quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Elísios

Ano da graça de 2154. A Terra é agora um lugar poeirento, sobrepopulado e miserável, onde biliões de humanos sobrevivem graças a empregos precários ou sub-vidas criminosas, patrulhados por robots implacáveis. Entretanto, os membros da elite humana, facilmente distinguíveis por um chip que lhes confirma a cidadania e a pertença a um clube exclusivo, vivem na opulência e no luxo a bordo de uma estação espacial chamada Elysium, um satélite que se consegue vislumbrar, em dia limpo, a partir de qualquer uma das favelas terrestres. E que é alcançável a partir do planeta – seja através de uma pequena nave privada de um cidadão de Elysium, seja a bordo de um cargueiro espacial ilegal prenhe de desesperados terrestres clandestinos que pagam a contrabandistas de humanos todas as suas economias pela possibilidade remota de atravessarem o espaço e chegarem vivos ao paraíso artificial.

É esta a premissa de “Elysium”, filme estreado no final do verão, pouco tempo antes do grande drama de Lampedusa. Perto desta pequena ilha a meio caminho entre a Sicília e a Tunísia, no dia 3 de Outubro, um velho pesqueiro apinhado de homens, mulheres e crianças oriudos da Eritreia e da Somália naufragou nas águas do Mediterrâneo. A última contagem fixou 359 vidas humanas perdidas, e muitos ainda desaparecidos; mas essa contagem foi feita no dia 11, o mesmo em que um outro barco naufragou ali perto – e foi então necessário acrescentar mais 34 corpos, desta feita sírios e palestinianos, à calamidade. Já esta segunda-feira, dia 14, mais um barco, este com 137 migrantes a bordo, foi detido pelas autoridades italianas. Só este ano, 35 000 pessoas já arriscaram assim a sua vida no mar para chegar à Europa.

A Europa, a Elysium dos nossos tempos, acordou. A actual lei italiana de imigração, aprovada pela extrema-direita nos tempos de Bossi e Fini, foi exposta em toda a sua desumanidade – e a angustiada declaração do primeiro-ministro maltês, em como “estamos a construir um cemitério no nosso Mediterrâneo”, adicionada aos gritos de “assassino” com que Barroso foi recebido em Lampedusa, sublinharam a importância da cooperação europeia e de uma política comum para resolução de um problema que é de todos. Só que não há razões para qualquer optimismo quanto a isso: as eleições europeias de Maio serão, tudo o indica, um estímulo à extrema-direita xenófoba, e esta incentivará ainda mais a construção de uma “fortaleza Europa” falsamente estanque a vagas crescentes de refugiados. Não estaremos longe de vermos muros erguidos nas nossas praias, tal como hoje acontece na Califórnia – os EUA construíram um enorme muro ao longo de parte da sua fronteira com o México, perfazendo um total de quase 600 km de cerca (por vezes electrificada). Não sei quem desejará viver num continente transformado em condomínio fechado, mas eu decididamente não quero.

Não é simples o que a Europa tem de fazer: é deixar entrar mais pessoas – barrando a entrada aos indesejáveis, certamente, patrulhando os mares, certamente, mas acolhendo, como em outros séculos outros nos acolheram a nós, europeus. É cooperar com os países de origem para que estes ajudem a controlar a imigração ilegal. É promover o desenvolvimento nesses países, é abrir os seus mercados aos produtos agrícolas vindos daí, enriquecendo as suas populações. É fazer opções difíceis e apostar em resultados longínquos. Terá de ser assim – o nosso Elysium não é só nosso, e não podemos aceitar que tantos continuem a morrer para o atingir.

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