terça-feira, 14 de julho de 2015

Isto é um golpe


"Onde estavas no dia 12 de Julho de 2015?", perguntarão os europeus uns aos outros daqui a meia-dúzia de anos. Foi nesse nublado domingo de verão bruxelense que o euro, já cheio de fissuras, caiu num estado comatoso que levará a longo prazo ao seu desmantelamento, arrastando provavelmente com ele o projecto europeu como um todo.

A deriva totalitária impulsionada pelo ministro alemão das Finanças, o dr. Schäuble (secundado pelos ululantes aprendizes de feiticeiro vindos de outros países do Leste europeu, os sempre perigosos cristãos-novos da austeridade autoderrotista), não se satisfaria nunca com a simples rendição grega às tirânicas condições associadas a um novo empréstimo. Essa rendição aconteceu na quinta-feira, já depois do referendo em que 61% dos gregos disseram “não”: o governo de Tsipras não encarava a Grexit como solução possível por causa do caos que esta traria ao país, e logo estava colocado entre a espada e a parede porque, com os bancos encerrados e nenhuma alternativa, não tinha poder negocial. Levou o seu bluff o mais longe possível, mais até do que seria razoável – e acabou por perder a partida de poker em toda a linha, apresentando aos credores europeus um plano de resgate ainda mais duro que aquele que os eleitores, a seu próprio conselho, tinham rejeitado apenas quatro dias antes.

Mas os gregos, tal como todos nós, tinham subestimado a sanha ideologicamente alucinada dos déspotas que se apoderaram da Europa. A estes a vitória não lhes chegava, uma rendição sabia a pouco, a manutenção dos reembolsos aos seus bancos – tão pressurosos a emprestar à Grécia, mediante taxas muito agradáveis, dinheiro para comprar submarinos alemães, por exemplo – era apenas um fait divers; o objectivo era a capitulação total do inimigo (ex-aliado e parceiro europeu), humilhação necessária para vingar o desplante da afronta aos todo-poderosos.

O “acordo” – na verdade um diktat – que a Grécia terá de aplicar inclui todas as rendições que país tinha proposto e muitas outras, entre as quais um fundo de 50 mil milhões de euros (um terço dos activos do Estado grego) a constituir por privatizações e vigiado de perto pelos políticos alemães. Este “acordo” é da autoria do advogado Schäuble, um homem que no ano 2000, quando almejava chegar a chanceler, foi forçado a demitir-se de presidente do seu partido democrata-cristão por ter aceitado pessoalmente (muito) dinheiro de um lobbyista fabricante de armas; um homem que defendeu vigorosamente a invasão levada a cabo por George W. Bush no Iraque sob falsos pretextos; alguém que enalteceu Guantanámo como “uma resposta legal e responsável na luta da civilização contra a barbárie”.

Às mãos deste homem pouco recomendável, a democracia europeia sofre triplamente. Porque se pretende que áreas fundamentais num Estado de Direito (impostos, segurança social, código civil) sejam danificadas sem sequer um simulacro de controlo democrático. Porque quer manietar completamente um governo eleito (e reforçado em referendo), e submetê-lo às suas ordens. Finalmente, porque rejeita qualquer possibilidade de alternativa a ideologias económicas que falharam estrondosa e cruelmente, aprisionando-nos num túnel sem fim, condenados a invejar para sempre as soluções dos EUA para sair da crise.


Mesmo que a Grécia consiga implementar o que lhe impuseram, o remédio está errado; dentro de alguns anos, talvez meses, estaremos a discutir mais dívida, mais empréstimos, mais crises, na Grécia como em outros países de uma Europa desagregada. 500 mil utilizadores do Twitter resumiram tudo logo nas primeiras 24 horas: o que se passou aqui foi uma pura e simples tomada de poder por meios ilegais. Isto é um golpe de Estado.

Siiiiim!


Na Grécia, há um dia do Não. Cada 28 de Outubro é feriado, e todos os locais públicos são engalanados com bandeiras azuis e brancas. Os gregos relembram o dia de 1941 em que o primeiro-ministro grego foi acordado de madrugada e confrontado com um ultimato de Mussolini, que exigia o controlo imediato das áreas estratégicas da Grécia ou invadiria o país. A resposta em bom francês de Metaxas – “alors, c’est la guerre!” – ficou na História como, simplesmente, “Não!”. O exército grego acabou por rechaçar os soldados italianos, mas em seguida vieram as divisões nazis, que içaram a bandeira com a cruz suástica na Acrópole poucos meses depois. (Esta bandeira viria a ser retirada por resistentes gregos, um dos quais, Manolos Glezos, é hoje aos 92 anos deputado europeu eleito pelo Syriza).

