quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Honestos passageiros de todo o mundo, revoltai-vos!

Sejamos sinceros: viajar de avião é um suplício. E as coisas vão piorar depois de dois incidentes ocorridos esta semana, ambos em aviões a viajar de Amesterdão para Detroit. O primeiro provavelmente real, o segundo nem por isso (mas já lá vamos).

Imediatamente – e ainda antes de alguém averiguar o que se passou ao certo nos dois aviões - companhias de aviação e aeroportos se uniram para reclamar “novas medidas de segurança”. Tradução: mais atrasos, mais filas, mais invasões da privacidade, mais aborrecimentos, mais custos. Custos para os pobres passageiros, evidentemente, que suportam a subida astronómica das taxas aeroportuárias nos últimos anos (o Porto já cobra mais de 35 euros por uma partida, um dos mais altos valores da Europa). Centenas de milhares de pessoas, após um árduo ano, não têm outra alternativa senão pagar preços inflacionadíssimos só para passar alguns dias com a família no Natal – mas tal não os livra de serem tratados alternadamente como gado e como mina de ouro ambulante. Primeiro o gado: os requisitos estapafúrdios, a pouca simpatia recebida, as filas labirínticas, o descalçar, o abrir as malas. Depois a mina de ouro: não bastando o enorme número de empregos em todo o tipo de vigilantes de aeroporto (cujas atribuições, curiosamente, não parecem impedir o roubo de malas), há ainda uma parafernália de lojas de aeroporto cheias de artigos inúteis e a preços monopolistas para visitar… e quanto mais tempo for possível obrigar as pessoas a passar dentro das instalações, melhor.

O segundo incidente ocorrido num voo para Detroit esta semana não passou de um passageiro que “esteve cerca de uma hora na casa-de-banho e, quando interpelado, reagiu mal”, segundo comunicou o FBI. Discussões deste género acontecem milhares de vezes por dia, e até na minha casa-de-banho. Mas esta, propositadamente repetida e amplificada por todos os media mundiais, servirá de pretexto para “medidas” como a Air Canada já anunciou: na última hora do voo, todos os passageiros são obrigados a ficar colados ao assento. Outras companhias pensam proibir o acesso à própria bagagem de mão. Numa decisão que é pelo menos mais honesta – porque busca declaradamente o lucro sem estar travestida de “medida de segurança” – a Ryanair vai começar a cobrar 1 euro por cada utilização das “toilettes” – há uns anos, em Portugal, o controlo do tempo aí passado pelas funcionárias de empresas têxteis provocou um clamor social, mas vemos agora que tais tácticas humilhantes pecavam apenas pelo amadorismo.

Tanta imaginação para extorquir mais tempo e dinheiro aos passageiros, mas basta um dia de neve como o passado 20 de Dezembro para cancelar os voos de meia Europa, como se a água congelada fosse uma ameaça tão letal e inesperada. Definitivamente, as companhias de aviação não estão de acordo com a máxima de que a viagem faz parte integrante do prazer de viajar.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

As duas fugas de informação que ameaçam Copenhaga

Há uma regra que se aplica sem falhas à História da Humanidade: a informação circula cada vez mais depressa e em maior quantidade. A (errónea) lenda afirma que o pobre soldado grego Fidípides morreu exausto ao chegar a Atenas com a notícia (contida numa só palavra, “ganhámos”) da vitória sobre os persas em 490 AC, depois de correr 42 km, incidentalmente criando a prova da maratona; hoje, qualquer jogo de futebol entre a Grécia e o Irão, mesmo provavelmente aborrecido, pode ser seguido em tempo real por ecrã de telemóvel na América do Sul. Há um corolário daquela regra, apesar de bastante mais difícil de provar: é cada vez mais difícil impor restrições à informação e mantê-la confidencial. O segredo pode fugir para o grande público e provocar efeitos imprevisíveis – dois desses casos ameaçam esta semana o sucesso da crucial cimeira de Copenhaga sobre as alterações climáticas.

Fuga 1: o “ClimateGate”. A 17 de Novembro, um site de hackers publicou emails internos trocados ao longo de 13 anos por investigadores da Universidade de East Anglia, um dos centros de investigação climática mais avançados do mundo, incluindo sugestões sobre a necessidade de disfarçar o facto de as temperaturas médias globais não estarem a subir nos últimos anos. Os (poucos) cientistas “cépticos” amplificaram as passagens mais sumarentas, enquanto em Copenhaga, a Arábia Saudita – maior produtor mundial de petróleo – afirmou que o caso vem colocar dúvidas sobre as bases em que são feitas as negociações, enquanto nos EUA, imersos uma grande discussão interna sobre o clima, o Climategate já foi aproveitado como argumento pelos republicanos.

Fuga 2: o “Texto dinamarquês”. Um rascunho do acordo a assinar em Copenhaga, elaborado em segredo por um grupo de indivíduos que ficou conhecido como "o círculo do compromisso", foi terminado há algumas semanas, mostrado a um grupo muito restrito de países (desenvolvidos) e só deveria ser conhecido dentro de alguns dias. Mas na terça-feira foi publicado no “Guardian” (o mesmo jornal que tinha noticiado a fuga 1…) e provocou uma reacção furiosa dos países em desenvolvimento, que se sentem atraídos para uma cimeira onde tudo já estaria decidido de antemão – e em seu desfavor.

