da atracção de uns poucos anglo-saxões endinheirados, Portugal cobriu-se com 79 campos de golfe, alguns deles altamente subsidiados como “projecto de interesse nacional”, quase todos nas áreas menos chuvosas do país, cada um deles utilizando água suficiente para abastecer uma cidade de 10000 pessoas durante um ano inteiro. Da próxima vez estiver de férias no Algarve, a ver os incêndios florestais na tv, e não houver água para um duche, já sabe: uma partida de golfe substitui tudo isso e muito mais. Vamos todos beber golfe.

Nunca desperdices uma boa crise

"Nunca desperdices uma boa crise", escreveu M. F. Weiner, um médico americano, em 1976. Weiner aconselhava os seus colegas a aproveitar a janela de oportunidade que um momento mais delicado na vida do paciente (ou até do próprio médico) poderia conceder em termos de melhoria da sua qualidade de vida ou de aspectos da sua personalidade. A frase remete directamente para o significado em latim da palavra "crisis", que não era mais que "a fase decisiva de uma doença". A etimologia já vinha do grego, onde a palavra transmitia a ideia de escolha, julgamento, decisão importante; a descrição corresponde a um momento basculante, de charneira, uma situação de instabilidade que vai conduzir a uma nova realidade. Um período "crítico", mas sem que este adjectivo tenha uma conotação negativa (ou positiva).


"Crise" escreve-se no alfabeto chinês com o auxílio de dois caracteres, wei e ji; o primeiro significa "perigo". Em muitos dos seus discursos, JFK popularizou no mundo ocidental a ideia que o segundo em contrapartida significaria "oportunidade" - na verdade, "ponto crítico" é uma tradução mais fiel para ji, mas de uma forma ou de outra, também aqui encontramos a noção de mudança, de escolha, mesmo de possível melhoria. O significado clássico, expurgado da sua monopolização económica, acentua o livre-arbítrio do indivíduo, a sua responsabilidade, a capacidade e a soberania que tem para julgar e decidir.

A crise é a ruptura, ruptura de hábitos, de comportamentos, de ideias, de capacidades, mas essa ruptura pode ser um ponto de partida, um empurrão sem o qual não há energia para a evolução e para a gestão da mudança. O próprio Jean Monnet era sanguíneo sobre o assunto: "Os homens só aceitam a mudança quando estão em necessidade... e só vêem a necessidade quando estão em crise". Não deixa de ser uma pequena ironia que a União Europeia da qual Monnet foi um dos pais fundadores chafurde na crise - que não criou - há mais de três anos, e ainda sem luz ao fundo do túnel. O "momento crítico" prolonga-se e manifesta-se em incertezas e contradições, sem que o novo paradigma se defina. Todos sabemos que não poderemos continuar assim indefinidamente, porque nem os indivíduos nem as sociedades têm forças físicas ou psíquicas para tal; mas as nossas escolhas ainda são claras, porque nem a própria encruzilhada o é. Podemos, no entanto, fazer um esforço para apreciar o fim das ilusões que uma boa crise sempre proporciona: o momento da revelação, em que abrimos os olhos e descobrimos uma paisagem radicalmente diferente daquela que imaginávamos, é tremendo - mas também belo e possivelmente recompensador, se a encararmos da forma certa. Afinal, é bem verdade que nunca é possível encontrar uma oportunidade perdida.

"A crise de hoje é a piada de amanhã", escreveu H. G. Wells, autor de "A forma das coisas que virão" e que também sabia algo sobre o assunto - a sua vida foi uma sucessão de crises amorosas. O comediante Robert Orben tocou no mesmo ponto com mais verve. "Antigamente, a Humanidade tinha duas opções em períodos de crise grave: lutar ou fugir. Agora temos uma terceira opção: lutar, fugir ou rir". Riamos todos, então, e que seja bem-vinda a crise.

O último Benfica-FC Porto de sempre

Esta semana joga-se um Benfica-FC Porto para a liga portuguesa de futebol. Este jogo ("jogo" deixou de ser uma palavra conveniente para o designar; "batalha", "pálio", "justa" seriam muito melhores) é o melhor produto que o desporto português tem para oferecer: põe frente a frente, na modalidade mais popular do mundo, as nossas equipas de topo, as únicas que conseguem sustentadamente competir nos mercados europeus e globais. Tem implicações profundas, não apenas desportivas, mas também culturais, económicas, sociais; deixa poucos indiferentes, criando uma barricada que divide a portugalidade em dois pólos opostos, azul contra vermelho, Norte contra Sul, história contra sucesso recente, dimensão contra garra, e dezenas de outros valores que nos fazem optar por um ou outro lado. Como puro espectáculo desportivo, é também algo especial de se seguir, mas o mais extraordinário está nas paixões que desperta - até porque envolve uma rivalidade de um século construída por muitas histórias - e nas emoções que movimenta - até porque as duas equipas estão empatadas no primeiro lugar e os pontos em disputa, a dez jornadas do fim, são cruciais.

E se este decisivo Benfica-FC Porto fosse também o último da História? A assustadora ideia não é tão improvável como soa. O negócio do futebol está a atravessar tempos de mudança muito rápida, ainda que muitos dos que nele trabalham insistam em enterrar a cabeça na areia. E para os clubes portugueses, essas mudanças não apenas atingem o coração da sua estratégia para competir a nível internacional, como também os apanham numa curva que os torna vulneráveis.

A curva chama-se 255 milhões de euros. Este é o astronómico valor em dívida aos bancos pelos dois clubes no seu conjunto (Benfica 157 milhões, FC Porto com 98). Na conjuntura actual de aperto do crédito, é duvidoso que no momento em que chegue a altura de pagar esta dívida, os clubes consigam encontrar quem lhes empreste mais dinheiro para continuar a chutar a bola para a frente - e se esse crédito for encontrado, será a taxas proibitivas. O FC Porto, por exemplo, pagava 4,39% de taxa de juro em 2010, mas no ano passado esta já era de 6,78%. O Benfica, em 2010/2011, gastou quase 14 milhões de euros só em juros.

Ao mesmo tempo, as regras do jogo mudam. A UEFA vai impôr regras de "fair-play financeiro" que terão como consequência certa baixar o valor das transferências milionárias que constituem a maior fonte de receita dos clubes portugueses. O seu modelo de negócio passa quase exclusivamente por encontrar na América do Sul jovens com potencial, adaptá-los ao futebol europeu e revendê-los com muito lucro, algo que vai mantendo a máquina a funcionar enquanto descaracteriza os clubes: o plantel do FC Porto conta com apenas 4 portugueses em 26 jogadores, o do Benfica apenas 7 em 25 (e nenhum deles titular). A asfixia financeira começa a ser cada vez mais difícil de esconder, no que espelha também a situação do próprio país.

A partida será decisiva em termos desportivos, porque quem perder ficará em segundo - mas este lugar ainda dá acesso directo à salvação chamada Liga dos Campeões. Paradoxalmente, o grande rival dos dois grandes é agora o Braga, que os persegue a apenas 3 pontos: acabar em terceiro e fora da liga milionária poderia significar a curto prazo, para Benfica e FC Porto, a incapacidade de pagar salários. O jogo de sexta relembra as palavras de Bill Shankly: "O futebol não é uma questão de vida ou morte - é algo de muito mais importante que isso".