quarta-feira, 29 de outubro de 2014

História portuguesa da infâmia


O grande escritor argentino Jorge Luis Borges compilou as suas surreais histórias curtas e publicou-as em 1934, ano de crise económica, sob o título “História Universal da Infâmia”. Cada um dos capítulos do livro versa sobre um improvável crime – com algumas datas ou nomes alterados, mas todos crimes reais perpetrados por criminosos reais. Ali é possível ler sobre “O atroz redentor Lazarus Morell” ou “O assassino desinteressado Bill Harrigan”.
O jornal “Público” acaba de publicar, em duas partes, um extenso dossier sobre a falência do Banco Espírito Santo. Os artigos são extraordinários por vários motivos; desde logo, porque fazem acreditar que as notícias da morte do jornalismo, e nomeadamente do jornalismo de investigação, são manifestamente exageradas. Mas o mais incrível é mesmo o conteúdo, apresentado na forma de uma cronologia dura, implacável, angustiante. Uma história infame que Borges, se fosse vivo, usaria como um novo capítulo do seu livro: “O banqueiro ladrão Ricardo Salgado”.
Praticamente em cada parágrafo da reportagem há matéria para desembocar, senão num processo criminal, pelo menos num livro bombástico. Tantas mentiras, tantos golpes sujos, tantos crimes. Desde os 3000 sobreiros cortados no Alentejo para construir um resort de luxo, até aos milhões lavados nas filiais do Luxemburgo ou de Miami, passando pelos biliões desaparecidos em compras de submarinos ou esquemas angolanos, ou ainda pelos trocos usados para comprar a lealdade de muitos políticos. E é um verdadeiro desfile de nomes aqueles que passaram pelo BES antes de ocuparem cargos ministeriais ou presidenciais: Manuel Pinho, Durão Barroso, Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas, Telmo Correia, António Mexia, Mário Lino, Duarte Lima…
A cronologia do fim do império Espírito Santo impressiona. Para qualquer português, sobretudo se a viver fora do país, a leitura do artigo chega a ser fisicamente dolorosa. Porque a história do BES confunde-se com a própria História do país, ou pelo menos de um certo país das elites de Cascais que sempre o usaram a seu bel-prazer. Um país em que muitos empobrecem e tantos são obrigados a emigrar para que muito poucos se tornem absurdamente ricos – mas invariavelmente, numa riqueza que não traz retorno nem investimento produtivo, porque é baseada em esquemas especulativos e mentiras.
O castelo de cartas ruiu. A verdade que poucos têm a coragem de dizer e ainda menos de enfrentar é que essas ruínas atingem as profundezas do regime vigente em Portugal. Apesar do nervosismo, apesar do afã dos governantes do PSD/CDS em injectar dinheiros públicos no banco para salvar as suas próprias poupanças pessoais (o PS fez o mesmo pelos mesmos motivos aquando do buraco do BPN), desta vez nem tudo vai poder continuar como antes na democracia portuguesa. Mas não tenhamos ilusões – assentada a poeira, o país continuará a empobrecer às mãos destas malfadadas elites.

