segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Legalizem-no

Um homem inesperado. Um homem que clama publicamente contra a obsessão desmesurada pelo dinheiro. Alguém que chega ao topo da sua carreira, numa posição de enorme poder e prestígio, e abdica de grande parte das regalias e mesmo do salário a que tem direito. Tudo isto escolhas que são coerentes com toda uma longa vida passada em defesa dos mais oprimidos, muitas vezes com grande sacrifício pessoal, para tentar tornar o seu país da América do Sul num lugar mais justo e menos desigual.

Poderia perfeitamente estar a referir-me ao cardeal Jorge Bergoglio, o argentino que se tornou o Papa Francisco e que, seguindo a filosofia de Francisco de Assis, tem dado provas de uma humildade e simplicidade inesperadas e refrescantes para o sumptuoso cargo. O Papa ousou mesmo, há três semanas, assinar uma análise crítica à persistente desigualdade económica no mundo como seu primeiro documento oficial. O texto contém capítulos intitulados “Não à nova idolatria do dinheiro”, “Não à economia da exclusão” ou ainda “Não à desigualdade que leva à violência”. E não poupa nas palavras em relação ao ponto em que nos encontramos: “Alguns continuam a defender teorias em como um mercado em rédea livre vai inevitavelmente levar a mais justiça e inclusão pelo mundo. Esta opinião, nunca confirmada pelos factos, revela uma confiança ingénua na bondade dos que detêm o poder económico. Entretanto, os excluídos continuam à espera”.

Um texto desassombrado pelo qual o Papa merece todo o respeito. Mas não é apenas Francisco quem quero destacar nesta altura natalícia, em que se celebra o (suposto) nascimento de um filósofo que há dois milénios já alertava para o poder nefasto da desigualdade económica. O primeiro parágrafo refere-se a José Mujica, um político extraordinário por vários motivos.

Mujica é presidente do Uruguai. Mas este idoso pachorrento e mal barbeado, apesar de representar um país com uma economia que está a crescer agradavelmente a uma taxa de 3% ao ano, não vive num luxuoso palácio presidencial, mas sim na sua pequena casa rural com um quarto; não se desloca a alta velocidade numa limusine negra rodeada de motos da polícia, mas sim conduz um velho VW carocha, além de viajar de avião em classe económica; não se queixa de apenas receber 10000 euros de reforma, mas pelo contrário distribui por pobres e necessitados 75% do seu salário; e acaba de anunciar querer adoptar 30 ou 40 crianças, a quem tenciona ensinar as artes de trabalhar a terra.

O desapego material de um líder político é admirável, mas ainda mais relevante são as políticas liberais e progressistas que esse líder vai aplicando. A mais recente (e surpreendente) provém de uma lei que vai regular a produção, venda e consumo de cannabis, uma “experiência” – a modesta descrição do próprio presidente – que vai retirar os lucros dos traficantes, tratar o problema ao mesmo nível do álcool, e libertar a polícia para lidar com crimes mais graves. Simultaneamente, abandona a hipocrisia da proibição total e responsabiliza cada cidadão pelas suas escolhas, em vez de ter o Estado-avózinha a tratar toda a sua população como crianças.

O pequeno Uruguai ouviu os gritos globais de “legalizem-na!” (em relação à marijuana). Mas isso é o menos; o que me apetecia mesmo era dizer: legalizem Mujica nos outros países.

A narrativa do “gastámos muito”

“Vem-nos à memória uma frase batida”, canta o trovador. O primeiro-ministro de Portugal proferiu ontem uma dessas frases muito batidas: “vamos demorar muito tempo a pagar o nosso despesismo dos últimos 20 anos”. É uma ideia clara, forte, que ressona bem junto de eleitores traumatizados com cortes no seu rendimento e nos serviços públicos de que usufruem. Só há um pequeno problema: trata-se de uma mentira, e não é bem intencionada.

Passos Coelho poderia ter razão – se se estivesse a referir ao regabofe em que vive a antiga capital do império, Lisboa. Se os 20 anos incluíssem o Centro Cultural (ou Comercial) de Belém, os negócios obscuros da Expo98, os cerca de 1000 km de auto-estradas SCUT disponíveis na região do Vale do Tejo, as centenas de milhar de funcionários públicos concentrados na capital, as suas estações de metro e hospitais novos e subutilizados enquanto que no resto do país eles encerram, bom, aí a sua análise seria desgraçadamente certeira. Mas conhecendo nós como conhecemos os nossos actores políticos, a frase não passa de uma variação da conhecida narrativa “andámos a viver acima das nossas possibilidades” que nos tem vindo a ser impingida há alguns anos pelos arautos da austeridade – estando ela já completamente desacreditada.

Nunca é demais repeti-lo: a crise em que vivemos não foi provocada por desmesurada despesa pública. Mais uma vez: não foi provocada por demasiada despesa pública. Sobretudo sabendo que o Estado gasta mais em juros da sua dívida (que, sendo hoje em dia bem maior do que há cinco anos, se vai tornando efectivamente impagável...) do que aquilo que investe em educação ou investigação tecnológica, por exemplo. Em 2007, todos os países da zona euro (à excepção da Grécia) tinham
indicadores económicos sólidos, relativamente baixos défices, dívidas controladas. Espanha e Irlanda tinham mesmo superavits orçamentais e estavam assim em melhor posição fiscal que a Alemanha ou a França, por exemplo, e Portugal também não estava longe.

Aquilo que despoletou o marasmo em que, exportadores alemães à parte, vivemos hoje na Europa foram os resgates com dinheiros públicos feitos para salvar bancos privados e, em menor medida, a perda de receita de impostos provocada pela drástica diminuição da actividade económica directamente decorrente da imposição de uma austeridade draconiana – esta é renegada hoje por grande parte dos seus próprios criadores, mas continua em vigor e sem fim à vista para o túnel. Se o diagnóstico está errado, não admira que a cura receitada também o esteja.
A frase batida do primeiro-ministro atira-nos mais areia para os olhos, e é pena. Após tanto tempo de troikas, o que os europeus precisam é das boas notícias que nunca chegam; não de mais radicalismo ideológico travestido em fantasmas do passado.

Um homem para a eternidade

Perdemos um amigo. Nelson Mandela não é apenas um ícone, um símbolo, uma figura maior que a vida, embora seja tudo isso. Era também um homem, alguém sincero que cultivava uma desarmante proximidade. Não era um amigo pessoal; era um amigo da humanidade, que melhora o mundo em que vivemos e que nos inspira pela força inabalável do seu exemplo, da sua coragem e da sua estatura moral.

Mas já lá vamos. Este texto não tenciona servir de elogio fúnebre a um homem, porque para essa função já muitos outros textos mais bem escritos apareceram antes. O que também parece interessante é fazer uma pequena retrospectiva e avaliar percursos: como mudam as opiniões à luz da extraordinária e improvável transformação de pouco conhecido e aprisionado líder da resistência em extraordinário líder político mundial...

Nos anos 80, as perspectivas do prisioneiro 46664 da prisão espartana em Robben Island eram assustadoras. De dentro da sua miserável cela, com um balde vermelho como casa de banho, Mandela caminhava para 27 anos nas mãos dos seus verdugos. Não são 27 dias... é toda uma vida. No final dessa década, o guerrilheiro completaria 70 anos; tinha a saúde debilitada e a visão afectada pelos trabalhos forçados da prisão. Steve Biko, Robert Sobukwe e outros grandes activistas já tinham sido assassinados há muito e o regime do apartheid parecia de pedra e cal, oficialmente proscrito pelo resto do mundo mas satisfeito com os seus negócios que traziam prosperidade aos seus habitantes (brancos).

Nessa altura, e mesmo reconhecendo o nome Mandela, o que nem era evidente, era muito duro estar do seu lado. Muito mais fácil e popular era estar ao lado, ou pelo menos não incomodar, os poderosos, os que estavam na mó de cima. Dos racistas que tinham criado o apartheid. Foi assim que o presidente Botha veio visitar a Madeira, recebido por João Jardim, em 1986; foi assim que o Portugal do primeiro-ministro Cavaco votou contra resoluções da ONU que apelavam à libertação de Mandela. Sim, estávamos do lado errado da História. Os representantes do país fizeram-nos engolir os princípios em nome de uma difusa servilidade aos interesses de um regime iníquo. E é também por isso que é chocante ser o mesmo Cavaco o nosso representante no funeral do próximo domingo; uma consciência (e uma memória) activas nunca o permitiriam.

 Mandela não abandonou os seus princípios, nem ao fim de 27 anos de prisão. Tal como Thomas More em “Um homem para a eternidade”, deve ter dito: “O que importa não é se é verdade, mas sim se eu creio; e não, não é eu creio, mas sim eu creio”. E quando os seus princípios finalmente prevaleceram, Mandela olhou em volta e perdoou. Nesse gesto tão simples quão magnífico, devolveu-nos a esperança na Humanidade.

Abraço de urso faz mais uma vítima

Há cerca de quatro anos, escrevi neste mesmo espaço um texto intitulado “Como treinares o teu urso alemão” (o título glosava um filme que estreava então nas salas, “Como treinares o teu dragão” – e curiosamente já então, tal como agora, o treinador do FC Porto parecia precisar de conselhos). O texto era sobre a redescoberta assertividade alemã e sobre a melhor forma de a Europa saber lidar com o seu país mais poderoso.

