O grande escritor argentino Jorge Luis Borges compilou as
suas surreais histórias curtas e publicou-as em 1934, ano de crise económica,
sob o título “História Universal da Infâmia”. Cada um dos capítulos do livro
versa sobre um improvável crime – com algumas datas ou nomes alterados, mas
todos crimes reais perpetrados por criminosos reais. Ali é possível ler sobre
“O atroz redentor Lazarus Morell” ou “O assassino desinteressado Bill
Harrigan”.
O jornal “Público” acaba de publicar, em duas partes, um
extenso dossier sobre a falência do
Banco Espírito Santo. Os artigos são extraordinários por vários motivos; desde
logo, porque fazem acreditar que as notícias da morte do jornalismo, e
nomeadamente do jornalismo de investigação, são manifestamente exageradas. Mas
o mais incrível é mesmo o conteúdo, apresentado na forma de uma cronologia
dura, implacável, angustiante. Uma história infame que Borges, se fosse vivo,
usaria como um novo capítulo do seu livro: “O banqueiro ladrão Ricardo
Salgado”.
Praticamente em cada parágrafo da reportagem há matéria
para desembocar, senão num processo criminal, pelo menos num livro bombástico.
Tantas mentiras, tantos golpes sujos, tantos crimes. Desde os 3000 sobreiros
cortados no Alentejo para construir um resort
de luxo, até aos milhões lavados nas filiais do Luxemburgo ou de Miami,
passando pelos biliões desaparecidos em compras de submarinos ou esquemas
angolanos, ou ainda pelos trocos usados para comprar a lealdade de muitos
políticos. E é um verdadeiro desfile de nomes aqueles que passaram pelo BES
antes de ocuparem cargos ministeriais ou presidenciais: Manuel Pinho, Durão
Barroso, Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas, Telmo Correia,
António Mexia, Mário Lino, Duarte Lima…
A cronologia do fim do império Espírito Santo
impressiona. Para qualquer português, sobretudo se a viver fora do país, a
leitura do artigo chega a ser fisicamente dolorosa. Porque a história do BES
confunde-se com a própria História do país, ou pelo menos de um certo país das
elites de Cascais que sempre o usaram a seu bel-prazer. Um país em que muitos
empobrecem e tantos são obrigados a emigrar para que muito poucos se tornem
absurdamente ricos – mas invariavelmente, numa riqueza que não traz retorno nem
investimento produtivo, porque é baseada em esquemas especulativos e mentiras.
O castelo de cartas ruiu. A verdade que poucos
têm a coragem de dizer e ainda menos de enfrentar é que essas ruínas atingem as
profundezas do regime vigente em Portugal. Apesar do nervosismo, apesar do afã
dos governantes do PSD/CDS em injectar dinheiros públicos no banco para salvar
as suas próprias poupanças pessoais (o PS fez o mesmo pelos mesmos motivos
aquando do buraco do BPN), desta vez nem tudo vai poder continuar como antes na
democracia portuguesa. Mas não tenhamos ilusões – assentada a poeira, o país
continuará a empobrecer às mãos destas malfadadas elites.