Ambas as fugas fariam apenas parte da “petite histoire” não fora pelo inconveniente pano de fundo: o esmagador consenso científico – intocado pelas fugas referidas – de que a acção do Homem está a mudar o clima; de que os oceanos estão a subir e as catástrofes naturais a aumentar; que o esforço, nomeadamente de redução de CO2, da nossa geração e seguintes terá de ser enorme, dando à cimeira que acaba na sexta em Copenhaga laivos de oportunidade imperdível. É que há uma máxima incontornável: o planeta Terra não tem uma capacidade infinita…

O anticlímax de Lisboa


Acaba de entrar em vigor, por fim, o Tratado de Lisboa. 1 de Dezembro de 2009 é uma data que vai figurar em todos os compêndios históricos sobre a União Europeia; a partir deste dia, foi dado mais um passo importante para a unificação do continente, para o melhor funcionamento das suas instituições e para o crescimento da presença europeia no mundo.

As primeiras decisões importantes tomadas sob a égide do novo tratado foram, naturalmente, sobre quem iria preencher os imponentes novos cargos criados na constelação dourada e azul. E a União, masoquista, decidiu não em função de si própria e dos seus interesses comuns (sobretudo exteriores), mas sim tomando em conta todas as suas limitações internas. Foi escolhido quem (ao contrário de Juncker com Sarkozy, por exemplo) nunca tinha aborrecido ninguém. Ou seja, perfeitos desconhecidos.

É legítimo perguntar neste momento: era mesmo necessário criar um novo cargo de presidente do Conselho que se sobrepõe ao já existente? Se a intenção era entregá-lo a um obscuro e veterano burocrata cuja visão sobre a Europa era desconhecida até há menos de um mês atrás, quando Van Rompuy fez um discurso de alguns minutos numa reunião do grupo Bilderberg – um poderoso clube que prima pelo secretismo –, então a resposta seria provavelmente não. Se a isto adicionarmos uma Alta Representante, Catherine Ashton, que nunca foi eleita para qualquer cargo, era há cinco anos subsecretária de Estado responsável pelos arquivos do parlamento inglês e não tem qualquer tipo de experiência diplomática, obtemos a receita para uma Europa funcionando em circuito fechado. O temido “método intergovernamental” entrou em acção; mais uma vez, os grandes países obtiveram o que desejavam, eminências pardas que não lhes fazem sombra – e dão uma pálida imagem de uma Europa que se arrisca, a continuar por este caminho sinuoso, a acordar num mundo irremediavelmente dividido entre EUA e China. E isto quando a União Europeia a 27 representa a maior economia do mundo!

A Europa foi desiludida. Onde lhe prometeram coragem, deram-lhe modéstia. Onde deveria estar a potência política, está um ex-primeiro-ministro tardio, temporário e não sufragado. Onde era preciso um símbolo de união, foi colocado um especialista da diversidade. A desejada independência da diplomacia europeia vai ser posta em marcha por uma oriunda da Grã-Bretanha, tradicional seguidora dos Estados Unidos.

Lisboa, como panaceia dos males de que padece a indecisa Europa, começa mal. Mas estas personalidades podem sempre revelar-se óptimas e agradáveis surpresas – e dada as baixas expectativas, têm mesmo todas as condições para isso. É mais que tempo de deixar de tergiversar e passar a agir – o comboio da História não espera por ninguém, nem mesmo pelo belo ideal de uma Europa em paz, livre, próspera e unida.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Amanhã há eleições presidenciais

Dia 19 de Novembro, uma fria quinta-feira, talvez o mesmo dia em que o caro leitor está a ler esta crónica em papel: a Europa elegerá o seu primeiro presidente. Claro que esta frase não é tecnicamente exacta – o cargo de presidente permanente do Conselho Europeu, acabado de criar por um Tratado de Lisboa que entra em vigor a 1 de Dezembro, não é realmente o de um Chefe de Estado; e o cargo de presidente do Conselho Europeu já existe há anos, só que durando seis meses e sendo ocupado pelo primeiro-ministro do país que detém a presidência (neste momento a Suécia, a partir de Janeiro a Espanha).
O problema é que a parte mais afastada da realidade na frase “A Europa elege o seu primeiro presidente” é mesmo o início. Não serão os cidadãos europeus a eleger o “seu” presidente. Na verdade, é difícil até identificar quem o faz; em teoria, são os 27 governos dos Estados-Membros, mas na verdade apenas uma ou duas pessoas influenciam a escolha dentro de cada governo, e o peso de cada um dos 27 também é muito diferente… Olhando de perto, o futuro mandatário por dois anos e meio (renováveis uma vez) será escolhido por 10 ou 20 europeus entre os cerca de 500 milhões que habitam esta “casa comum”. Para a causa do envolvimento dos cidadãos no grande projecto europeu, a conclusão não é brilhante. Porque não, por exemplo, eleger um certo número de candidatos, digamos 12, em eleições verdadeiramente pan-europeias, sendo posteriormente um desses 12 magníficos escolhido numa cimeira extraordinária como aquela que decorre amanhã em Bruxelas? A força e legitimidade da Europa sairiam reforçadas e essa grande invenção europeia denominada “democracia” seria mais honrada do que na situação actual, com nomes cozinhados atrás de portas fechadas e nos quais os media vão tentando acertar (ou criar), enquanto a maioria da população passa tranquilamente ao lado de mais uma decisão com impacto real na sua vida.