Passaram menos de quatro anos. Muita coisa mudou na Europa – se há uma constante da nossa época, é precisamente a velocidade crescente da mudança – e é absolutamente extraordinário como, em tão pouco tempo, a Alemanha passou de força dominante a potência hegemónica. Hoje, nada se faz de importante na Europa contra a opinião da sra. Merkel (eleita pela Forbes como “a segunda pessoa mais poderosa do mundo”) e do seu séquito. As consequências para a Europa estão à vista de todos, e ainda nem iniciámos o terceiro mandato de uma chanceler que parece imparável, rodeando as suas decisões de uma aura de inevitabilidade. E não admira: cada obstáculo que aparece no seu caminho, despertando justas ilusões em todos nós que sentimos que esse caminho leva à lenta mas segura morte da Europa, acaba por ser neutralizado quando não triturado.

A sua última vítima, depois de Hollande, é o outro grande partido alemão, o SPD (centro-esquerda). No seu primeiro mandato, Merkel fez um governo de coligação com o SPD, asfixiando-o – e nas eleições seguintes, em 2009, o partido obteve o seu pior resultado de sempre, dado que nada representava de novo ou diferente. Agora, para obter de novo o seu apoio no Bundestag, Merkel atirou ao SPD mais algumas migalhas de consumo interno: um salário mínimo, alguns investimentos em infra-estruturas. Os sorrisos de entendimento entre os dois grandes partidos rapidamente se transformarão num abraço de urso que tornará o SPD inofensivo.

Os restantes europeus ficam agora sem quaisquer ilusões quanto a uma Alemanha auto-redentora: nem uma vírgula vai mudar na forma paternalista como o país, aquele que mais beneficia com o euro e taxas de juro baixíssimas, vai lidar com os seus parceiros europeus, sobretudo os da periferia. Sobre obrigações europeias, nem uma palavra; mas sobre o acordo de comércio livre com quem nos espia, os “parceiros” americanos, aí sim há regozijo e entusiasmo. E, numa medida quase insultuosa mas realmente simbólica, as autoestradas passarão a ser pagas... para todos os não-alemães.

A Alemanha é parte do problema europeu, não é a solução. E, embora a tomada de consciência colectiva deste facto esteja distante, a Alemanha precisa mais da Europa que a Europa da Alemanha. Compete a essa mesma Europa demonstrá-lo. É necessário mudar, não a Alemanha, mas sim contra a Alemanha. Não é possível, nem desejável – muito menos necessário – viver quatro anos mais apenas a gerir a decadência e assistar à ascensão de um novo império egoísta.

Como destruir o bom gigante

... e de caminho ganhar 25 milhões por fazê-lo. Ou então, “Como roubar a Nokia e receber de recompensa a Microsoft”. Ambos são possíveis títulos para a futura autobiografia de um homem chamado Stephen Elop.

Elop, um homem redondo e de aparência um tanto alarve, foi escolhido em 2010 para dar um rumo novo ao gigante europeu de tecnologia. O próprio facto de ser o primeiro gestor não-finlandês da Nokia era suposto simbolizar o corte com a confortável estratégia de sempre – vender telefones na sua maioria relativamente baratos e com poucas características mas sólidos, fiáveis e óptimos para fazer chamadas. Era dessa forma que uma companhia europeia esmagava um dos mais apetecíveis mercados globais – e digo esmagava pois isso significa que vendia mais do dobro dos telefones do seu mais directo perseguidor, a Samsung. Só em telefones, a Nokia tinha receitas anuais de 29 mil milhões de euros; e mesmo só contando smartphones, um produto no qual a empresa tinha sido pioneira mas não estava a responder ao sucesso do iPhone, os resultados continuavam excelentes – 35% do mercado e 104 milhões de smartphones vendidos, mais do que Apple e Blackberry juntas! Em 2010, era esse o presente da companhia – e todos os analistas concordavam que, tomando as boas decisões, a liderança seria para manter.

Entra Stephen Elop, contratado à Microsoft. Poucos meses depois, em Fevereiro de 2011, escreve uma mensagem a todos os empregados em que comparava a Nokia a uma “plataforma em chamas”, prosseguindo num tom em que autoflagelava a empresa, líder absoluta de mercado, para ao mesmo tempo elogiar Apple e Google, os novos concorrentes. O texto tornou-se histórico pelas piores razões: destruiu a moral da companhia e a confiança de muitos dos seus clientes. Foi uma verdadeira profecia que se auto-realiza, aquilo que é designado de “efeito Ratner” (nome de um vendedor de jóias que em 1991 gozou publicamente com os seus produtos e quase levou a companhia à falência com um simples discurso).

Mas Elop ainda não tinha terminado o serviço que lhe tinha sido encomendado. A Nokia tinha passado os últimos anos a investir no desenvolvimento de um sistema operativo próprio, o MeeGo, para concorrer com Android e iOS. A meio de 2011, por entre grande excitação e críticas especializadas muito favoráveis, a Nokia apresenta o N9 – o primeiro modelo a utilizar o novo e próprio sistema; e no dia seguinte, o presidente da companhia, o americano Elop, anuncia que não haverá mais nenhum telefone MeeGo, pois a Nokia iria comprar o Windows Phone da Microsoft – um péssimo sistema que não estava sequer pronto. O N9 foi morto à nascença e a Nokia não teve durante quase um ano nenhum smartphone com Windows para vender. Agora, apenas três anos depois da chegada de Elop, eles existem – chamam-se Lumia – e a empresa vendeu uns míseros 7 milhões de unidades, perdendo dinheiro em cada um deles; de líder mundial, passou a ocupar a nona posição dos fabricantes, com 3% do mercado; e mais importante, tem agora prejuízos consideráveis e cada acção vale um décimo do que valia. Arruinada a empresa, foi fácil à Microsoft comprar os ossos que restam por tostões (menos do que foi pago, há dois anos, pela Skype); e Elop, finalmente despedido, leva  para casa como recompensa por ter destruído uma empresa fantástica um “pára-quedas dourado” de 25 milhões de dólares.

Eu disse para casa? Na verdade ele volta para a Microsoft, o mesmíssimo império a quem Elop acaba de oferecer a antigamente orgulhosa Nokia, agora destituída de valor, de patentes e de pessoas. Fecha-se o círculo, e fecham-se-nos os olhos de vergonha.

Por mares nunca dantes navegados

Melinde. Este nome de cidade africana foi como um bálsamo, primeiro, e uma miragem salvadora, depois, para a exausta e depauperada tripulação de Vasco da Gama e da sua frota de três naus mais um barco de mantimentos. Na viagem de ida surgiu ao caminho dos navegadores apenas uma semana depois da mal-sucedida abordagem a Mombaça, a ilha onde os mercadores árabes tinham um monopólio impenetrável. Já Melinde, o outro grande porto da contracosta africana, acolheu favoravelmente os portugueses numa lógica concorrencial de “os inimigos de Mombaça são nossos amigos”: o sultão recebeu os presentes do enviado do rei D. João II, permitiu a reequipagem da frota e, famosamente, facultou a Gama um piloto que já conhecia as monções e a parte do Índico que restava cruzar até aportar na Índia. Camões imagina o navegador a narrar ao sultão os grandes momentos da História de Portugal; nunca saberemos se foi realmente assim, mas o sultão jurou fidelidade ao rei português, e o porto tornou-se inestimável como guarda avançada do império construído no Oriente – desde logo, na muito mais dura viagem de volta pelo mesmo percurso. Ignorando a força das monções, a frota navegou contra o vento, e a mesma distância Melinde-Calecute que tinha demorado 23 dias à ida demoraria agora 132 dias. Foi um Vasco da Gama enfraquecido que reencontrou o sultão; metade da tripulação tinha morrido, e quase toda a restante sofria com o escorbuto. Mais uma vez, o porto amigo de Melinde permitiria à frota recompor-se, e chegar rapidamente de volta ao Cabo.


Hoje, a viagem de Mombasa a Malindi faz-se em duas horas por uma estrada razoável que apenas requer alguma perícia para contornar todos os obstáculos que abundam no Quénia, desde rebanhos de cabras a babuínos passando por camiões tombados e condutores com os máximos permanentemente ligados. Mombasa, que acabou por ser conquistada pelos portugueses não através do comércio mas pela força das armas, continua nos nossos dias a ser um porto comercial vibrante e uma ilha difícil de atingir (só há uma ponte), foi a capital do território até que os novos colonizadores ingleses, fartos do calor da costa e dos mosquitos, se refugiaram na altitude de Nairobi. Melinde, por seu lado, foi perdendo dimensão e estatuto e é hoje uma cidadezinha relativamente neutra, não fora por dois sobressaltos: os decadentes hotéis de praia; e os marcos da presença portuguesa. O padrão mandado erigir por Vasco da Gama no seu retorno continua lá, altivo, numa pequena península que guarda a baía, e é encimado por uma cruz de pedra coralina provinda de perto de Lisboa, logo original. Está em relativo risco, dado que a erosão causada pelo mar ameaça fazer ruir a coluna mais cedo ou mais tarde. Mas entrementes é visitado por toda a gente, habitantes, escolas ou turistas no local. A menção de que somos portugueses, por toda esta costa, continua a suscitar surpresa e respeito.