A resposta de Metaxas era o Não mais célebre de sempre… até domingo passado, quando um povo – exangue, submetido a um tratamento de choque neoliberal ao longo de meia década, chantageado por decisões discriminatórias do Banco Central Europeu, ameaçado por uma fila interminável de políticos europeus a quem a fina camada de verniz democrático estala com demasiada facilidade, esfomeado pelos bens que começam a escassear – não se intimidou e gritou de forma avassaladora “Não”. Não a mais curas suicidas. Não a mais políticas austeritárias que já foram testadas e comprovadas como falhanços perigosos ao longo da História.

A revista “Der Spiegel”, num excelente artigo publicado um dia antes do referendo, chama ao ponto a que chegamos “as cinzas de Angela”. O estilo de liderança da chanceler – adiar, esconder, permitir que tudo permaneça vago, nunca tomar decisões impopulares para os seus eleitores – talvez funcione na política doméstica alemã, mas é um desastre quando as responsabilidades são maiores. E sob Merkel, a Alemanha procura efectivamente reinar sobre a Europa – mas não sabe o que fazer com esse poder. “A crise grega requeria liderança e um plano, mas Merkel foi incapaz de fornecer nenhum dos dois”, escreve a publicação alemã.

Um “Sim” no referendo, além de fazer cair o governo actual (genuinamente europeísta) e talvez abrir caminho para os populismos neofascistas, teria condenado a Grécia a anos (décadas?) adicionais de sofrimento (punição?) às mesmas políticas que diminuem o PIB ainda mais rápido que cortam a dívida, ou seja, piorando os problemas. Mas um claro “Não” abre uma janela de oportunidade que é absolutamente necessário aproveitar – já não para salvar a Grécia, mas sim o próprio projecto europeu, há demasiado tempo prisioneiro do “pensamento único” e dos egoísmos nacionais.

É simbólico que muito do que estava em jogo tenha sido entendido pela juventude grega, percentualmente a faixa da população que mais votou “Não” (sobretudo os mais jovens, alguns a exercer o seu primeiro voto de sempre). A taxa de desemprego entre os jovens já ultrapassa os 55%; a esmagadora maioria não pode, talvez nunca venha a poder, sair de casa dos pais e começar a caminhar na vida. É toda uma geração que está a ser desperdiçada pela Europa, e sobretudo na Grécia, em nome do pagamento de juros altíssimos a bancos alemães e franceses…

O voto “Não” foi na verdade um voto “Sim” – sim a outra Europa, a Europa da coesão, da solidariedade, do crescimento, da esperança, enfim, da racionalidade económica. Sim à Razão, sim a uma conferência da dívida entre devedores (Portugal incluído) e credores. Sim a um Acordo Justo.

As notícias da morte do euro são exageradas


Autor das “Aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn”, Mark Twain foi um dos maiores escritores em língua inglesa. Talvez mais do que isso, era senhor de uma ironia mordaz e um talento para a comédia quando a comédia não era, como hoje, uma possível opção de carreira. Essa personalidade inspirou o comentário que fez ao ler o seu próprio obituário num jornal que, por engano, tinha anunciado o seu falecimento: “as notícias da minha morte são algo exageradas”.

O mesmo comentário poderia ter sido proferido pelo euro se a moeda lesse jornais e falasse. No dia em que escrevo, segunda-feira, o Los Angeles Times titula “O euro e a União Europeia estão em perigo”; a moeda desvaloriza nos mercados cambiais; as previsões para o futuro próximo da Grécia são todas apocalípticas, o que até é apropriado porque “apocalipse” é uma palavra de origem grega – e significa “descoberta” ou “revelação”.

Chegamos a este ponto impensável por via da insanidade: a insanidade política e económica das elites conservadoras que há demasiado tempo dominam, sem oposição, a Europa, impondo uma agenda ideologicamente extremista que não admite alternativa e muito menos dissidência. Merkel preferiria caminhar sobre carvões em brasa – ou então arriscar a destruição do projecto europeu – a permitir que os rebeldes do Syriza fossem bem-sucedidos e proliferassem até Portugal e Espanha. Sobre a parte política estamos conversados, mas o lado económico é mais grave.

Em cinco anos de receitas austeritárias completamente erradas – algo que é, e importa sublinhá-lo outra vez, admitido relutantemente por alguns dos próprios “médicos” que as administraram – a Grécia realizou um esforço brutal de ajustamento económico. Entre 2009 e 2014, o saldo orçamental grego melhorou em 12% do PIB (e o país tem hoje um excedente orçamental significativo). O mesmo aconteceu com a sua balança de transacções correntes. Para obter estes resultados exigidos, metido numa camisa de forças económica, o país perdeu 25% da sua riqueza; o desemprego, a pobreza, a miséria e mesmo a fome dispararam. 3 milhões de gregos não têm hoje acesso a cuidados de saúde básicos. Agora os bancos estão fechados e falidos, e há um controlo de capitais em vigor (cada pessoa só pode levantar 60 euros por dia).