Quanto impacto? Depende de quem for eleito. Os jornais apontam o primeiro-ministro belga, Van Rompuy, como grande favorito – e o que não deixa de ser interessante, desde domingo que nos famosos bookmakers ingleses já não é possível apostar no próximo presidente, o que indica que o favorito é mais do que isso. Van Rompuy, que tem “Aquiles” no seu nome completo, tem o calcanhar de ser um perfeito desconhecido até há um ano atrás, quando foi designado para pacificar o seu difícil país. A sua eleição significará uma Europa introvertida e um cargo desenhado essencialmente como facilitador de consensos. Juncker, outro candidato, vem de um país que é mal visto devido ao segredo bancário, e detém uma característica que deveria ser uma vantagem mas infelizmente não é: a imagem “demasiado europeísta”. Para os resultados de corridas tão incertas e em que muitas vezes surge um nome inédito à última hora (que o diga Barroso) aos dois postos – também o de Alto-Representante da União para a Política Externa –, eu arriscaria apenas dois prognósticos: o presidente virá de um pequeno país da Europa do Norte; e um dos dois cargos será entregue a uma mulher.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Berlim, uma ilha com 20 anos

Em 1989 éramos todos jovens, mas não necessitamos disso como desculpa para explicar porque não nos lembramos das imagens nocturnas de bulldozers a destruir secções do Muro em Berlim entre aclamações de uma multidão ainda incrédula e com os olhos marejados de lágrimas de alegria: isto porque nos lembramos muito bem destas imagens.
Em Novembro de 1989, a situação na Alemanha de Leste era de turbilhão. O velho líder Erich Honecker, o mesmo que tinha em Janeiro afirmado que “o Muro durará mais cem anos”, tinha sido forçado a demitir-se havia duas semanas e a nova direcção do Partido Comunista, pressionada pela abertura das fronteiras nas vizinhas Hungria e Checoslováquia e por uma manifestação gigantesca em Alexanderplatz no dia 4, reúne na manhã do dia 9 e decide abrandar as restrições aplicadas a visitas ao Ocidente, prevendo mesmo a concessão de vistos temporários a cidadãos comuns, dentro de pouco tempo. É o porta-voz do Governo, Günther Schabowski, detentor no regime do cargo de secretário-geral da Propaganda, quem tem a incumbência de anunciar a medida à população. Schabowski senta-se para a conferência de imprensa acabado de regressar de uns diazinhos de férias e desconhecedor dos últimos desenvolvimentos; nas mãos tem apenas uma pequena e incompleta nota do Politburo. Quando os jornalistas lhe perguntam a partir de quando é que as restrições começarão a abrandar, o titubeante Schabowski afirma: “Tanto quanto sei, imediatamente!”. Num primeiro momento os jornalistas nem podem acreditar no alcance daquelas palavras. Segundos depois, a História começa a sua marcha inexorável: milhares de berlinenses inundam as cercanias do Muro e exigem aos atónitos guardas, os mesmos que atiraram para matar centenas de vezes ao longo de 28 anos de existência do Muro, entrar em Berlim Oeste. Depois de desesperados telefonemas sem sucesso para um poder que já não existia, os guardas acedem. A euforia é indescritível e os chamados “pica-paus” (pessoas que com picaretas ou guindastes deitaram abaixo o cimento grafitado) começariam no próprio dia o trabalho de demolição dos 156 km do Muro.

A data de 9 de Novembro é hoje um dos símbolos da reunificação europeia e, passados 20 anos, a grande cidade que é Berlim tenciona festejá-la condignamente. No fim-de-semana que passou foram os envelhecidos líderes políticos daquele tempo, Helmut Kohl, Mikhail Gorbatchov e George Bush pai (Mitterrand morreu e Thatcher tem Alzheimer em estado avançado), que posaram para uma fotografia de grupo; no dia 9 são os seus respectivos sucessores a fazê-lo. Mas a festa vem também para a rua: no dia 5, os U2 – cuja carreira é indissociável de Berlim – tocam na Porta de Brandenburgo. Depois há exposições, desfiles, fogos-de-artifício, concertos, tudo inserido num tão relaxado quanto ambicioso “Festival da Liberdade” que vai transportar os presentes de volta àqueles dias onde a História andou muito depressa, e onde a “ilha verde” que é a cidade de Berlim, 8 vezes mais extensa que Paris, voltou a ser o centro do Mundo.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Os automobilistas que paguem a crise

Em tempo de défices públicos crescentes, há muito que os Estados europeus encontraram uma forma aparentemente inesgotável de receitas: os infelizes automobilistas. As sacrificadas famílias que decidem deter um carro, ou os corajosos indivíduos que guiam um, vêem-se crivados de impostos, taxas, multas e imposições diárias. O exemplo mais gritante vem talvez de França, onde ser automobilista é hoje em dia um verdadeiro pesadelo (e não se fala aqui do trânsito caótico nas cidades ou das qualidades discutíveis do condutor francês médio, até porque há pior).

Fazer uma longa viagem de carro até Portugal, por exemplo, obriga-nos a atravessar dois grandes países europeus: França e Espanha. A passagem da fronteira de Hendaye para Irún, no fundo nada mais que duas localidades bascas, é no entanto muito vincada. Em França as auto-estradas têm quase sempre portagem, e bem alta; estão frequentemente (permanentemente, na Île-de-France) congestionadas; amiúde em obras; e sobretudo, pejadas de radares e de controlos policiais que, invariavelmente, incidem não sobre manobras perigosas mas sobre a velocidade instantânea de um veículo. A evolução das políticas para 2010 é a seguinte: cada litro de gasolina custará mais 11 cêntimos (tornando-a a segunda mais cara da União Europeia, depois dos Países Baixos) devido a uma nova “taxa sobre o carbono”; o número de radares, actualmente em 1400, duplicará em apenas um ano; os controlos de velocidade também aumentarão. Questão de segurança? Não, pura e simplesmente uma questão de dinheiro – dinheiro para os depauperados cofres do Estado francês, com as suas contas sempre no vermelho.