Perto fica uma pequena capela mandada erigir por S. Francisco Xavier na primeira das suas viagens missionárias, 40 anos depois de Vasco da Gama. As quatro paredes caiadas originais continuam a albergar missas, mas o local também não beneficia de uma conservação eficaz – até porque ao contrário do monumental Forte de Jesus, em Mombaça, nem o padrão nem a capela gozam da protecção da Unesco, e como aqueles, vários outros padrões espalhados pela costa de África e pelo Oriente estão ameaçados pela negligência. Não é pedir muito que seja Portugal a ocupar-se deles; é o nosso legado, é a lembrança de uma gesta heróica, é o símbolo de nossa vocação universalista (mesmo estando esta hoje em perigo). Sejamos orgulhosos e salvemos os padrões dos navegadores.

Game Over

Este é um texto forçosamente nostálgico, porque fala da infância e de recordações trazidas à tona por algo que se afunda. Neste caso, por uma empresa surgida da imaginação de um contabilista (!) portuense nos duros tempos a seguir à II Guerra: a Majora chegou a ser nos seus tempos áureos – início da década de 80 – um quasi-monopólio da diversão em Portugal. Várias gerações passaram horas esquecidas a atirar dados jogando Monopólio, Jogo da Glória, Petroleiros ou dezenas de outros títulos, jogos que tinham sido antecedidos por clássicos mais artesanais como Sabichão ou Pontapé ao Goal.

A Majora chegou a empregar, numa fábrica fervilhante de actividade, 130 pessoas; hoje, com o despedimento dos últimos 30 empregados, o edifício está vazio, esperando o golpe de misericórdia. Inquiridos sobre as razões de uma decadência tão abrupta, quem lá trabalhou aponta “esta crise, que faz as pessoas cortarem no supérfluo, a começar pelos jogos. E além disso os portugueses não têm tradição de jogos de tabuleiro como os outros europeus”.

Já se sabe que tanto a crise como os portugueses têm as costas largas, logo esta explicação é confortável. Mas errónea. Os portugueses gostam de diversão, não têm é culpa se uma empresa não sabe preencher os seus anseios. Acresce que os jogos em geral têm uma elasticidade bastante baixa que, em alguns contextos, chega mesmo a ser positiva; significa isto que quando os consumidores sofrem uma redução no seu rendimento compram mais jogos (e não menos), dado que estão a investir num produto que os fará passar um tempo poupadinho recolhidos em casa, em vez de em bares ou restaurantes. Na verdade a lenta descida aos infernos da Majora começou bem antes de 2008, ano fatídico de explosão da “crise”. A empresa estagnou e viu-se completamente ultrapassada pelas mudanças que o mercado lhe pedia. Enquanto a esmagadora maioria dos consumidores prefere, e isto há mais de 20 anos, jogar em mundos virtuais computadorizados, a companhia insistiu teimosamente em agir como sempre tinha agido: confiando o seu destino a produtos que tinham sido um sucesso infantil há décadas. Nos últimos meses ainda lançou uma aplicação para smartphones – foi demasiado pouco, demasiado tarde.


A comparação com outra empresa familiar de brinquedos, a Lego, é gritante. Esta empresa criada por um carpinteiro dinamarquês nunca se deitou à sombra do sucesso dos seus tijolos de plástico e, atenta à mudança constante no ambiente de negócios, não mais parou de diversificar: o primeiro jogo de computador Lego, por exemplo, foi logo lançado em 1997 e desde aí a marca já produziu nada menos de 46, cobrindo todas as plataformas. O primeiro livro associado surgiu pouco depois, seguido pelo primeiro de 23 filmes usando os produtos da marca (e a estrear em 2014 há o “Filme da Lego”, já em produção), para não falar em seis parques de diversões espalhados pelo mundo. Uma marca valiosíssima apoiada em valores éticos (como a recusa de temas abertamente bélicos) e de obsessão pela excelência: o lema da empresa, adoptado pelo fundador, continua a ser “Mesmo o melhor nunca será suficientemente bom”.

Duas empresas familiares de brinquedos criadas do nada na década de 40, obtendo as duas um sucesso demolidor. E em seguida, caminhos opostos: uma história de sucesso, outra de fracasso. Aprenda o próximo empreendedor com energia as lições da Lego e da Majora, e talvez daqui a uns anos estejamos a falar não de mais uma falência, mas de uma nova marca portuguesa global.

Melhor fora que dentro

“Apanhem Banksy!”, chapou na sua primeira página o New York Post, tablóide sedento de vingança, na semana passada. Está bem, mas quem é Banksy? O problema é que ninguém sabe, e muito menos a polícia. Convenhamos que só pelo nome se torna um pouco mais difícil encontrá-lo, quanto mais apanhá-lo.

Banksy é um artista, ou um activista, ou um grafiteiro, ou apenas uma esperta construção de marketing. Ou então todas estas coisas ao mesmo tempo, ou então nenhuma. Supostamente vem de Bristol, Inglaterra, ninguém conhece o seu aspecto ou verdadeiro nome, e pinta paredes; imagens irónicas, muitas vezes monocromáticas, envolvendo-se com aquilo que as rodeia e apelando à reflexão – e sempre que podem, à subversão. Como o grafito que mostra um macaco de laboratório, supostamente um animal que apenas cumpre o que lhe mandam, envergando um cartaz que diz “Keep it real” – a mesma frase que é quase marca geracional de milhões de adolescentes americanos.

Banksy não gosta do mercado da arte nem dos seus lucros pré-fabricados, baseados em valorações subjectivas. Também não gosta das suas regras, por isso subverte-as: no seu sítio web há uma “loja”, mas tudo o que lá está é grátis. O apreciador de arte pode descarregar a obra do artista e reproduzi-la as vezes que quiser, numa parede, numa t-shirt ou numa caneca de café. Banksy poderia ganhar rios de dinheiro, já que se tornou em fenómeno global; por vezes paredes (inteiras) com os seus grafitos aparecem em leilão sem a sua autorização – pelo menos é essa a história oficial – e pela última obra nesta situação, por exemplo, o comprador pagou um milhão de euros. Em contraste com esta soma, o próprio Banksy montou no sábado uma banquinha em pleno Central Park e começou a vender, disfarçado com um boné e óculos, os seus originais por uns irrisórios 45 euros cada um. Quase ninguém os quis e, ao final do dia, o próprio artista só tinha arrecadado 300 euros.

Banksy adora dismistificar estas hipocrisias paradoxais da arte – já tinha sido essa a intenção ao realizar o seu aborrecido documentário em que glosava a táctica utilizada pelos museus que obrigam os visitantes a passar pela loja de lembranças antes de sair do edifício. Durante todo este mês de Outubro, o artista anda por Nova York a desvendar um novo grafito/obra por dia, num gigantesco jogo do rato e do gato com as autoridades. Chamou a esse projecto “Better Out Than In”, melhor fora que dentro, porque é fora dos vetustos museus e próxima das pessoas, na rua, no chão e nas paredes que a arte (também) deve andar.  Mal aparecem, as pinturas de rua tornam-se um instantâneo sucesso público e uma atracção turística; e como reagiu então o multimilionário que é presidente da câmara da cidade mais cosmopolita e mais artística do mundo a esta boa publicidade a Nova York? 
Pois bem, como um provinciano alcalde da aldeia mais recôndita. “Banksy é um vândalo e o graffiti representa a perda de controlo. Eu defendo as artes, mas acho que há lugares para a arte e lugares sem arte”, disse Bloomberg, provando simultaneamente que Banksy pôs mesmo o dedo na ferida. Bloomberg ainda não entendeu nada. Todos os lugares são lugares para a vida, e a arte, que a imita, está na rua da grande cidade.

Um Picasso no forno

Quadros de grandes artistas são irrepetíveis – e no caso de qualquer obra saída dos pincéis de um punhado de eleitos, pela sua raridade e importância, são também valiosos. E nada mais valioso que um Picasso, o nome que é mais rapidamente associado à genialidade, o homem que alterou toda a História da Arte com apenas um quadro  (“Les Demoiselles de Avignon” – uma representação protocubista de pobres raparigas num bordel da rua de Avignon em Barcelona). Quando a um Picasso adicionamos outros quadros da autoria de sobredotados como Monet, Matisse e Gauguin, chegamos facilmente a um espólio de 100 milhões de euros. Um valor que permite comprar Cristiano Ronaldo, um avião Airbus A320, construir dois hospitais em Portugal, ou mais de 100 mansões (mesmo num mercado inflacionado como o do Luxemburgo).

Tanto dinheiro não foi suficiente para convenver o museu Kunsthal em Amesterdão a instalar alarmes
na exposição temporária que organizava. Isso veio mesmo a calhar para um grupo de amigos precisados de dinheiro: primeiro dirigiram-se, a meio da madrugada, ao museu de História Natural da cidade – mas tiveram dúvidas sobre se seria assim tão fácil, ou lucrativo, revender fósseis de peixes e esqueletos de dinossauro. Seguiram então para o Kunsthal; os quatro ladrões demoraram exactamente três minutos a tirar os quadros das paredes, embrulhá-los e sair. Depois foi meter-se no carro com os quadros e guiar em direcção à Roménia. Estava consumado aquele que foi imediatamente apelidado de  “roubo do século”.