Não foi o actual governo grego quem criou este estado de coisas medonho (que aliás estilhaça muitos dos ideais românticos inspirados pela UE). Tsipras e Varoufakis tiveram o mérito de compreender que o país estava preso numa armadilha de que nunca se iria libertar, sendo ajudado apenas o estritamente necessário para não falir mas sempre impedido de crescer e tornar-se senhor do próprio destino. Daí as suas atitudes insolentes, próprias de quem pensa não ter muito a perder.

É uma irresponsabilidade, pois no curto prazo as consequências de uma saída do euro seriam terríveis para a Grécia (algumas já estão visíveis). No longo prazo, porém, o impacto nos credores – que nunca recuperariam o que emprestaram – e na própria Europa, dividida por feridas irreparáveis, seria muito mais devastador. É por isso que acredito que a Razão e a Inteligência acabarão por prevalecer entre políticos e economistas; que o referendo de domingo instará a um bom acordo; que a Grécia acabará por conseguir um balão de oxigénio; e que as notícias sobre a morte do euro são, de facto, algo exageradas.

Reciclarte


Nem tudo o que reluz é ouro. Por outro lado, nem todos os caixotes abandonados contêm apenas tralha sem valor – uma verdade que uma californiana anónima, mais do que ninguém, deveria conhecer. Esta mulher-mistério perdeu o seu marido e, passado algum tempo, decidiu libertar-se das suas possessões terrenas. Ofereceu as roupas, doou os livros, vendeu o carro. Por fim sobraram alguns caixotes com cabos e circuitos electrónicos na garagem. Provavelmente resmungando contra as manias de acumulação de lixo do falecido esposo, a nossa heroína dirigiu-se ao centro de reciclagem mais próximo e entregou-lhes todos aqueles resíduos, alguns deles com quase 40 anos.

Antes de destruir tudo e eventualmente aproveitar algumas pecinhas, os funcionários do centro de reciclagem abriram um caixote... e descobriram que aquele emaranhado constituia um dos apenas 63 exemplares sobreviventes do Apple Computer 1, ou seja, o primeiro produto da que é hoje a empresa mais valiosa do mundo – a capitalização bolsista da Apple já ultrapassou o PIB da Suíça ou da Arábia Saudita, e também os valores somados da Google e da Microsoft...

O primeiro Apple, produto exclusivo da mente brilhante de Steve Wozniak, tinha sido criado sobretudo para impressionar a pequena comunidade de “engenhocas” da cidade onde Wozniak e o seu amigo Steve Jobs viviam; basicamente era apenas uma placa-mãe de circuitos (não incluia teclado, caixa, alimentação nem ecrã) com 4 Kb de memória RAM. Foi Jobs quem teve a ideia de vender o aparelho a partir do próprio local onde ele era fabricado pelos dois: a garagem de casa dos pais. Custava na altura o equivalente a 2500 euros actuais; como peça de colecção, o seu valor é agora muitas vezes superior, e de facto o centro de reciclagem imediatamente vendeu o exemplar abandonado pela bonita soma de 200 mil dólares, dos quais metade pertencem à nossa viúva misteriosa. Pequeno problema, ninguém sabe quem ela é ao certo, e apesar dos ecos desta história terem corrido mundo nos últimos tempos, a incógnita sobre a sua identidade permanece.

Histórias de objectos desaproveitados, ou comprados por tostões quando na verdade valem milhões, são mais frequentes do que parecem. Já foram redescobertos móveis, jóias, quadros valiosos; um motorista de camião aposentado pagou 4 euros por um quadro “tão feio” que serviria para uma brincadeira de amigos, e acabou por levar para casa um enorme Jackson Pollock (quando informado do facto, usou um palavrão para perguntar “quem é esse?”). Mas talvez o caso mais impressionante dos últimos anos tenha acontecido quando uma senhora viu, por entre todos os bricabraques de um mercado de rua, uma moldura de que gostou e pela qual pagou 6 euros; no momento em que começou a separá-la do quadro (uma paisagem de flores e água), a mãe parou-a e telefonou a um especialista. Tratava-se de uma obra do mestre Renoir, valendo mais de 100 000 euros... num golpe de teatro posterior, descobriu-se que o quadro tinha sido roubado a um museu em 1951, pelo que a sua redescobridora não obteve qualquer compensação pelo feito.

A única lição possível é: antes do caixote de lixo, certificarmo-nos de que é mesmo tralha e não ouro disfarçado. E, cara leitora, se no mês passado andava pela Califórnia a deitar fora computadores velhos, apresente-se: há uma agradável montanha de notas verdes à sua espera.