Se aceitarmos que os números de óbitos na estrada é uma medida fidedigna das políticas de segurança rodoviária, a repressão extrema – e custosa – praticada no Hexágono em relação a tudo o relacionado com o automóvel não está a resultar. Segundo números da Comissão Europeia, nos últimos 12 meses as mortes na estrada baixaram no país apenas em 1% – o quarto pior resultado da EU a 27, e apenas ligeiramente melhor que Grécia, Bulgária e Roménia. Na verdade, a comparação com o velho rival que segue na estrada uma filosofia de responsabilização em vez de repressão, a Alemanha, é embaraçosa para a França: quase os mesmos números absolutos de vítimas na estrada, quando há menos 20 milhões de gauleses, e quando as auto-estradas alemãs, mais antigas e em grande parte sem limite de velocidade, são cruzadas por camiões de toda a Europa…

Por vezes é possível encontrar cartazes nalgumas estradas secundárias em França: “Automobilistas = vacas leiteiras. Estamos fartos!”. Mas são precisamente os produtores de leite e não os automobilistas que estão na linha da frente da contestação social (e física) ao Estado. Talvez por isso uns paguem e outros sejam subsidiados.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Reinventar o Rio de Janeiro é uma ideia maravilhosa


O Rio vai organizar os Jogos Olímpicos em 2016 e esse atribuição de responsabilidades à Cidade Maravilhosa, tão bem-vinda quanto relativamente inesperada, vai consistir no primeiro grande projecto de renovação – mais do que isso, de reinvenção – urbana deste século XXI. Claro que as anteriores Olimpíadas realizadas em Sidney, Atenas e Pequim, bem como a de 2012 a ter lugar em Londres, provocaram também grandes mudanças na face destas grandes aglomerações humanas, mas o que está em causa no Rio de Janeiro é diferente: trata-se de recuperar, renovar e relançar – não tenho pejo em dizê-lo, trata-se de salvar – um dos locais míticos da Terra, a casa (e não por acaso Ruichi Sakamoto escolheu uma foto do Rio ao amanhecer como capa do seu excelente disco “Casa”...) de cerca de 12 milhões de pessoas em toda a sua área metropolitana. Uma casa que oscila entre a mansão em ruínas e o bairro social degradado.

O Rio de Janeiro, capital brasileira por mais de 200 anos até 1960, a capital do Império português por 13 anos (1808-1821), a capital simbólica e espiritual da brasilidade, da América do Sul e de toda uma certa forma de ver e viver a vida, o local de nascimento do “malandro” e da bossanova, a detentora do título oficioso de “cidade mais bela do mundo”: a grande cidade está marginal, maltratada e maltratante, estar lá é uma prova de coragem e resistência, não só um privilégio. É uma cidade bloqueada com problemas profundos, e os Jogos Olímpicos constituem a sua grande oportunidade. O que está em jogo é enorme: simplesmente, tornar a cidade no desejável epicentro de um novo Brasil poderoso e global, cuja economia deverá ser a quinta maior do mundo em 2016. Banco Mundial dixit.

A tarefa é titânica. Para os Jogos propriamente ditos, os maiores problemas a resolver são a falta de segurança (um eufemismo, numa das cidades mais violentas do mundo), os caóticos e poluentes transportes à base de autocarros (o metro é limitado) e as insuficiências de alojamento (faltam 20 000 camas em hotéis). Mas há também questões ambientais gigantescas na cidade que acolheu a primeira grande conferência mundial sobre o ambiente, em 1992. Os JO vão proporcionar a motivação ideal para despoluir as águas da baía de Guanabara e da lagoa Rodrigo de Freitas. Mas claro, as gigantescas favelas continuarão sem água potável ou recolha de lixo, muito menos vão deixar de existir. Os Jogos não resolvem problemas sociais, só podem – e não é pouco – mudar uma cidade. Só que para isso é preciso muita pasta, e o Brasil pensa investir 246 mil milhões de euros a preços correntes no Mundial de 2014 e nos Jogos de 2016; o mesmo dinheiro chegaria para construir sensivelmente 35 TGVs portugueses, ou 70 aeroportos de Alcochete. O importante, dizem, é mesmo competir.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Uma década de Barroso

Há um português que faz parte daquele restrito, muito restrito grupo de governantes verdadeiramente globais que podem (querendo e sabendo) influenciar as grandes decisões a tomar – por exemplo em alturas de grave crise económica – e que aparecem em todas as fotografias que realmente interessam – como aquela na famigerada cimeira dos Açores que decidiu a invasão do Iraque, juntamente com Bush, Blair e Aznar. Esse português chama-se José Manuel Barroso e foi reeleito na semana passada como presidente da Comissão Europeia por mais cinco anos. Em 2014, os europeus terão visto nada menos que dez anos de Barroso como presidente da instituição que é o tradicional motor da construção europeia, longevidade de que apenas o primeiro presidente da Comissão, o alemão Walter Hallstein, e o mais conceituado de todos, o francês Jacques Delors, se podem igualmente gabar.
Claro que existir um "presidente da Comissão Europeia português" é relevante pelo prestígio internacional; e também é possível, embora não demasiado provável, que a acrescida influência política do país possa ser importante para, por exemplo, assegurar sempre importantes fundos de coesão para Portugal. Acresce que Barroso era o único candidato proposto, o que significa que terá alguns méritos. Esses argumentos são esgrimidos sempre que um português balbucie algo que possa ser assemelhado a criticismo ao primeiro mandato barrosista. E no entanto…
No entanto, poucos europeístas estão especialmente entusiasmados com a reeleição de um presidente que viu a Comissão perder, uma vez mais, protagonismo e cuja reacção à crise financeira foi tardia, tímida e muitas vezes ignorada; uma Comissão que passa um teste crucial em duas semanas, devido ao referendo na Irlanda, e que se for aí bem sucedida terá de conviver com um Conselho Europeu ainda mais poderoso; uma Comissão que não tem um verdadeiro troféu para apresentar relativamente aos cinco anos passados, e cujo presidente é acusado amiúde de "não ter uma ideia para a Europa e ter passado demasiado tempo preocupado com a sua reeleição" (Die Zeit) ou de ser "apenas o joguete nas mãos de Angela Merkel" (Wolfgang Münchau do Financial Times, e Münchau não é qualquer um). O Le Monde refere-se a um dos seus epítetos políticos – o de "camaleão". Ao elegê-lo, o Parlamento Europeu exigiu-lhe efectivamente que mude, não de cor (o bronzeado de Barroso é sempre leve) mas de políticas. Veremos se daqui a mais cinco anos a oportunidade terá sido aproveitada.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Regresso dos banhistas maltratados