O pato manco europeu


Quando um presidente está a chegar ao fim do seu mandato e é sabido que este não será renovado, o presidente é apelidado no mundo anglo-saxónico de “pato manco” (lame duck). O termo nasceu na Bolsa de Londres há mais de dois séculos para designar alguém que não era capaz de pagar as suas dívidas – tal como um pato que, por ser manco, não conseguia acompanhar o seu bando tornando-se assim numa presa fácil.
Barroso é o pato manco europeu (devido à iminente entrada ao serviço da Comissão Juncker: nesta semana o Parlamento Europeu dará a luz verde à reformulada equipa, que entrará em funções a 1 de Novembro). E por definição, um pato manco já tem pouco quem lhe preste atenção, logo o seu poder diminui à medida que a data de saída se vai aproximando. Mas nem tudo é mau: o estatuto de fim de festa também empresta ao visado o sentimento libertador de nem ter nada a perder nem consequências pessoais futuras a enfrentar. É nesta altura que muitos políticos ganham finalmente coragem para tomar decisões ou fazer afirmações impopulares.
Em 2002, ao ser empossado primeiro-ministro português, Barroso foi apelidado pela sua própria esposa de “cherne”. E durante a sua longa década aos comandos da Europa, Barroso ganhou em Bruxelas outro cognome oriundo do reino animal: o “camaleão”, devido à facilidade com que mudava de cor política para ir tentando agradar aos poderosos Estados-membros que lhe deram o emprego, nomeadamente Alemanha e Reino Unido. A mesma Alemanha que centrífuga a Europa. O mesmo Reino Unido que ostraciza a Europa, que se crê superior à Europa, e cujos políticos utilizam a Europa como bode expiatório e alvo de demagogia.
O ainda presidente da Comissão Europeia fartou-se. Ontem, em Londres, o pato manco Barroso teve a subtileza do elefante na loja de porcelanas: avisou David Cameron que ele está a cometer “erros históricos”, e que a defesa da Europa se deve fazer agora, e não em desespero antes de um referendo; deixou claro que os planos de Londres para limitar o número de imigrantes no país – dirigidos sobretudo a polacos e romenos, mas também a portugueses ou espanhóis – são ilegais pelos tratados da União, e contrários aos princípios de um mercado livre que é afinal “o que os britânicos sempre quiseram”; finalmente, ameaçou que no caso de realmente sair da UE, o Reino Unido passaria a ter “uma influência igual a zero”.
Barroso vai sair, e quis fazê-lo com estrondo: o Reino Unido ficou em polvorosa com as declarações deste anglófilo de sempre. Infelizmente para a Europa, este estertor final de lame duck significa demasiado pouco. E pior: vem demasiado tarde.

Seis anos


Lembra-se da crise? Claro que sim, ela não deixa passar muito tempo sem nos enviar um lembrete. Começou há uma eternidade e nem nos abandonou nem parece a caminho de o fazer; pelo contrário, os indicadores económicos estão a voltar a semear o temor pelas empresas e bolsas. É preciso ser muito claro: este estado miserável da economia europeia, seis anos volvidos, é causado pelas opções suicidárias que tomámos.

Ainda há poucos meses os sicários da austeridade – os mesmos que monopolizam vários governos, ditam a política económica e ocupam posições-chave entre os fazedores de opinião para melhor a publicitar – cantavam vitória por melhorias decimais de um ou outro indicador. O PIB da Irlanda deixou de cair, o desemprego em Portugal já não cresce tanto. A periferia europeia conseguiu voltar aos mercados e as taxas de juros dos empréstimos caíram a pique, tudo devido a quatro palavras proferidas pelo presidente do BCE: o euro será defendido “custe o que custar” – e os mercados acalmaram, percebendo que Portugal, Espanha, Itália não iriam à bancarrota pois não teriam falta de liquidez.

Mas os desequilíbrios continuam lá. E em vez de os corrigir, seis anos depois, continuamos a prolongar a agonia económica com os mesmos erros cometidos pelo Japão, ao longo das suas “duas décadas perdidas” (que ainda não terminaram), ou pelos EUA durante a Grande Depressão. Há anos, escrevi aqui nesta mesma coluna que vivíamos como que “presos no ano infindável de 1931”. O mais extraordinário é que os anos passam, continuamos sem ver a luz ao fundo do túnel – pelo contrário, o túnel parece agora voltar a escurecer – e ninguém se revolta, nem aprendemos nada. 