O cérebro da operação, Radu Dogaru, 29 anos, vem de uma pequena aldeia no extremo leste da Roménia, perto da Moldova. São os confins da Europa: 3000 habitantes, a maioria lipovanis (uma cisão da religião ortodoxa russa), e uma miséria da qual só é possível escapar emigrando ou entrando numa vida de crime. Mas Radu, procurado na Roménia por assassínio e tráfego de humanos, ainda está a começar no mundo da arte: nem sabe ao certo quanto valem os quadros que tem nas mãos, e sobretudo não os consegue revender por eles serem tão conhecidos. Acaba por chamar a atenção da polícia. Esta prende quase toda a quadrilha (um membro ainda está fugido) mas não encontra os quadros. Estes estão escondidos na casa de Olga, a mãe de Radu. Olga julga que sem o produto do crime, não há caso contra o seu querido filhinho; empilha o Picasso sobre o Monet, o Matisse do lado a aparar, o Gauguin a fazer peso, atira todos os quadros para dentro do forno onde habitualmente só assa galinhas, e acende os carvões.

A polícia chegou tarde demais à pequena aldeia romena. No forno, já só restavam vestígios de telas com óleo antigo e pregos usados em molduras do século XIX. O nosso património colectivo ficou mais pobre, enquanto a mãe (que nega agora ter queimado os quadros) e o filho Dogaru, bem como os seus cúmplices, arriscam agora 20 anos de prisão. O julgamento reinicia-se a 10 de Setembro e trará a uma história surrealista um epílogo mais concreto – mas a “Cabeça de Arlequim” de Picasso nunca renascerá, qual fénix, das cinzas de um forno romeno.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O amiguinho americano

“O amigo americano” é um film noir realizado pelo alemão Wim Wenders, na altura em que este produzia obras de fôlego e não apenas postais ilustrados sobre cidades. O filme é uma adaptação de um livro policial da talentosa Patricia Highsmith, e na história há um americano a viver em Hamburgo, o cerebral e endinheirado Tom Ripley, que precisa de matar um homem e consegue convencer um alemão, Jonathan, a cometer o crime por ele. No final do filme, Jonathan morre, enquanto o seu amigo americano escapa, bem-sucedido e impune.

Com o nosso amigo americano o epílogo não será muito diferente. Sempre pressurosos em se afirmarem como estando do lado dos europeus, e atravessando o Atlântico a correr sempre que necessitam de ajuda para uma das muitas guerras em que se envolvem (e obtendo-a sempre do seu maior subordinado, o Reino Unido), os americanos espiam-nos. Vigiam os nossos mais pequenos movimentos, utilizam programas sofisticados para analisar se a mais ridícula parvoíce que escrevemos no facebook lhes interessa, podem reproduzir a mais embaraçosa conversa picante feita ao telemóvel. E fazem-no, mas não por coscuvilhice; fazem-no no mais abjecto desrespeito pela liberdade humana, na mais nojenta hipocrisia de quem caracteriza todos os outros países do mundo como inferiores e pouco democráticos. Ouvimos agora números dispersos como 70 milhões de contas de telemóvel em França (ou seja, todas) devassadas em apenas um mês; em Espanha foram 60 milhões, no Reino Unido 30 milhões, na Alemanha a própria chanceler, oriunda da Alemanha de Leste onde a espionagem a qualquer cidadão é uma chaga bem viva na memória (e na lei), teve o seu telefone sob escuta durante vários anos. E todas as nossas transferências bancárias guardadas nos servidores da SWIFT, uma empresa belga, também estão bem discriminadas algures em Washington.

Sim, o guarda-chuva da “luta contra o terrorismo” é enorme e conveniente, mas a maior razão da espionagem à Europa é económica: os EUA roubam-nos facilmente segredos industriais, comerciais, científicos, tecnológicos, financeiros. Empresas estratégicas, como por exemplo petrolíferas, são vigiadas de perto. A vantagem desleal é tão ou mais incompreensível sabendo que a UE e os EUA vão começar agora duras negociações com vista a um acordo de comércio livre entre os dois blocos – e nós entramos já em situação de completa subalternidade.

A dimensão da ignóbil espionagem é tal que mesmo os inefáveis líderes europeus se têm agora de mostrar relativamente escandalizados, batendo muito no peito e, com voz grossa, afirmando ir directamente à Casa Branca exigir explicações a Obama. Mas até agora, estes mesmos líderes eram colaboracionistas; as acções da NSA eram sobejamente conhecidas, e até mesmo parcialmente copiadas, pelos nossos serviços secretos. Os voos clandestinos da CIA tiveram o apoio logístico europeu, enquanto Snowden, o homem que nos permitiu descobrir todo estes podres, nunca obteve da Europa o asilo que requereu. Logo, as reacções ultrajadas de Merkel e Hollande são apenas para inglês ver – e o líder inglês, David Cameron, nem se preocupa em esconder o seu enfado com toda esta discussão que considera contraproducente. Afinal, que há de errado em espiar os próprios cidadãos e viver numa sociedade bigbrotheriana?

O nosso musculoso amigo americano é interesseiro e falso. Mas não podemos zangar-nos com ele – sabe tudo sobre nós, mais do que nós mesmos sabemos. Sabe, por exemplo, que não temos a firmeza de nos fazermos respeitar.

Elísios

Ano da graça de 2154. A Terra é agora um lugar poeirento, sobrepopulado e miserável, onde biliões de humanos sobrevivem graças a empregos precários ou sub-vidas criminosas, patrulhados por robots implacáveis. Entretanto, os membros da elite humana, facilmente distinguíveis por um chip que lhes confirma a cidadania e a pertença a um clube exclusivo, vivem na opulência e no luxo a bordo de uma estação espacial chamada Elysium, um satélite que se consegue vislumbrar, em dia limpo, a partir de qualquer uma das favelas terrestres. E que é alcançável a partir do planeta – seja através de uma pequena nave privada de um cidadão de Elysium, seja a bordo de um cargueiro espacial ilegal prenhe de desesperados terrestres clandestinos que pagam a contrabandistas de humanos todas as suas economias pela possibilidade remota de atravessarem o espaço e chegarem vivos ao paraíso artificial.

É esta a premissa de “Elysium”, filme estreado no final do verão, pouco tempo antes do grande drama de Lampedusa. Perto desta pequena ilha a meio caminho entre a Sicília e a Tunísia, no dia 3 de Outubro, um velho pesqueiro apinhado de homens, mulheres e crianças oriudos da Eritreia e da Somália naufragou nas águas do Mediterrâneo. A última contagem fixou 359 vidas humanas perdidas, e muitos ainda desaparecidos; mas essa contagem foi feita no dia 11, o mesmo em que um outro barco naufragou ali perto – e foi então necessário acrescentar mais 34 corpos, desta feita sírios e palestinianos, à calamidade. Já esta segunda-feira, dia 14, mais um barco, este com 137 migrantes a bordo, foi detido pelas autoridades italianas. Só este ano, 35 000 pessoas já arriscaram assim a sua vida no mar para chegar à Europa.

A Europa, a Elysium dos nossos tempos, acordou. A actual lei italiana de imigração, aprovada pela extrema-direita nos tempos de Bossi e Fini, foi exposta em toda a sua desumanidade – e a angustiada declaração do primeiro-ministro maltês, em como “estamos a construir um cemitério no nosso Mediterrâneo”, adicionada aos gritos de “assassino” com que Barroso foi recebido em Lampedusa, sublinharam a importância da cooperação europeia e de uma política comum para resolução de um problema que é de todos. Só que não há razões para qualquer optimismo quanto a isso: as eleições europeias de Maio serão, tudo o indica, um estímulo à extrema-direita xenófoba, e esta incentivará ainda mais a construção de uma “fortaleza Europa” falsamente estanque a vagas crescentes de refugiados. Não estaremos longe de vermos muros erguidos nas nossas praias, tal como hoje acontece na Califórnia – os EUA construíram um enorme muro ao longo de parte da sua fronteira com o México, perfazendo um total de quase 600 km de cerca (por vezes electrificada). Não sei quem desejará viver num continente transformado em condomínio fechado, mas eu decididamente não quero.

Não é simples o que a Europa tem de fazer: é deixar entrar mais pessoas – barrando a entrada aos indesejáveis, certamente, patrulhando os mares, certamente, mas acolhendo, como em outros séculos outros nos acolheram a nós, europeus. É cooperar com os países de origem para que estes ajudem a controlar a imigração ilegal. É promover o desenvolvimento nesses países, é abrir os seus mercados aos produtos agrícolas vindos daí, enriquecendo as suas populações. É fazer opções difíceis e apostar em resultados longínquos. Terá de ser assim – o nosso Elysium não é só nosso, e não podemos aceitar que tantos continuem a morrer para o atingir.

Geração Y, de ynfeliz

Sandra está infeliz.

A Sandra, a personagem fictícia deste texto, nasceu algures entre final da década de 70 e o princípio da década de 90 – ou seja, está hoje em dia entre os seus vinte e muitos e os seus trinta e poucos anos. Pertence ao que sociologicamente se designa por “Geração Y”, os filhos dos baby boomers nascidos a seguir ao fim da II Grande Guerra, e netos da geração anterior, que teve de viver a Grande Depressão e lutar na mesma guerra. Mas claro, a Sandra é portuguesa, pelo que as condições dos seus pais e avós são algo específicas em relação ao resto do mundo ocidental: os avós não desembarcaram na Normandia, mas sofreram na década de 40 a escassez de alimentos que prolongou a Grande Depressão por muitos anos; e os pais, esses sim lutaram numa guerra - a colonial - ou tiveram que escapar da ditadura para fugir a esta. De uma forma ou de outra, as condições materiais eram mais duras que numa Europa (ou Estados Unidos) em pleno frenesim dos “trinta anos gloriosos” de crescimento contínuo. Os avós da Sandra tiveram vidas acanhadas, de trabalho árduo e poucas recompensas, e quiseram para os seus filhos – os pais da Sandra – uma vida economicamente mais fiável. A “segurança” no emprego ganhou laivos de obsessão. Os pais da Sandra foram educados com a esperança numa vida melhor do que a geração anterior, sabendo que teriam de trabalhar muito para isso.