Ano após ano, o fenómeno diminui de intensidade, mas repete-se. Quando o calendário indica Agosto, dá-se o êxodo: as ruas ficam desertas, os restaurantes e os bares e as lojas fecham, os bancos e as repartições funcionam quando muito em serviços mínimos, alguns jornais – que não felizmente este – abdicam de dar notícias, perde-se o rasto aos amigos por algumas semanas. É assim no Luxemburgo, um dos poucos locais onde a velha instituição férias-de-verão-em-Agosto, criada pelo modelo social europeu, ainda vai sendo levada a sério. E ano após ano, a primeira semana completa de Setembro significa o total regresso à normalidade, com o trânsito a (não) fluir como habitualmente e com as conversas no emprego e nas aulas a versarem todas sobre os dias passados junto ao mar, em locais exóticos ou na terra de origem – os mais hedonistas, esses, já com a cabeça nos planos das próximas férias.

Mas esqueçam a imagem de uma sociedade onde escritórios, hotéis, escolas ou canteiros de obras estão nesta semana repletos de pessoas bronzeadas, com baterias recarregadas e plenas de vontade de reiniciar o ciclo anual de produtividade e labor. A rentrée deste ano é particularmente difícil, mais do que o habitual. O espírito do tempo, que notamos apenas olhando à volta, é desanimador, o que não admira se considerarmos vários factores de ordem económica (e política), no topo de todos, o crescente nível de desemprego. É bom ter um trabalho ao qual voltar uma vez devolvida a toalha de praia ao armário, já que mais e mais pessoas (3500 mais em apenas um ano, segundo os últimos dados) não podem dizer o mesmo – e a consequente subida da concorrência no mercado de trabalho também aumenta a pressão sobre aqueles que já têm um. Depois de um mês de esquecimento e gelados de morango, a aterragem na realidade é muitas vezes tão pouco suave como voando numa companhia low-cost.

É um passo curto até que nos recordemos que, tal como antes dos dias de esplanada, continuamos no meio de uma recessão económica de características estranhas e que é combatida na Europa por governos muitas vezes impopulares, por vezes instáveis, sempre endividados. E sobretudo apenas nacionais, com a Europa angustiada por ver a sua voz comum a sumir-se num coro global sempre mais complexo. Uma Europa que está “em pausa”, prendendo a respiração até saber o que se passa em votações a ter lugar nas próximas semanas: nas eleições gerais alemãs, nas portuguesas também, na recondução ou não de Barroso como presidente da (descoordenada) Comissão Europeia. E sobretudo, no novo referendo do qual depende a vida do Tratado de Lisboa, a ser realizado na Irlanda; as primeiras sondagens pós-rentrée indicam que o campo do “sim” passou a estar em minoria.
Não dá mesmo para voltar à toalha de praia e ver a vida através de óculos de sol? É que apetece.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Abarcando o globo


É pena que o Museu Nacional de Arte Antiga tenha decidido chamar à extraordinária exposição organizada pelo Smithsonian Institute de Washington e que abriu ao público este mês no grande museu de Lisboa um bastante neutro “Portugal e o Mundo nos séculos XVI e XVII”. O título original da mostra, que levou anos a preparar e conta com peças vindas de 26 países diferentes, é “Encompassing the Globe” (que se poderia eventualmente traduzir por algo como “abarcando o Globo”, o que desde logo sugere um jogo de palavras com as “barcas” em que as tripulações partiam à descoberta), nome que permite outras leituras, dado que o verbo, complexo, pode também significar “circundar”, “abranger”, “incluir”, “abraçar”, afinal aquela que é a temática da exposição: a epopeia dos Descobrimentos portugueses, e o seu intercâmbio de culturas, como primeira vaga da globalização. Aquando da inauguração da exposição nos Estados Unidos, em 2007, o crítico Holland Cotter (que aliás ganhou este ano o prémio Pulitzer do jornalismo) escrevia no New York Times: “Aqui está um facto pouco conhecido: uma versão da internet foi inventada em Portugal, há 500 anos atrás, por marinheiros com nomes como Pedro, Vasco e Bartolomeu. A tecnologia era rudimentar, as ligações instáveis, o tempo de resposta glacial.”
Aqui lê-se a importância de Portugal, nos séculos XVI e XVII, na criação de redes de comunicação em tempo real, o estabelecimento de mercados internacionais e o intercâmbio cultural, artístico, científico e linguístico que permitiram à Europa, através do pequeno país de (na época) milhão e meio de habitantes, influenciar e ser influenciada por culturas transcontinentais. Mas lê-se também (o tal “facto pouco conhecido”) o desconhecimento generalizado, sobretudo americano, sobre esta saga que nos levou ao outro lado do mundo – e daí o impacto que tiveram, até nos poderosos meios académicos dos EUA, os mapas-múndi onde a América não existe, ou a chegada ao distante e fechado Japão tão cedo como 1543 (através de três mercadores naufragados). Para nós, que conhecemos melhor a história, é fascinante observar testemunhos perenes do abraço de culturas, por exemplo a escultura em porcelana da Virgem com traços faciais chineses, ou o saleiro do Benim com um Vasco da Gama rodeado por crocodilos em marfim. E, até porque a versão patente em Lisboa inclui agora, ao contrário da original, tesouros como a Custódia de Belém ou os biombos Nambam (japonês para “bárbaros do sul”), é imperativo visitar a exposição durante estas férias. Até para descobrirmos melhor quem fomos/somos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Festivais de verão