Em 1931 essa revolta aconteceu. Quem estava a dirigir a economia americana para o abismo perdeu as eleições, e Roosevelt tornou-se presidente para aplicar um programa que era em certo sentido o oposto da cura austeritária: enorme investimento público, expansão salarial, descida das taxas de juro. Quatro anos mais tarde, o desemprego tinha descido de 25% para 14%; se o mesmo fosse obtido hoje, poderíamos chegar a uma situação de pleno emprego…
Roosevelt, que passou as últimas décadas da sua vida numa cadeira de rodas devido à poliomielite, foi um político tão excepcional como irrepetível. Agora, temos como condutor o ministro das Finanças alemão, Schäuble (numa coincidência macabra, também ele preso a uma cadeira de rodas). E ainda anteontem o contabilista de Merkel repetiu a sua narrativa, atribuindo (erradamente, como hoje sabemos) a culpa à irresponsabilidade fiscal dos países do Sul; ou seja, seis anos depois, as nossas perspectivas são as de persistir no autismo, em vez de procurar a solução.

Entretanto, a economia europeia está perigosamente perto da deflação – as dívidas dos Estados e das pessoas tornam-se assim impossíveis de pagar. E continuamos a cortar salários e agravar o desemprego, agravando o problema. A única boa notícia é que a Alemanha está a semear o que colheu, e também já não está a crescer – é muito difícil exportar quando há cada vez menos compradores… Quando começar a tocar-lhe onde dói mais, a Alemanha também escolherá o seu próprio Roosevelt. Mas há ainda outro cenário possível: o aparecimento de um novo chanceler mais parecido com o eleito naquele país em 1933.

Não assinem o TTIP


Um dos problemas da Europa é o de ser governada por pessoas que não gostam da Europa. Ninguém tem dúvidas sobre onde está a lealdade da administração americana, por exemplo – ali, a narrativa nacionalista é construída desde muito cedo. Mas os europeus privilegiam identidades mais reduzidas e não se veem muitas vezes a si próprios como tal. Mesmo quando isso acontece, raramente é com o orgulho devido.
Um bom exemplo aconteceu recentemente na Ryder Cup. Esta competição de golfe é especial por várias razões: é disputada por “selecções”, e apesar de atrair um enorme interesse a nível global – movimentando milhões em patrocínios e contratos televisivos –, os golfistas competem pelo prestígio da equipa e não recebem prémios monetários. Além disso, e não é proeza pequena, esta é a única competição de qualquer desporto que apresenta uma equipa que compete sob a belíssima bandeira da UE, estrelas de ouro sobre fundo azul. Ou seja, os jogadores competem sobretudo pelo orgulho, e até anti-europeus notórios como o infame Nigel Farage podem ser vistos a torcer pela equipa da Europa unida.
Parece a perfeita oportunidade para uma grande dose de boa e velha propaganda europeia, certo? Errado. A competição durou uma semana e atraiu a Perth, Escócia, milhares de turistas e um batalhão de repórteres; conscientes do facto, os EUA trouxeram consigo embaixadores e um stand promocional, como se de uma feira económica se tratasse. A UE também montou um, mas em vez de “vender” a Europa este limitava-se a pedir aos americanos a assinatura do acordo de livre comércio connosco. Ninguém estava interessado, naturalmente. Mais uma oportunidade de conquistar corações perdida, e pior, tudo em nome de um mau motivo.
O Acordo Transatlântico de Livre Comércio (TTIP, na sigla inglesa) é um documento poderosíssimo que está a ser negociado sob alto sigilo entre meia dúzia de burocratas europeus e americanos. O sigilo é necessário porque em sociedades democráticas como (nominalmente) ainda é a nossa, os cidadãos nunca aceitariam, se o conhecessem, o que está a ser cozinhado por trás de portas bem fechadas. Estes acordos não são senão uma forma de contornar – sobrepondo-se a elas – as nossas leis e regulamentações de forma a tornar-nos completamente vulneráveis aos grandes interesses empresariais que enfermam mais de 90% das disposições do documento.
De um só golpe, e com o público completamente distraído com o último filme, o último casamento ou a última guerra, os Estados Unidos vão finalmente conseguir eliminar todas aquelas irritantes barreiras de protecção sanitária ou ambiental que os europeus insistem em ter contra os bifes industriais, os vegetais organicamente modificados ou a produção de gás natural através da injecção de químicos nos solos. Quaisquer leis que ainda nos separem do vale tudo serão invalidadas, em nome do “livre comércio”, por tribunais especiais criados para o efeito e onde os “investidores” (leia-se, as corporações) terão todos os poderes para processar os Estados soberanos, ou seja, os cidadãos.
Só que desta vez nem todos os europeus estão a dormir. Há muitos que, já este sábado dia 11, por todo o continente (também no Luxemburgo, em Bruxelas ou Lisboa), vão descer à rua da grande cidade para se manifestar contra este assalto brutal às nossas democracias. Eu serei certamente um deles.