Os resultados dos pais da Sandra saíram bem melhores que a encomenda. Logo no início da sua vida activa, na década de 70, aconteceu a revolução em Portugal. As oportunidades pareceram ilimitadas, as mulheres emanciparam-se, a educação deixou de ser uma utopia. No mundo ocidental, as décadas de 80 e sobretudo 90 foram, no seu cômputo geral, de uma prosperidade económica sem precedentes, e alguns pingos dessa prosperidade também salpicaram Portugal; os pais da Sandra chegaram mesmo muito mais longe do que esperavam no início da sua vida activa, quando tudo eram incertezas. Essa margem positiva entre as expectativas e a realidade fez deles pessoas ajustadas e felizes, e também os levou a educarem a Sandra de forma diferente – não tanto com ênfase numa carreira linear, mas sim levando-a acreditar que ela podia ser tudo o que quisesse, porque a isso tinha um direito quase divino.

O Google consegue provar a mudança de mentalidades: uma ferramenta muito útil, o Ngram, mede a ocorrência de palavras impressas em qualquer perído de tempo. Aí vemos que a popularidade de “segurança no emprego” tem vindo sempre a decair ao longo do tempo, enquanto que o conceito de “segue o teu instinto” só apareceu há uns 20 anos. A Sandra foi educada a “ser especial”, destinada a grandes voos. O problema é o choque com a realidade: se todos são especiais, por definição, ninguém o é; não há, numa sociedade em crise económica profunda e prolongada, oportunidades para crescer e chegar longe – e quando as há não chegam naturalmente para todos. A Sandra vive agora a sua vida abaixo das expectativas irrealistas que tinha; para compor o cenário, e graças ao fenómeno recente da internet social, tem a impressão (errada) que todos os seus conhecidos viajam muito e vão a muitas festas, enquanto ela está a ficar para trás. E talvez esteja: o peso da dívida que lhe chega das gerações anteriores vai cercear-lhe as possibilidades durante muitos e muitos anos. A Geração Y está a perder os sonhos e a tornar-se infeliz – ah, e a sua sucessora, a Geração Z, não tem esperanças mais altas.

E o Porto aqui tão perto

“Ai eu estive quase morto no deserto / e o Porto aqui tão perto”, canta Sérgio Godinho, repetidamente, na canção do mesmo título. A música é do trovador nascido na cidade mas, se as democracias soubessem cantar, a portuguesa não desdenharia interpretá-la também, já que acaba de ser (não diria ressuscitada mas pelo menos) redimida na eleição autárquica de domingo. Nesta, um independente chamado Rui Moreira
provou que o divórcio entre os cidadãos e a política, que é profundo, se confunde com a desconfiança que as pessoas sentem em relação aos partidos. E também foi provado, pela primeira vez, que os partidos não detêm o monopólio do poder em Portugal – câmaras lideradas por independentes não são uma novidade, mas nunca um cargo tão importante tinha sido detido por um.

É certo que Rui Moreira recebeu no fundo o apoio expresso de um partido (o CDS), mas não é menos verdade que essa influência não se fez sentir na campanha, nem tanto nas suas listas (compostas por “notáveis” da cidade oriundos de diversas áreas políticas, e não tanto por militantes). No seu discurso de vitória, o economista de 57 anos voltou a deixar um recado: “espero que os partidos tenham percebido o que se passou aqui hoje”. O que ele queria dizer é que a sociedade, pelo menos a portuense, se fartou de esperar que os partidos evoluam, se abram às pessoas, e sobretudo deixem de ser as federações de compadrios e interesses minadas por lutas intestinas que – por vezes injustamente, é certo – parecem ser.

Mas não é apenas por significar uma rotura com a exclusiva lógica partidária, como se isso fosse pouco, que a vitória esmagadora de Moreira representa um interessante sinal dos tempos vividos em Portugal. É-o também pelas filosofias representadas pelos seus adversários, Manuel Pizarro pelo PS e Luís Filipe Menezes pelo PSD. O primeiro apoiado por um partido que, oferecendo aos eleitores um afrouxar do estrangulamento da austeridade, capitalizou grande parte do descontentamento com o governo do país, conquistando quase metade das câmaras; o segundo era a dado ponto considerado “imbatível” pelo trabalho notável feito do outro lado do rio em Gaia, ou pelas propostas ambiciosas, de grandes obras combinadas com preocupações sociais, que encontraram eco numa população cansada do miserabilismo do presidente cessante.

Só que a palavra-chave das eleições no Porto foi “dívida”. Justa e injustamente, Menezes nunca conseguiu afastar a imagem que lhe colaram de “despesista”, e rapidamente a dívida da câmara de Gaia passou a ser assunto de conversa mais relevante que a revolução operada nos últimos 16 anos daquela cidade. Ao mesmo tempo, e mal ou bem, o Porto é orgulhosamente visto pelos seus habitantes como contido nas contas, mesmo um exemplo para um país irresponsável e gastador – desde logo na capital, cuja autarquia deve quase tanto como todas as outras câmaras juntas e isto apesar do orçamento de Estado (ou seja, todos os portugueses) pagarem grande parte das obras em Lisboa. No Porto, uma cidade hoje economicamente deprimida e crescentemente abandonada, há muito que se sabe que em Portugal não há prémios para os cumpridores, nem penalizações para quem faz batota financeira. Desse ponto de vista, a rejeição da Invicta aos amanhãs que cantam despesistas em favor do realismo prudente é a opção pelo caminho mais difícil, e merece ser justamente realçada.

É preciso que nada mude para que tudo continue a piorar

“O Leopardo”, escrito pelo italiano di Lampedusa, é universalmente reconhecido como um dos grandes romances históricos de sempre (e o filme de 1961, com Claudia Cardinale, é também uma obra-prima). Em ambos, livro e filme, o personagem central, Don Fabrizio Corbera, declama as suas imortais palavras para justificar os seus actos de perpetuação do poder da família: “É preciso que algo mude para que tudo fique na mesma”.

No domingo, 66 milhões de alemães em idade de votar (13% da população da UE) foram chamados a escolher o líder da Europa. Sem surpresa, a escolha recaiu na senhora Merkel, a candidata do status quo. Nada mudará no rumo traçado nos últimos anos – e se nada muda, não podemos esperar que tudo fique na mesma, antes que o “novo normal” seja, paulatina e seguramente, um pouco pior. Esse pior, naturalmente, depende da perspectiva do observador. A regressão económica, mesmo civilizacional, que a Europa sofreu nos últimos anos não é subjectiva, é relaticamente fácil de medir; mas esse raciocínio não é válido para a Alemanha, que no meio de uma crise longa e generalizada faz figura de oásis – cinzento e regrado, mais ainda assim um oásis. Logicamente, para o eleitorado alemão a argumentação para uma mudança política é muito fraca: as exportações do país continuam saudáveis, a taxa de desemprego é a mais baixa de continente, os contribuintes alemães não sacrificam um milímetro do seu bem-estar para auxiliar os seus congéneres europeus que vivem do lado errado do euro – euro do qual até agora o próprio país retirou os maiores benefícios, tangíveis ou intangíveis. De facto, porquê mudar?

Para mim a surpresa residiu sim nas grandes expectativas que a Europa, e sobretudo os países da periferia em dificuldades, tinham em relação a esta eleição. A ilusão narrava que para que a Alemanha fosse mais solidária, mais decidida e assumisse mais as responsabilidades – e os custos – da sua agora incontestada liderança, bastaria que Merkel perdesse as eleições para uma coligação de esquerda; quando se tornou evidente que tal não aconteceria, a esperança passou a residir numa “grande coligação” CDU-SPD; e agora que essa mesma se afigura provável, crescem as suspeitas de que a política dos “pequenos passos”, fazendo apenas o estritamente necessário para que o euro – e a Europa – não se desintegrem, vai manter-se imperturbável.

CDU e SPD, os dois maiores partidos alemães, não divergem substancialmente na sua receita de consenso, forjada na grande tradição do ordoliberalismo do país. E os ganhos que o SPD vier a obter na sua negociação política serão apenas para consumo interno: eventualmente um maior orçamento social, e talvez a adopção de um salário mínimo (que a Alemanha não tem). “Europa” continuará a ser uma competência exclusiva da chanceler – uma pasta que ela ocupa de forma relutante e sempre da mesma forma cautelosa e apenas reactiva, com os resultados que todos conhecemos, ou seja, uma animosidade crescente entre todos os países europeus que a médio prazo levará à deriva totalitária do projecto da UE. Nessa altura todos perderemos, e a Alemanha mais que todos. A menos que algo mude, e ainda assim... “O Leopardo” termina com a ruína ou morte de todos os seus personagens.