Sem festivais de verão, um verão não saberia ao mesmo. Até a cidade de Paris, snob centro da alta cultura, acaba de apresentar 15 dias consecutivos de hip-hop. Há que pelo menos assistir a um destes eventos por ano; não tanto pelo contacto com o que de melhor se vai fazendo nas múltiplas áreas da música moderna – afinal, os nomes que encabeçam o cartaz são habitualmente bandas que tiveram os seus maiores sucessos há um par de anos atrás, na melhor das hipóteses – mas sim sobretudo para nos mantermos actualizados em relação a um tipo de cultura urbana e eternamente adolescente que ferve em banho-maria durante o ano para ser consumida nos grandes rituais iniciáticos que os festivais representam. Aqui se forjam, inclusivamente, novas formas de falar e agir.
Não, a “experiência total” de um festival de verão não tem tanto a ver com música, desce sim a um nível de ensaio sociológico. Durante quatro dias (no caso do festival escolhido para a pesquisa necessária a esta crónica, e que é também o maior desta zona da Europa – Rock Werchter) experimentamos um modo de vida alternativo, onde uma das grandes conquistas da civilização, a higiene pessoal, é esquecida em favor de um novo paradigma em que os mais capazes da espécie humana são os que ingerem quantidades oceânicas de cerveja (e presumo que isto terá as suas consequências ao nível do discernimento, mas não me lembro de muito). Debaixo de um sol inclemente, vaguear por entre os milhares de corpos deitados na terra respirando pó é um exercício de perseverança, sendo que a versão pós-aguaceiros significa fazê-lo encharcado e escorregando na lama, a mesma lama onde alguns festivaleiros mais afoitos improvisam algumas sessões de luta livre (livre de regras e também de quaisquer roupas). No recinto, a expressão “ama o teu próximo” toma um sentido premente e literal, pois os próximos estão sempre muito próximos e com o tempo aprende-se a gostar dos seus suores. E depois há sempre o ritual da refeição, seja ela massa demasiado cozida ou hambúrgueres pouco fritos, deglutida por entre as familiares montanhas de lixo plástico das mais variadas proveniências.
Descrito assim, um festival parece algo saído directamente de “Ensaio sobre a Cegueira”. Mas nem tudo são rosas, e para obter a desejada pulseirinha que dá acesso à chuva de concertos o candidato deve a) correr a comprá-la com três meses de antecedência e b) despender 169 euros, que somados a 22 para acampar, 15 para estacionar, 25 por cada 10 bebidas, mais uns 20 por dia para comer, 30 por uma t-shirt do festival e despesas variadas de viagem significam facilmente 400 ou 500 euros por um fim-de-semana alargado no campo. O pobre estudante que eu era nunca se teria dado a este luxo – mas hoje, do alto das minhas burguesas idade e noções de conforto, continuo a achar que o festival valeu cada cêntimo. Rock on.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Aonde vais, meu menino?

E o prémio da ideia mais original da semana é atribuído… à polícia portuguesa. As forças de segurança anunciaram ir vigiar ruas e casas de suspeitos e criminosos para travar um agravamento da criminalidade nos meses de Verão. Os responsáveis pela PJ, PSP, SEF, GNR e SIS já se reuniram para rastrear os indivíduos e locais a vigiar e identificar – só numa zona da cidade de Lisboa, não divulgada, foram identificados mais de duas centenas de suspeitos (a Assembleia da República comporta 230 deputados mas estou certo de que se trata de uma simples coincidência).
Aplaudo sem reservas. Consciente de que nas casas dos cidadãos de bem, depois de uma crise financeira e anos de consistentes furtos, há cada vez menos artigos que valha a pena vigiar, a polícia prefere concentrar esforços nos locais mais bem fornecidos. A proposta, no que é aliás uma óbvia vantagem durante o verão, é refrescante: as populações sentem-se mais seguras, os ladrões obtêm uma vigilância grátis para os seus próprios pertences residenciais – algo não negligenciável se pensarmos que os integrantes desta classe profissional escolhem muitas vezes zonas arriscadas para viver – e a polícia estará mais perto dos seus clientes, que conhece tão bem a ponto de saber quem são e onde moram, sem querer no entanto ir ao ponto de prendê-los e arriscar assim ficar sem missão e emprego. Afinal, se o Joker estivesse sempre encarcerado, o Batman seria apenas um tipo que se veste de morcego e guia um carro de tuning esquisito.
Claro que anunciar publicamente que as casas dos criminosos vão ser vigiadas durante o verão pode levar alguns meliantes que sejam consumidores de tv ou jornais a, digamos, alterar o seu código postal de residência e ir dormir para outro sítio. Numa altura em que as associações hoteleiras se queixam de uma quebra de reservas na ordem dos 10%, este incentivo ao turismo interno só pode ser considerado bem-vindo.
O único ponto da medida que me suscita, confesso, algumas dúvidas prende-se com aqueles momentos – felizmente raros – em que o suspeito identificado sai de sua casa. Como conseguirá o agente da autoridade destacado distinguir se o facínora acaba de sair com intenções criminosas ou simplesmente para ir comprar um gelado? Presumo que o senhor agente verificará cuidadosamente da existência ou não de um collant negro enfiado na cabeça do suspeito, já que tal será certamente um acessório indispensável num assalto a um banco, mas não dá grande jeito na gelataria. Ninguém percebe quantas bolas queremos no cone.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Não há muitos motivos para estar contente