Salvar a cidade com música


Há uma nova música no ar – e vem de um sítio improvável. Borny é um subúrbio de Metz, uma pequena cidade da Lorena, integrante da Grande Região tal como o Luxemburgo. Mas não é um subúrbio qualquer: o nome evoca imediatamente, aos habitantes da cidade, problemas e delinquência. Borny é uma “zona de ensino especial” já desde 1982, uma “zona urbana sensível” há ainda mais tempo, e apresenta actualmente uma taxa de desemprego superior a 30%. Daí até à reputação de uma área perigosa, uma espécie de Bronx de Metz, vai um pequeno passo.
Quando a Câmara de Metz se reuniu para escolher a localização de uma nova sala de concertos de última geração, num investimento de 15 milhões de euros, teve em conta a lei francesa do renovamento urbano que estipula que os novos equipamentos públicos devem, de preferência, ser construídos nos bairros em dificuldades e não nas zonas mais chiques. E não havia bairro em mais dificuldades que Borny; tanto que a reacção dos próprios habitantes foi “façam a sala em qualquer lado, menos aqui!”
 E porque não ali? A vontade política de Metz é a de procurar a mescla social que acompanha a mistura cultural; o maire afirma que a escolha de Borny simboliza uma visão da cidade como um todo, em que não deve haver uma dicotomia centro/subúrbios mas sim um espaço homogéneo por onde os habitantes se movimentam (e a cidade também inaugurou, no ano passado, um novo sistema de transportes rápidos chamado Mettis).
A Caixa de Música (Boîte à Musique – BAM) abriu esta semana com uma avalanche de concertos de música do nosso tempo (com destaque para Woodkid, o músico que é conhecido por dirigir vídeos para Taylor Swift, Katy Perry, Lana del Rey e “Happy” de Pharell Williams). A Câmara apelou a um arquitecto meridional, um francês de origem italiana nascido na Argélia, para a criação de um edifício marcante, longo, aberto, com janelas irregulares em forma de estilhaços, iluminadas a cores diferentes durante a noite. Um edifício fotográfico, especial – o segundo construído em Metz no espaço de três anos, após o surpreendente Centro Pompidou, e a cidade, inteligentemente, não tenciona ficar por aqui. Nos nossos tempos, a capacidade de crescer – tanto em termos populacionais como económicos – depende muito da capacidade de atracção. E essa joga-se em grande medida na indústria cultural, geradora de riqueza e emprego.
Na Caixa de Música, muito do emprego gerado falava aliás português, dado que a empresa de construção – muito elogiada pelo excelente trabalho num projecto altamente complexo – era a Soludec, de Differdange. Uma razão suplementar para desejar que a BAM consiga realmente mudar um bairro problemático, em vez de ser engolida por ele. Há muitas cidades europeias desejosas de recuperar os seus “quarteirões problemáticos” que vão estar muito atentas.