O ocaso de “Ronaldo”

“Durão Barroso é o nosso Cristiano Ronaldo da política internacional”. A frase faz sorrir pelo seu absurdo, mas se lhe dedicarmos mais um pouco de atenção, não deixa de ser ligeiramente insultuosa – desde logo para o próprio Ronaldo, que é indubitavelmente um futebolista excepcional, o melhor de sempre em Portugal e um dos melhores da história do próprio desporto; mas também para a nossa inteligência, que mesmo sabendo como todos os políticos tentam sempre colar-se à imagem dos vencedores na busca vã de algumas migalhas de aura, é ferida por uma comparação tão estapafúrdia. O autor da afirmação é o embaixador da União Europeia em Washington, João Vale de Almeida, e compreende-se melhor se soubermos que ele foi por muitos anos chefe de gabinete do próprio Barroso.

O “Ronaldo” dos políticos portugueses aproxima-se do final da sua carreira além-fronteiras – dois mandatos, de cinco anos cada, oferecidos graciosamente pelo “Özil” da política internacional, Angela Merkel, com a assistência mais ou menos activa do “Benzema” da política internacional, Jacques Chirac, e do “Gareth Bale” da política internacional, Tony Blair. E tal como Cristiano acaba de fazer, também Barroso, cujo salário actual como presidente da Comissão Europeia não é nada de transcendente, deve estar prestes a assinar o contrato da sua vida com algum conglomerado privado, enquanto espera por eleições presidenciais em Portugal. As semelhanças terminam aí: a saída de Barroso não vai provocar saudades. Os dez anos em que ocupou o prestigiado cargo coincidiram com um declínio permanente da importância da Comissão (e foi mesmo criado um cargo de presidente permanente do Conselho, ocupado por Van Rompuy, que retira muita da relevância àquela); mais do que isso, foi a própria construção europeia que estagnou primeiro e regrediu depois, pela fadiga do alargamento, pela falta de inspiração ou competência para lidar com novos desafios. E depois, há exactamente cinco anos, o banco Lehman Brothers faliu – e a Europa compreendeu rapidamente que o abismo económico não estava assim tão longe.

Se a compreensão foi rápida, a reacção foi lenta e hesitante – e pior que isso, tem vindo a agravar os nossos problemas, num círculo vicioso de egoísmo, empobrecimento e decadência. Barroso veio esta semana fazer o seu último discurso do “Estado da União”, um ritual anual onde se escamoteia a realidade e se amplificam as boas notícias. Neste caso, elas vieram sob a forma de uma tímida fuga à recessão em alguns países do sul, e talvez o número de 26 milhões de desempregados tenha deixado de aumentar a cada mês... muito pouco para apresentar como resultados de um bom trabalho. O panorama inegavelmente cinzento levou a que grande parte do discurso tenha sido passado em autojustificações pelo passado, cinco “anos de chumbo” que nos deixam agora em terreno fértil para os candidatos populistas anti-Europa no ciclo de eleições continentais que começará agora na Alemanha. Barroso anunciou algumas vagas ideias para o futuro (algumas delas já referidas em anteriores ocasiões), como “reforçar o crescimento e o emprego” e concretizar a união bancária, ou investir na inovação e na ciência, bem como na segurança energética. É muito difícil discordar de algo aqui, mas francamente, passaram dez anos – já seria mais que tempo que este “Ronaldo” descobrisse como marcar golos. Com este tipo de avançado, a Europa nunca se qualificará para o campeonato do mundo.

Nascemos Selvagens

“Quando alguém nasce, nasce selvagem – não é de ninguém...” trauteavam os Resistência há uma boa vintena de anos, sensivelmente pela mesma altura em que o exército português me considerou apto para todo o serviço mas teve a gentileza de me colocar na “reserva territorial”, sujeito a ser chamado para a tropa, em caso (por exemplo) de uma invasão espanhola, a qualquer momento até completar 42 anos.
O tempo passou e eu esqueci o meu possível compromisso com as armas, cortesia da União Europeia e da sua oferta de paz e prosperidade entre os europeus  - e se esta última tem os seus altos e baixos, a primeira é tão sólida que um conflito armado entre dois membros da UE é hoje impensável. Mas... será mesmo? Os recentes (e, francamente, um pouco ridículos) espasmos nacionalistas vindos de Espanha começam a deixar-me um pouco nervoso. Ainda me faltam uns anitos para atingir os 42 e, francamente, agora não me dava mesmo nenhum jeito abandonar a casa, o emprego e tudo o resto e radicar-me no quartel de Elvas aos comandos de uma chaimite.

A situação económica em Espanha é desesperante. O desemprego oficial anda nos 27%, 1 em cada 2 jovens não têm emprego, as casas perderam o valor que tinham, várias regiões desejam a independência, não há crescimento económico há seis anos, e os crimes financeiros desacreditaram totalmente a elite política e a realeza. A estratégia do governo do país, incapaz de resolver estes problemas, é a de criar manobras de diversão que procurem inimigos externos e apelem ao bacoco orgulho nacionaleiro: ou seja, mais uma candidatura falhada aos jogos olímpicos e disputas sobre rochedos perdidos. O primeiro ensaio já aconteceu em 2002, no rochedo de Perejíl junto à costa marroquina, e aí houve mesmo um pequeno conflito armado, com a Espanha a capturar seis prisioneiros da guarda costeira do país árabe; no mês passado, a tensão aumentou em Gibraltar, outro rochedo periférico, com Espanha e Reino Unido a trocarem insultos públicos e verem-se repreendidos por Bruxelas como meninos pequenos.


Agora chegou a vez de Portugal: a Espanha contesta as ilhas Selvagens. Não discute desta vez a soberania – em 1911 e 1975, farejando a instabilidade momentânea em Lisboa, procurou aglutinar as Selvagens às Canárias – mas discute o seu estatuto: em vez de “ilhas”, deveriam ser considerados meros “rochedos”. A diferença não é semântica, porque uma ilha confere ao país a que pertence direitos sobre o fundo do mar e as águas até 200 milhas a partir da costa, enquanto os rochedos apenas permitem 12 milhas – na prática, isso significa que os hipotéticos rochedos Selvagens seriam rodeados completamente por águas espanholas.

Portugal protegeu-se bem. As Selvagens pertencem ao Estado desde 1971, e a reserva natural aí existente implica habitação permanente de duas pessoas (no farol, onde também o presidente pernoitou em Julho). Além disso, existe na maior ilha uma casa de férias de uma família madeirense. A nota diplomática de Portugal às Nações Unidas, enviada na semana passada, é inteligente: tranquila, não valoriza demasiado a questão, e sublinha que os dois países não têm nenhum conflito territorial (embora as fronteiras na água não estejam definidas). Tudo está bem, vamos continuar a ser Selvagens. E eu vou continuar tranquilamente na reserva territorial. 

É fogo que arde e vê-se bem

“É fogo que arde sem se ver, uma ferida que dói e não se sente”, dizia o poeta sobre o amor. Mas o amor que os portugueses sentem pelo Verão é sistematicamente chamuscado pelos incêndios florestais, o flagelo que ganha ali laivos de fatalidade irreversível. Nas últimas décadas, arderam em Portugal 3,5 milhões de hectares – uma área equivalente a toda a Bélgica.

É inútil repetir o óbvio, os incêndios são um drama devastador, deixando à sua passagem um rasto desolador de destruição e morte. O facto de a cada ano o ciclo se repetir deixa-nos raivosos perante a impotência. Nunca falha: chegados ao final de Julho, ouvimos as primeiras más notícias. Entrado Agosto, com a floresta seca e cheia de folhas secas, qualquer faúlha é suficiente para despoletar a habitual espiral de recursos perdidos, casas e pessoas em perigo, bombeiros no hospital (ou pior). Este ano, também a macabra novidade de uns desmiolados se vangloriarem dos seus horrendos feitos no facebook ainda antes de serem presos. Mas isso é assunto para outro local deste jornal.

O facto é que nem todos os incêndios são de origem criminosa – e também não há nenhuma inevitabilidade na sua existência, os fogos florestais não são nenhum castigo divino. Depois do Verão catastrófico de 2003 (em que arderam 425 mil hectares de floresta, um recorde absoluto), o país revoltou-se e passou a combater o problema com novos meios. Então, e apesar de uma pequena recaída em 2005, a área ardida efectivamente diminuiu; paradoxalmente, esse sucesso levou a um certo relaxamento posterior – e este ano, a situação voltou a agravar-se. Tipicamente, fez-se o mais fácil, que no caso era atirar dinheiro sobre o problema reforçando-se os meios de combate – que recebem, ano após ano, 80% das verbas destinadas à protecção da floresta. Sempre mais esquecido fica o longo prazo, que exige paciência e planeamento: limpar, gerir, prevenir, estar presente no terreno durante todo o ano, trabalhando com as populações locais – as poucas que restam num país dramaticamente macrocéfalo onde o interior está exangue, os seus filhos vivendo e trabalhando em Lisboa ou no Luxemburgo.

A prevenção dos fogos é complementar ao seu combate, e sem aquela, nem os melhores Canadair podem salvar as serras lusitanas. Por isso mesmo, a ideia (surgida originalmente em 2004) de criação de uma força especial de bombeiros dedicada exclusivamente, e durante todo o ano, ao tratamento da floresta tenha voltado agora em forma de petição lançada por especialistas da área. Mesmo os mais cépticos, que duvidam da sua exequibilidade, admitem que algo terá de mudar sob pena de continuarmos a queimar – literalmente – um dos poucos recursos naturais de um país onde eles não abundam. É que a floresta não significa apenas ar puro, turismo e piqueniques, mas também toda uma fileira industrial que, segundo os números disponíveis, vale 10% das exportações portuguesas e dezenas de milhar de postos de trabalho. Números que pouco a pouco se esvaem em fumo enquanto assistimos angustiados a mais um inferno estival.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

V de Vinagre

Quando um país de 200 milhões de habitantes tem convulsões, o mundo toma nota. Sobretudo quando esse país representa uma potência ascendente, daquelas que pode vir a influenciar o mundo nas próximas décadas: senhoras e senhores, eis as dores de crescimento do B dos BRICs, o Brasil.