Ainda as eleições europeias. Para quem goste da Europa, como conceito e como projecto, as eleições não ofereceram grandes motivos de regozijo; as reacções e análises posteriores vieram acrescentar alguns pontos de melancolia a quem sonha com uma grande democracia europeia, participada, interessada, dinâmica e conhecedora. Nenhum destes objectivos parece ser muito bem servido pelas eleições de 2009.
Desde logo, não houve eleições europeias mas sim 27 eleições nacionais simultâneas. Nas (relativamente pobres) campanhas eleitorais, os temas nacionais, locais ou simplesmente patetas eclipsaram os assuntos que os cidadãos iriam no fundo decidir com o seu voto, como as políticas económicas coordenadas, as alterações climáticas, o nível de integração europeia, onde ficam as fronteiras do continente e quão abertas elas devem ser, o lugar da Europa – e o seu poder – num mundo em acelerada mutação... Lembrar-se-á o leitor de ver o(s) candidato(s) em que votou explanar o que pensa sobre estes assuntos? Se sim parabéns, não é fácil.
Reacção dos votantes: não aparecer à cena. Uma campanha tão negativa como a que por exemplo decorreu em Portugal não inspira muita gente a pronunciar-se, nem transmite a importância de um Parlamento Europeu que produz já dois terços da legislação de cada país e que, se o Tratado de Lisboa for aprovado e entrar em vigor para o ano, verá os seus poderes muito acrescidos – poderes esses que serão entregues aos deputados que acabam de ser eleitos. Apenas 43,24% dos europeus que podiam votar o fizeram, o que é um recorde negativo (em Portugal foram apenas 37%, o que não nos deixa ficar bem na fotografia e motivou um discurso duríssimo do Presidente da República contra “aqueles que baixam os braços numa atitude resignada”). E é fraco consolo pensar que nos Estados Unidos, por exemplo, ainda menos gente se arrasta para votar.
Este desinteresse dos eleitores provoca estragos a dois níveis: um de legitimidade – o Parlamento Europeu representa bem todos os europeus? – e outro de capacidade, pois a abstenção elevada favorece os partidos extremistas e populistas que infestam o novo Parlamento com a sua agenda de ódios – ódio à Europa, à globalização, à imigração, aos países vizinhos do seu, ao diferente, à mudança e ao futuro. E porque não se pode estar sistematicamente contra o futuro, é tão importante – essencial mesmo – que as eleições europeias sejam repensadas e melhoradas. Voltarei a este assunto com sugestões.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O sofá de veludo de 1979

O Parlamento Europeu criou um sítio web expressamente dedicado às eleições europeias deste domingo (isto no Luxemburgo ou em Portugal; os Países Baixos e o Reino Unido dão o pontapé de saída já na quinta-feira). Talvez a característica mais interessante que lá figura seja a "máquina do tempo": uma comparação directa entre 1979, data das primeiras eleições directas para o Parlamento Europeu, e ano da graça de 2009. Ali podemos ver duas fotos da mesma sala de estar – simbolizando a nossa "casa comum", a Europa – a primeira em estilo muito 70s, no seu papel de parede com motivos laranja e os sofás em veludo faux castanho, e a segunda resplandecente de branco nos seus móveis Ikea e no enorme ecrã plasma. Dentro da imagem, cada item em que clicamos – desde as latas de bebidas até à foto emoldurada na parede – permite ao cidadão obter uma ideia muito genérica da evolução da construção europeia em várias áreas nos últimos 30 anos. E esta comparação, desde o que fazemos com a energia à mobilidade ou a defesa pela ecologia, dá algum reconforto - mas só nos primeiros segundos, pois logo em seguida vem à ideia que decisões fundamentais para nossa vida são tomadas em contínuo e está tudo por fazer. E é disso que se trata numas eleições onde quase 500 milhões de europeus vão escolher os seus representantes para uma câmara democrática e diversa cujos poderes não param de aumentar. Só nos dois últimos meses, foram adoptadas resoluções tão diversas e de alcance tão global como um pacote legislativo de telecomunicações, sempre na perspectiva da defesa do consumidor, ou a proibição do comércio de carne de foca (que levou uma ministra do Canadá, país que mata a maioria das focas no Ártico, a comer um coração de foca cru em frente às câmaras).
As eleições europeias têm perdido paulatinamente participação a cada escrutínio e, embora seja provável que essa tendência se venha a inverter esta semana, tal é reflexo de vários factores. Os eleitores estão fartos de "política" (uma palavra nobre que hoje quase soa obscena) e perderam a sentido da "res publica", bem como a ilusão de poder influenciar o estado das coisas. E é verdade que instituições europeias geograficamente distantes e que não conseguem deixar de ser vistas como algo autistas, visão que é empurrada por um punhado de deputados europeus pouco activos, não ajudam. Pois bem, é altura de começar a olhar para a metade do copo que está cheia, é isso que nos lembra a "máquina do tempo" (em http://www.eleicoes2009.eu); graças a estas eleições, a definição dos próximos 5 anos, na Europa e no mundo, começa por nós. Não estou a ver o que possa ser mais importante de fazer no domingo.