A partida de póquer


Bósnia, 1914. Há exactamente cem anos, o arquiduque Francisco Fernando parte com a sua mulher (naquele que era um raríssimo casamento por amor entre as cabeças coroadas da Europa) de Viena até Sarajevo para visitar os novos domínios da monarquia austro-húngara. Uma inacreditável incompetência norteou toda a organização do evento: o dia escolhido (28 de junho, dia da mítica batalha dos campos do Kosovo) iria forçosamente provocar os conspiradores radicais sérvios; o cortejo do arquiduque seguia um trajecto perfeitamente previsível e sem segurança ao longo do rio, num carro aberto e sem guardas (que ficaram apeados por engano na estação); mais extraordinário ainda, durante o trajecto de ida um dos assassinos conseguiu lançar uma granada que falhou o alvo principal por centímetros e feriu vários dos acompanhantes. E no entanto o programa da visita continuou inalterado! Por fim, depois de um banal discurso do presidente da Câmara tornado surreal pelo atentado que tinha acabado de ocorrer, o casal real decidiu-se a cancelar o passeio e voltar para o hotel – mas ninguém avisou da alteração o motorista. Este retoma o percurso original e pára o carro mesmo em frente a Gavrilo Princip, o jovem anémico que saca do revólver e disfere dois tiros fatais.

O trágico desfecho do passeio a Sarajevo foi muito mais que o assassinato brutal de um casal de monárquicos; como sabemos, constituiu também o detonador para a grande catástrofe europeia do século XX, a I Grande Guerra. O choque do crime pôs em marcha as rodas dentadas da máquina da morte. Volvido um mês, a Áustria apresentou um ultimato à Sérvia (instigadora do crime), com esperança que a Rússia não estivesse preparada para responder e intervir em auxílio dos seus “irmãos mais novos”. Mas foi exactamente isso que a Rússia fez, o que levou a Alemanha a acorrer em ajuda ao seu aliado austríaco – precisamente o que a França queria: envolver a Alemanha numa teia bélica fatal com a ajuda da Inglaterra. Todos os intervenientes foram subindo as apostas, mecanicamente, irresponsavelmente, em bluffs crescentes, confiantes que mais cedo ou mais tarde os adversários acabariam por recuar perante a possibilidade de destruição generalizada do continente que liderava então, claramente, o mundo. Foi a partida de póquer mais mortífera da História.
E a História, já se sabe, repete-se sempre – só que da segunda vez como farsa. Ou como escreveu Lord Byron, “a História, com todos os seus volumes, na verdade só tem uma página”. Precisamente um século depois, uma partida de póquer semelhante desenrola-se num Estado eslavo do sul – a Ucrânia –, há um temor justificado pela imprevisibilidade da Rússia, e há em toda a Europa uma capacidade impressionante de armamento à espera de ser usado. E até o Papa fala na possibilidade de uma terceira guerra mundial…
Os tempos são outros. Aprendemos com os nossos erros, construímos uma União Europeia que já nos garantiu 60 anos de paz. Mas as nuvens adensam-se.