250 000 pessoas saíram à rua em mais de 100 cidades brasileiras, e muitas outras onde a diáspora do país é importante (incluindo Lisboa e Porto). Os protestos, agora um pouco mais suaves, continuam – maioritariamente pacíficos, mas entrecortados por combates desiguais com a polícia militar. De um aumento dos bilhetes de autocarro em S. Paulo equivalente a cerca de sete cêntimos de euro nasceu o movimento V de Vinagre, uma sátira certeira ao ridículo que constitui ver pessoas na cadeia por transportarem consigo vinagre (que reduz os efeitos dos gases pimenta e lacrimogéneo atirados pela polícia), ao mesmo tempo que faz uma referência directa a V, o mascarado anti-totalitário do filme V de Vendetta.

Há várias questões levantadas pelo facto extraordinário de o Brasil estar a manifestar-se nas ruas enquanto a sua amada seleção de futebol joga em estádios novos em folha (e caríssimos). A primeira é: porquê logo agora? A última década significou um avanço social extraordinário, com milhões de pessoas a poderem abandonar as grilhetas da pobreza; em 2009, pela primeira vez na história, o país podia finalmente afirmar que mais de metade da população pertencia à classe média ou abastada. Sim, mas a lista de queixas é enorme, e qualquer uma delas poderia ter enchido o copo que transbordou por 7 cêntimos: impostos de país desenvolvido (36% do PIB) para serviços públicos muitas vezes terceiro-mundistas estão à cabeça – e ficou famoso o cartaz de um jovem que dizia simplesmente “Adoro futebol – mas dou prioridade à educação”. Mas também a alta inflação, a corrupção endémica, a brutalidade policial, ou a recente iniciativa dos deputados que procura limitar os poderes dos investigadores sobre as actividades ilícitas do mesmo governo. A sociedade civil está a crescer a uma velocidade estonteante, e acaba de amadurecer ao ponto de tomar consciência  da sua força, mas também das tarefas titânicas que ainda tem pela frente.


Outra pergunta é em forma de autocrítica. Os brasileiros perguntam-se “será que mais uma vez vai tudo acabar em pizza?”  Ou seja, após uma discussão violenta volta a calma, o sol volta a brilhar e tudo se mantém exactamente como antes? Os protestos no Brasil são complexos: um mosaico de causas, uma indefinição quanto às reinvidicações, a diversidade dos manifestantes... e a alta popularidade de que a presidente Dilma Roussef continua a gozar. A isso não será alheia a sua habilidade política ao colocar-se quase do mesmo lado de quem, nas ruas, protesta contra o “governo” que ela personifica – tremendo contraste com o ditador eleito Erdogan que, na Turquia, continua a bramir contra as redes sociais que permitem que alguém ainda fuja ao seu controlo. Mas seja ali ou no Brasil, como antes na Grécia, na Bulgária ou em Espanha, e no futuro em Portugal, há uma indisfarçável impaciência na sociedade: urge melhorar as regras do jogo. É isso que a rua nos está a dizer.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Ninguém é livre

“O Grande Irmão está a ver-te”. A frase, arrepiante, está escrita em cartazes espalhados pela sinistra cidade de “Mil novecentos e oitenta e quatro”. O livro é de 1948 (George Orwell inverteu os dois últimos dígitos para encontrar o seu ano futurista) e o filme, com John Hurt, é de 1984; ambos são incontornáveis, e profundamente assustadores, porque actuais. Cada vez mais actuais.

Há muito tempo que mais ou menos todos, em maior ou menor grau, sabemos que tudo o que fizermos em linha não é seguro. Escolhemos não o saber; escondemos a cabeça na areia porque é mais confortável viver na ilusão do inofensivo, na falsa segurança de nos concentrarmos nas pequenas questões que podemos controlar em vez dos verdadeiros problemas, aqueles que nos abafam na sua magnitude. Mas ainda que não o admitamos, exercemos uma enorme autocensura. Criamos personagens virtuais online, no Facebook ou por emails, que apesar de levarem o nosso nome ou fotos não passam de versões  sanitizadas, limpinhas e glamorosas – e inevitalmente falsas – de nós próprios. Porque sabemos que o que escrevemos e dizemos não nos pertence. Porque abdicámos, sem querer, e irresponsavelmente, do valor extraordinário que constituía a nossa privacidade.


Hoje o mundo é muito diferente de há apenas duas décadas – e as interacções humanas também mudaram completamente. As organizações mais poderosas do planeta – governos ocidentais, grandes corporações ou outras hierarquias menos visíveis – aproveitaram a janela de oportunidade criada pelo medo de atentados terroristas, associado à nossa ignorância e passividade: a combinação perigosa levou-nos à situação actual, da qual um homem chamado Edward Snowden acaba de levantar a ponta do véu. Um programa secreto, controlado por um tribunal secreto, gerido por pessoal secreto, sobre o qual impera a lei do silêncio, permite aos EUA e aos seus aliados visualizar qualquer mensagem, foto ou vídeo, de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, suspeita ou não, importante ou não. O programa chama-se PRISM e permite a obscuros agentes do governo americano (ou britânico) acederem a todos os dados armazenados nos servidores da Apple, Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, Skype ou YouTube, entre outras. Certamente que o leitor já deixou uma parte (privada) de si em pelo menos dois ou três destes endereços, mas isso não é tudo: também as suas conversas telefónicas podem ser acedidas em qualquer momento, e isto incluindo o seu conteúdo.

A existência de espaços de privacidade invioláveis é uma condição essencial da nossa liberdade individual e colectiva, e é mesmo determinante na formação da nossa identidade. Nunca será possível vivermos humanamente em sociedades vigiadas por um espião sem rosto mas omnipotente. Não suportaremos viver num mundo totalitário, mesmo que ele esteja travestido de democracia; a máscara, ainda por cima, é neste momento muito fina. Em “1984”, o livro, o Grande Irmão que olhava de perto todos e cada um dos seus cidadãos era uma invenção do Partido ditatorial; a cada momento, em tempo real, o sistema podia ainda assim saber o que cada cidadão fazia. Nunca vivemos tanto em 1984 como hoje.

Declaro aqui que a crise acabou

... ou pelo menos foi mais ou menos isso que saiu da boca do presidente francês Hollande no sábado, falando perante uma plateia de empresários japoneses. “O que o Japão precisa de saber é que na Europa a crise acabou”. A frase, o soundbite, chegou rapidamente aos incrédulos ouvidos deste lado. A zona euro está enredada numa recessão recorde: há seis trimestres consecutivos, um longo ano e meio, que a economia está a decrescer. Estamos todos em geral mais pobres. E cada vez mais de nós não temos ocupação: a taxa de desemprego da zona euro atingiu outro recorde, 12,2%. Em toda a Europa, 25 milhões de pessoas não encontram uso para a sua energia e as suas competências. Nos países do Sul, a situação é dramática: a taxa é de 17,8% em Portugal (e sai mais um recorde), 27% em Espanha e na Grécia; 1 em cada 4 jovens abaixo dos 25 anos não têm emprego, e em Espanha a maioria dos jovens não o tem. E como cereja no topo do bolo, o sentimento dos agentes económicos em relação ao futuro próximo continua, grosso modo, a decair. Mas esta realidade crua o Japão, habituado talvez a demasiado peixe cru, aparentemente não precisa de digerir.

A lenda grega de Pigmaleão falava num escultor que, tendo criado uma estátua de uma mulher formosíssima, se apaixonou por ela, e tanto desejou que o frio mármore se transformasse em carne e osso que Afrodite acabou por lhe fazer a vontade; Pigmaleão viveu feliz com a sua ninfa e emprestou o seu nome a um fenómeno do campo da psicologia que afirma, em suma, que quanto maiores são as expectativas que colocamos sobre alguém, melhor será o seu desempenho futuro. Ou de forma mais simples, os desejos ardentes tornar-se-ão provavelmente realidade auxiliados pela própria força do desejo. O presidente Hollande está embevecido pela sua estátua – a estagnada economia europeia – e almeja muito que o sangue corra nas suas veias, mas Afrodite é uma deusa cipriota, e os ventos que sopram de Chipre não são benignos...

É óbvio que o título bombástico que o líder francês proporcionou é algo injusto, porque retirado do contexto. Hollande respondia a uma pergunta quando o afirmou, após um discurso em que se preocupou em realçar as boas relações com o Japão e tudo o que a Europa tem feito para estancar a sangria da crise, da qual “sairemos mais fortes, na maior potência económica do mundo”. Mas é duvidoso que a visão rósea seja suficiente para convencer os japoneses, que vivem numa crise circular da dívida parecida com a nossa desde 1990 – as chamadas “décadas perdidas”. É ainda mais duvidoso que a optimista declaração sirva para pôr pão, ou mesmo sushi, em cima de 25 milhões de mesas em todo o continente. O Japão precisa de saber que a crise na Europa acabou... a Europa precisa de senti-lo.