domingo, 17 de maio de 2009

Abrir os olhos

A morte de uma senhora de 95 anos, ocorrida no mês passado, recordou-me do aparentemente simples facto de vivermos num mundo controverso mas sempre extraordinário, pelo menos a partir do momento em que o sabemos perscrutar como ele merece.
A senhora em questão era alguém de especial. Chamava-se Helen Levitt, habitava o mesmo quarto andar sem elevador onde tinha vivido com os seus gatos por 80 anos e continuava a ser fotógrafa, carreira que tinha iniciado nos anos 1930 por influência romântica de outro dos grandes nomes da arte, o francês Henri Cartier-Bresson. Impressionada pelas condições de vida numa América a lamber as feridas da Grande Depressão e sugestionada pelos desenhos infantis a giz nos passeios, Helen comprou em segunda mão a mesma máquina fotográfica que tinha visto nas mãos de Bresson (uma Leica 35 mm) e começou a tirar instantâneos, revelados em casa, a crianças de rua em Nova Iorque. A cidade não mais a largaria, ou vice-versa; as suas ruas, nomeadamente as mais pobres, as esquecidas, as mais sujas e perigosas eram também aos seus olhos as mais fotogénicas e artísticas, a sua improvável parte do mundo retratada de forma tão crua como bela, filtrada pelo preto-e-branco. A cor só chegaria às suas fotos nos anos 1960, eram já as ruas diferentes: as crianças tinham trocado o giz pelo sofá e pela televisão, os carros já não eram abandonados mas omnipresentes. As fotos, em vez de retratarem armazéns abandonados, pequenos farrapos de céu e ausência de árvores, passaram a jogar com correspondências, por exemplo entre portas verdes e sapatos de salto alto vermelhos. Celebrando ainda e sempre as paisagens urbanas e a fauna que nelas habita.
Edward Steichen, já em 1941 um nome maior da arte fotográfica, viu nela uma discípula de talento e, nesse mesmo ano, foi o curador da sua primeira exposição. Steichen doou em 1973 ao Luxemburgo (de onde emigrou aos dois anos de idade para os EUA) a grande exposição “The Family of Man”, representando a vida, o amor e a morte em 68 países diferentes. Que ninguém deixe de passar por Clervaux para a ver e rever. Mas não tenho a certeza de como reagiriam Steichen, Bresson ou Levitt passeando pelas anódinas ruas luxemburguesas de hoje, submersos na previsibilidade, quase artificialidade do extremo bem-estar. Nós próprios necessitamos de reunir todo o talento e alma dos grandes visionários se queremos abrir os olhos para a beleza aqui encerrada.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Prender a respiração só por mais alguns anos

Gostaria muito de inaugurar este espaço com boas notícias. E não haveria melhor notícia para dar do que esta, fresca, desejada, em primeiríssima mão: a crise terminou. A depressão tornou-se euforia, os cortes em expansões e os empregos multiplicam-se como cogumelos. Podemos – e devemos, trata-se de um imperativo moral – desatar todos a consumir como se os amanhãs cantassem outra vez.
Mmh, admito, poderia estar a antecipar a boa nova na pressa de ser o primeiro a apontá-la, mas tanto optimismo induzido não seria muito diferente do que nos últimos tempos foi possível ouvir de pessoas com responsabilidades na matéria. O presidente americano, Barack Obama, fala em “brilho de esperança” – mas apenas porque a produção e o mercado imobiliário já não estão a cair tão rapidamente. A ministra da Economia britânica falava há tempos nos “primeiros indícios” da recuperação – no mesmo dia em que, só para contrariar como habitualmente, grandes empresas inglesas anunciaram despedimentos e a Bolsa caiu 5%. Os media? Igualmente confusos (“Sinais vindos dos EUA indicam que o pior pode já ter passado”, anuncia o “Público” a 1 de Maio; “Investimento cai e recessão agrava-se nos EUA”, manchete do “Le Monde” a 2 de Maio). BCE, FMI, pelas vozes com forte sotaque francês dos seus presidentes, prevêem que daqui a um ano a retoma apareça algures pelos Estados Unidos, enquanto vão avisando que hoje em dia é muito difícil fazer previsões. No entanto, como em economia repetir muitas vezes e a muita gente que “as coisas vão melhorar” pode mesmo contribuir para que elas melhorem, professa-se a fé inabalável em que os incertos e difíceis tempos de contracção em que vivemos vão acabar rapidamente.
A sóbria realidade: mesmo quando acabarem, não terão acabado. Nas economias ocidentais o desemprego dispara actualmente para níveis (muito) superiores a 10% da população activa. A recessão de 2001 (muito mais fraca que a actual) durou oficialmente apenas 8 meses, mas o desemprego continuou a crescer durante mais ano e meio. O mesmo se passou em 1991 e o mesmo, só que de forma muito mais prolongada, acontecerá desta vez. Porque o crescimento anémico não é suficiente para gerar emprego e por outras variadas razões, mas também porque as nossas sociedades são baseadas no consumo narcotizante e hoje ninguém está para grandes compras.
Se eram boas notícias as que eu procurava, deveria ter escolhido outro assunto.