A Europa suspensa da Escócia


Amanhã (quinta-feira) é um dia histórico, o dia em que a Europa pode ganhar um novo país (seria o seu 51.º, se não contarmos com alguns territórios controversos). Os mais de 4 milhões de eleitores a viver na Escócia (não apenas escoceses, mas também todos os cidadãos da UE) vão às urnas para responder da forma mais simples possível, sim ou não. A pergunta é que é devastadora: deve a Escócia abandonar o Reino Unido e tornar-se independente?
Breve contexto histórico: a Escócia sempre foi uma “nação” independente, com os próprios romanos a demarcarem a sua fronteira construindo a muralha do imperador Adriano. Após séculos a repelir várias invasões dos seus ávidos vizinhos ingleses – a mais famosa das quais romanceada pelo filme “Braveheart” –, a Escócia empobreceu graças a um mirabolante esquema de investimentos no Panamá. O medo do futuro empurrou a nobreza para um casamento de conveniência com Londres em 1707 – nascia o Reino Unido, que diluía a bandeira azul da cruz de Santo André atrás de outras mais vermelhas e brancas.
A pulsão independentista é recente no país e, ao contrário do que seria de esperar, as mortíferas batalhas medievais nem foram argumento de campanha. Também poucas vezes foi referida a grande responsável pelo afastamento entre os dois países, a primeira-ministra Thatcher, cujos anos de governo nos anos 80 significaram uma centralização crescente em Londres e o desprezo votado às cidades do Norte, então em forte decadência. Pelo contrário, a campanha do “Sim à Escócia” foi feita pela positiva, fazendo muitos eleitores acreditarem que a Escócia independente será um lugar melhor do que actualmente, com a Escandinávia como modelo – e na verdade, se as receitas do petróleo do mar do Norte fossem atribuídas aos cidadãos escoceses em vez de canalizadas para Londres, a Escócia até teria um PIB per capita superior ao de Inglaterra.
Neste momento, metade da Europa está a suster a respiração, ansiosa pelo incerto resultado do referendo mais importante deste século até agora. Londres, que nunca acreditou que o “Sim” tivesse alguma hipótese e organizou o referendo como uma forma de pôr uma pedra no assunto, está agora em pânico; a imprensa iniciou uma estratégia tardia de intimidação e medo (o desvairado “Economist” titulou mesmo “O dia em que um país enlouqueceu”), enquanto os políticos acorreram a Edimburgo para assegurar que se o “Não” ganhar, a Inglaterra recompensará a Escócia com mais poderes e mais dinheiro. A Catalunha, que quer fazer o seu referendo em Novembro mas não tem autorização de Madrid, não perde pitada; a Flandres, a Baviera e a Itália do Norte seguem interessadas. E Lisboa devia estar assustada, porque embora os portugueses sejam politicamente passivos, o ostracismo a que vota o resto do país não passará para sempre impune.
E a Escócia? Em jeito de prognóstico, aqui fica: o referendo será como no Quebeque em 1995, e o “Não” vencerá por uma curta margem. O Reino Unido manter-se-á – mas nada mais será como dantes.

Lá se vai o pomar


É raro que uma pessoa se torne notícia pelo simples acto de migrar; habitualmente essa honra está reservada aos jogadores de futebol, seja no país de origem ou no de destino. Mais rara ainda é essa notícia se a migração se fizer no sentido Portugal -> Luxemburgo, tal é a avassaladora frequência desse acontecimento. Mas foi isso mesmo que aconteceu esta semana a Paulo Veríssimo, um cientista da Universidade de Lisboa. Veríssimo foi contratado pelo Fonds National de Recherche para desenvolver uma equipa de investigação na área da segurança informática de grandes sistemas, por exemplo aqueles ligados às infra-estruturas críticas. Era esse o trabalho que, torneando obstáculos sucessivos, procurava desenvolver em Portugal, um país que nas suas próprias palavras “não concretizou ainda sequer a sua política de cibersegurança” – ou seja, continua vulnerável a um hipotético ciberataque hostil à sua rede eléctrica, só para dar um exemplo.
A migração de Paulo Veríssimo, um dos grandes especialistas mundiais na área, não é notícia apenas pelo simbolismo de ver um professor prestigiado a seguir o mesmo caminho tantas vezes trilhado por compatriotas a quem faltaram oportunidades no país natal, nem apenas pela perda que o seu trabalho representa para Portugal. É-o também por ser consequência directa das opções tomadas pelo mesmo Governo de Lisboa que insta os jovens licenciados a abandonar o país. Agora, a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), nome pomposo da organização governamental para a área, impôs uma “avaliação” altamente duvidosa a todas as instituições científicas com o objectivo – nem sequer inconfessado… – de cortar metade delas, asfixiando-as financeiramente. A estratégia é apelidada pelos seus mentores de “uma poda”. Mas ninguém que perceba da poda vai alguma vez cortar de uma assentada metade do pomar, sobretudo baseando-se em critérios difusos e aleatórios, como é o caso. Esta machadada acontece precisamente na altura em que a ciência portuguesa estava a crescer, aproximando-se da média europeia. Agora, é dizimada pelos próprios dirigentes cuja primeira missão deveria ser a sua promoção; os países precisam de ciência e tecnologia para se desenvolverem, para evitarem a condenação a um papel periférico e um atraso atávico. Hotéis e praia não chegam para construir um futuro.
O centro de investigação a que presidia Paulo Veríssimo (Laboratório de Sistemas Informáticos de Grande Escala) foi uma das muitas que não passou à segunda fase da “avaliação” promovida pela FCT. Mesmo as que passem terão de disputar uma fatia do bolo total de financiamento de meros 6 milhões de euros – pouco mais do que a bolsa agora atribuída a Veríssimo e equipa pelos poderes públicos luxemburgueses, que é de 5 milhões… assim não admira que a “fuga de cérebros” continue em Portugal – só na última década, o país perdeu 7 mil recém-licenciados, sangria sem paralelo na Europa Ocidental, enquanto o Luxemburgo recebeu mais de 4 mil – um grande impacto positivo nesta pequena economia, cuja reconversão pós-praça financeira parece uma aposta séria. Afinal, a contratação de cérebros portugueses, de qualidade e bem-pagos, são boas notícias se vistas deste lado da Europa.