O Bósforo que acendeu o rastilho

A Turquia é um país em crescimento demográfico acelerado, o que a pode tornar o país mais populoso da União Europeia – isto se alguma vez a ela pertencer, o que é duvidoso. O que é certo é que se trata de uma sociedade estruturalmente muito jovem. Coincidência irónica, o poder actual faz os possíveis para apagar da História os Jovens Turcos; estes começaram por ser um movimento político do início do século XX que advogava a evolução da monarquia otomana, absolutista, sonolenta e corrupta. A forma agressiva e ditatorial como este partido acabou por impor as suas ideias fez com que o termo “jovem turco” se aplique hoje a quem, dentro de uma organização, a tente reformar de forma radical e progressista.

Os duplos jovens turcos – figurativos e reais – da praça Taksim, em Istambul, acabam de incendiar um rastilho potente. Tudo começou a 28 de Maio (curiosamente uma data negra para Portugal, dia do golpe militar que abriu caminho à ditadura) quando os bulldozers começaram a arrancar as árvores centenárias de um dos pouquíssimos parques da asfixiante cidade de Istambul; um pequeno grupo de 50 pessoas resolveu resistir pacificamente, colocando-se em frente das máquinas. A polícia dispersou-os. Eles voltaram. As redes sociais, com destaque para o Twitter, começaram a fervilhar, como fervilharam em tantas outras revoluções recentes. O protesto cresceu. A polícia começou a atirar gás lacrimogéneo sobre os manifestantes, pacíficos ou não. Estes multiplicaram-se. A 3 de Junho, não apenas a maior cidade da Europa (Istambul) mas toda a Turquia urbana estavam em convulsão social.


O governo islamista turco pode não cair, mas a sua máscara já o fez: logo no primeiro dia de protestos, o primeiro-ministro Erdogan ventilou a sua fúria contra os fundadores da república laica, entre eles o venerado Kemal Atatürk: “são uns bêbados”, disse. A proibição do álcool desejada pelo seu partido religioso, tal como a vigilância de costumes (“nada de beijos em público”, dizem os altifalantes no metro), fazem parte da lista de queixas dos manifestantes. O parque vai ser destruído para ali ser feito mais um centro comercial, mas também poderia ter sido para uma nova mesquita – o governo de Erdogan já construiu 17 000, em apenas 12 anos. É assustador, e é difícil chegar a sabê-lo, já que o país está amordaçado: as redes sociais (“a nova praga da nossa sociedade”, diz o PM) são controladas, as tv mostram programas de culinária enquanto a polícia bate em civis no centro de Istambul. A Turquia detém o recorde mundial de jornalistas na prisão. O seu vizinho oriental, a Síria, passou os últimos dois anos em autodestruição por causa de um governante ditatorial e autista; a ocidente, também sentada em cima de um barril de pólvora social, está a Europa. E o rastilho de Istambul (uma semana após outros confrontos similares nas ruas de Estocolmo) já fica bastante próximo, cada vez mais próximo. Olhemos para lá com atenção, porque é um ensaio para o Inverno do nosso próprio descontentamento.

Forca sem carrasco

“Groundhog Day” (o “Feitiço do Tempo”, em português) é um filme de culto, uma pequena produção que foi já seleccionada para o Registo Nacional de Filmes dos EUA como “culturalmente relevante”: nele, o personagem principal tem a estranha experiência de ficar bloqueado no tempo, e cada dia que ele vive é exactamente igual ao anterior. Na Europa acontece-nos algo parecido: os anos passam, mas – há meia década – continuamos a viver em 1931. Os primeiros tempos a seguir ao grande crash bolsista de 1929 prolongaram e agravaram a Grande Depressão: as políticas seguidas pelos países ocidentais, a obsessão pela dívida, as falências de bancos que levaram a uma redução brutal do dinheiro em circulação  (algo defendido para controlar a inflação...) levaram ao desemprego em massa e ao desempenho das economias muito abaixo do seu potencial. A situação só começou a melhorar em 1933, com a eleição de Roosevelt e a
aplicação do “New Deal” keynesiano.

Hoje não temos um Roosevelt para eleger, e como tal, a narrativa continua a ser uma só – a da austeridade supostamente redentora. Mas há uma mudança recente no argumento deste drama à escala europeia: perante os indisfarçavelmente desastrosos efeitos das políticas negativas nas nossas economias (e nas nossas vidas), já ninguém quer ser o responsável, já não há actores para o papel do carrasco. Nas últimas duas ou três semanas, vimos o FMI a criticar a própria austeridade que impõe; Durão Barroso, presidente da Comissão (que é membro da troika), sentindo os ventos cambiantes, afirmou que tínhamos atingido “os limites da austeridade”; a chanceler Merkel, que escolheu Barroso e que o guiará a um outro futuro lucrativo cargo, imediatamente o desautorizou avisando que a austeridade era para manter; Barroso, obediente, rapidamente corrigiu o tiro e afirmou que afinal tinha sido mal interpretado, porque a austeridade estava aí para durar; oportunidade evidente para que os alemães fechassem o círculo, na semana passada, declarando que a culpa da austeridade (que eles no fundo até detestam, até porque a palavra em alemão tem conotações de “sofrimento extremo”...) era sobretudo da troika. Ou seja, de Barroso.

Em Portugal a situação enferma da mesma hipocrisia. O governo, que assinou o “programa de ajustamento” com a mesma troika, tem uma agenda económica que o leva a por vezes querer ir mais além do acordado – o que significa que um bode expiatório externo dá um imenso jeito, até porque é bem melhor impôr medidas tremendas por “não haver alternativa” do que por ser esse, como de facto é, o programa político desejado. O resultado? Uma situação de caos social; a deterioração de quase todos os indicadores económicos; a destruição do tecido económico do país, como admiravelmente exposto pelo Financial Times há apenas alguns dias. Tantos anos depois de 1931, parecia impensável ter chegado a este ponto porque parecia ilógico apostar em ideias que no fundo constituem o contrário daquilo que é necessário fazer. Mas é esse garrote, essa forca aquilo a que vamos tendo direito; e por mais que o disfarcem e neguem, os carrascos chamam-se Alemanha, BCE, Comissão e Conselho europeus, FMI, indústria financeira, organizações patronais e alguns (muitos) meios de comunicação social. Que fique para memória futura.

Mais arrogância, por favor

Este não é um texto sobre desporto, que para isso há secções do jornal mais adequadas; é sim sobre símbolos, marcas e percepções. O ponto de partida é a recente, ainda que não surpreendente, quebra de contrato entre o português José Mourinho e o “maior clube do século XX” (eleição da FIFA), o Real Madrid.

Mourinho construiu uma imagem fortíssima: não é por coincidência que a sua “marca” funciona melhor em determinados mercados que em outros. Funciona, nomeadamente, bem em Inglaterra (e é aqui que Mourinho vai voltar a vender o seu produto), dado que as características particulares dos ingleses os fazem adorar personagens “bigger than life”, primas donnas controversas e apaixonantes que involvam as massas na sua grande gesta. O homem Mourinho é assim, uma espécie de Vasco da Gama da sua profissão – mas esta não é uma comparação grandiloquente, apenas me refiro aos perfis de liderança de cada um: também o navegador era um antagonizador empedernido, por vezes quase cruel, que dividia completamente as opiniões e grangeava muitos inimigos, mas também muitos fiéis dispostos a lutar com ele pelos objectivos altamente ambiciosos a que se propunha.

Vasco da Gama, depois de se ter libertado da lei da morte deixando o seu nome para sempre gravado na História, também teve os seus períodos mais humanos. Ao regressar da primeira viagem à Índia, foi-lhe atribuída a sua pequena vila natal de Sines; mas a sua administração como alcalde revelou-se muito pouco competente. Já Mourinho no Real Madrid não foi um fracasso total: elevou os níveis competitivos de um clube que andava a falar em “maldição dos oitavos-de-final”, e venceu uma liga obtendo nada menos de 100 pontos (e contra o Barcelona). Mas o gestor futebolístico de Setúbal, que até nem fica longe de Sines, entrou no clube como o melhor treinador do mundo e sai apenas como um dos melhores, desgastado, conflituoso, incompreendido, perdedor. E – o que seria uma novidade – parecendo desorientado.

O profissional Mourinho regressará ao topo. Mas para já, é merecedor de um bem-haja pela enorme mais-valia que representa para a marca “Portugal” e todos os que dela beneficiam – ou seja nós, portugueses. Para um país, produzir um ou dois grandes jogadores de futebol não produz efeitos fora do desporto em si, até porque grande parte do talento para jogar é inato (e logo, “fortuito”). Mas as qualidades simbólicas transmitidas por um gestor como Mourinho são aquelas de que mais necessitamos não só para valorizar o “Made in Portugal”, como mesmo a um nível psicológico mais profundo, que pode vir a ser importante na forma de lidar com os tremendos desafios individuais que cada um de nós enfrenta. José Mourinho é um líder, e é atento, completo, meticuloso, ambicioso, inspirador, corajoso, provocador, preparado. E muito seguro de si. Tanto que a sua transbordante (auto)confiança é amiúde confundida com arrogância – mas francamente, tão melhor estariam os portugueses espalhados pelo mundo, e tão mais bem-sucedidos seríamos, se essa arrogância (sempre justificada, claro) fosse nosso património comum.