quarta-feira, 29 de outubro de 2014

História portuguesa da infâmia


O grande escritor argentino Jorge Luis Borges compilou as suas surreais histórias curtas e publicou-as em 1934, ano de crise económica, sob o título “História Universal da Infâmia”. Cada um dos capítulos do livro versa sobre um improvável crime – com algumas datas ou nomes alterados, mas todos crimes reais perpetrados por criminosos reais. Ali é possível ler sobre “O atroz redentor Lazarus Morell” ou “O assassino desinteressado Bill Harrigan”.
O jornal “Público” acaba de publicar, em duas partes, um extenso dossier sobre a falência do Banco Espírito Santo. Os artigos são extraordinários por vários motivos; desde logo, porque fazem acreditar que as notícias da morte do jornalismo, e nomeadamente do jornalismo de investigação, são manifestamente exageradas. Mas o mais incrível é mesmo o conteúdo, apresentado na forma de uma cronologia dura, implacável, angustiante. Uma história infame que Borges, se fosse vivo, usaria como um novo capítulo do seu livro: “O banqueiro ladrão Ricardo Salgado”.
Praticamente em cada parágrafo da reportagem há matéria para desembocar, senão num processo criminal, pelo menos num livro bombástico. Tantas mentiras, tantos golpes sujos, tantos crimes. Desde os 3000 sobreiros cortados no Alentejo para construir um resort de luxo, até aos milhões lavados nas filiais do Luxemburgo ou de Miami, passando pelos biliões desaparecidos em compras de submarinos ou esquemas angolanos, ou ainda pelos trocos usados para comprar a lealdade de muitos políticos. E é um verdadeiro desfile de nomes aqueles que passaram pelo BES antes de ocuparem cargos ministeriais ou presidenciais: Manuel Pinho, Durão Barroso, Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas, Telmo Correia, António Mexia, Mário Lino, Duarte Lima…
A cronologia do fim do império Espírito Santo impressiona. Para qualquer português, sobretudo se a viver fora do país, a leitura do artigo chega a ser fisicamente dolorosa. Porque a história do BES confunde-se com a própria História do país, ou pelo menos de um certo país das elites de Cascais que sempre o usaram a seu bel-prazer. Um país em que muitos empobrecem e tantos são obrigados a emigrar para que muito poucos se tornem absurdamente ricos – mas invariavelmente, numa riqueza que não traz retorno nem investimento produtivo, porque é baseada em esquemas especulativos e mentiras.
O castelo de cartas ruiu. A verdade que poucos têm a coragem de dizer e ainda menos de enfrentar é que essas ruínas atingem as profundezas do regime vigente em Portugal. Apesar do nervosismo, apesar do afã dos governantes do PSD/CDS em injectar dinheiros públicos no banco para salvar as suas próprias poupanças pessoais (o PS fez o mesmo pelos mesmos motivos aquando do buraco do BPN), desta vez nem tudo vai poder continuar como antes na democracia portuguesa. Mas não tenhamos ilusões – assentada a poeira, o país continuará a empobrecer às mãos destas malfadadas elites.

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