Tocar na placa


O que é viajar? Ou de outra forma, a partir de que momento a simples deslocação e presença em determinado local evolui para algo mais profundo? O que distingue, então, o viajante do vulgar turista?
Há um clube baseado em Los Angeles que não se preocupa excessivamente com estas questões filosóficas. O Clube dos Viajantes Centenários, criado em 1957, reúne aqueles que já visitaram 100 ou mais dos países e territórios em que a Humanidade dividiu o planeta Terra. Previsivelmente, no início o clube dispunha de um pequeno punhado de membros – pessoas com (muito) tempo e dinheiro para gastar nos primórdios da aviação comercial, em que os bilhetes de avião se compravam muitas vezes por carta e uma viajem intercontinental em classe económica custava facilmente 3000 euros. Hoje, os membros passam os dois milhares, e não será demais dizer que esta pequena elite coleciona lugares como quem amealha selos, trocando memórias e experiências por uma lista infindável de nomes. O acto de viajar, transformado aqui em desporto de alta competição. Mas quem merece a medalha de ouro?
O americano Charles Veley tem uma opinião forte sobre o assunto: esse homem é ele próprio. Veley praticamente não tinha saído dos Estados Unidos até há cinco anos, entretido com as suas semanas de 100 horas de trabalho que o tornaram um jovem milionário das indústrias digitais; ao descobrir essa forma de gastar o seu dinheiro, não mais parou – visitou os primeiros 100 países em três meses, outros 100 em mais alguns meses… hoje, aos 40 anos, Veley já esteve em 96% da lista “oficial” do clube (que inclui muito mais países que a ONU, na perspectiva de que quem visita os Açores não viu propriamente Portugal, e vice-versa): 834 locais. Tal custou-lhe problemas no casamento, facilmente compreensíveis recorrendo à matemática, dado que em cinco anos, isso dá uma média aproximada de apenas dois dias passados em cada país – e isto nem sequer tendo em conta o tempo de viagem e os períodos passados em casa. Ou seja, não há qualquer tempo para efectivamente conhecer o local, descobrir a sua história, as suas pessoas, o seu modo de vida, as suas vistas mais especiais; numa palavra, não dá para viajar, só para mover-se.
Um jovem milionário, sem restrições de orçamento (Veley já gastou mais de 1,5 milhões de euros no seu hobby, e 25 000 numa só viagem à Antártida), tem claras vantagens neste tipo de concurso, mas há um português a competir – Nuno Lobito, oficialmente a 8.º pessoa mais viajada da Terra, que já viu muito mais mundo do que Vasco da Gama, Cabral e Fernão de Magalhães combinados! Lobito é fotógrafo, um homem de olhar privilegiado, que tem interpretado o mundo através da sua objectiva. Uma forma mais tranquila de viver a sua dromomania – a necessidade obsessiva de viajar. E esta é uma condição mais frequente do que se imagina. No início do século XX, um grupo de psicólogos estudou as deambulações de Jesus pela Galileia e concluiu que Cristo foi o primeiro famoso dromómano.

Vizinhança europeia

O luxemburguês Jean-Claude Juncker ultrapassou, com um voto favorável no Parlamento Europeu, o último obstáculo na sua longa corrida para se tornar presidente da Comissão. Juncker precisava do apoio de uma maioria simples dos 751 deputados (ou seja, pelo menos de 376), o que foi garantido com relativo à-vontade na sessão plenária de 15 de Julho.
 
Escrevi as linhas acima um dia antes dos factos se verificarem, devido à data de fecho da edição do jornal em papel. Mas a futurologia é possível quando está bem ancorada em informação relevante: assim como não é difícil prever que equipas cujos treinadores não percebam muito de táctica e escolham jogadores em má forma não vão ganhar o campeonato do mundo de futebol, também é um risco calculado afirmar que Juncker será realmente eleito. Porque o democrata-cristão fez o seu trabalho de casa, trabalhando na sombra para assegurar que não existiriam surpresas de última hora. Um bom exemplo foi a forma como se sujeitou a uma reunião com cada um dos sete grupos políticos europeus, procurando dizer a cada um deles o que eles gostariam de ouvir: aos socialistas (que o têm apoiado mesmo mais que o seu próprio grupo) prometeu várias pastas incluindo a da Economia; aos eurocépticos reformistas, jurou “que não era um federalista”; aos liberais, que a “composição da sua Comissão estava totalmente em aberto” (negando assim o que tinha dito algumas horas antes).
 
Aos Verdes, grupo crucial e dividido na sua posição perante Juncker, foi prometida a oposição aos organismos geneticamente modificados e à privatização de serviços públicos, por exemplo. Mas mais uma vez as principais questões receberam uma resposta vaga e evasiva, algo de que todos os grupos, mesmo os democratas-cristãos, se queixaram. Do encontro com o novo grupo de direita populista, pouco interessado em discutir temas de fundo, não rezou a História. Mas o verniz político estalou de uma forma desagradável com o grupo da extrema-esquerda, que já era obviamente adverso a votar no luxemburguês. Juncker, preocupado com o seu telemóvel, primeiro demonstrou não dar a mínima importância ao que dizia o deputado português João Ferreira; em seguida aconselhou-o a ser breve “porque tem cinco vizinhos portugueses”, logo nem precisando de tradução para perceber a língua e “conhecendo bem” a situação do país, revelando ali um lado do político que os luxemburgueses conhecem bem: irascível, rude, paternalista. No seu pequeno país de origem, cheio de humildes vizinhos portugueses, Juncker pode eventualmente dar-se a esse luxo; como presidente da Comissão Europeia, gerindo os delicados equilíbrios políticos gerados por 500 milhões de habitantes do continente mais rico do mundo, não pode.
 
Juncker parece esquecer-se que a sua aprovação pelo PE decorre principalmente da vontade de respeitar a escolha democrática vinda das eleições europeias – e não de um genuíno entusiasmo pela sua pessoa ou o seu percurso. Ignorando este simples facto político, perdendo a capacidade de escutar e reagir às críticas, Juncker arrisca-se a ter recorrer mais vezes aos seus alegados vizinhos como fonte de ligação ao mundo real. Esperemos que nenhum deles se chame Cristóvão Colombo.