segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Legalizem-no

Um homem inesperado. Um homem que clama publicamente contra a obsessão desmesurada pelo dinheiro. Alguém que chega ao topo da sua carreira, numa posição de enorme poder e prestígio, e abdica de grande parte das regalias e mesmo do salário a que tem direito. Tudo isto escolhas que são coerentes com toda uma longa vida passada em defesa dos mais oprimidos, muitas vezes com grande sacrifício pessoal, para tentar tornar o seu país da América do Sul num lugar mais justo e menos desigual.

Poderia perfeitamente estar a referir-me ao cardeal Jorge Bergoglio, o argentino que se tornou o Papa Francisco e que, seguindo a filosofia de Francisco de Assis, tem dado provas de uma humildade e simplicidade inesperadas e refrescantes para o sumptuoso cargo. O Papa ousou mesmo, há três semanas, assinar uma análise crítica à persistente desigualdade económica no mundo como seu primeiro documento oficial. O texto contém capítulos intitulados “Não à nova idolatria do dinheiro”, “Não à economia da exclusão” ou ainda “Não à desigualdade que leva à violência”. E não poupa nas palavras em relação ao ponto em que nos encontramos: “Alguns continuam a defender teorias em como um mercado em rédea livre vai inevitavelmente levar a mais justiça e inclusão pelo mundo. Esta opinião, nunca confirmada pelos factos, revela uma confiança ingénua na bondade dos que detêm o poder económico. Entretanto, os excluídos continuam à espera”.

Um texto desassombrado pelo qual o Papa merece todo o respeito. Mas não é apenas Francisco quem quero destacar nesta altura natalícia, em que se celebra o (suposto) nascimento de um filósofo que há dois milénios já alertava para o poder nefasto da desigualdade económica. O primeiro parágrafo refere-se a José Mujica, um político extraordinário por vários motivos.

Mujica é presidente do Uruguai. Mas este idoso pachorrento e mal barbeado, apesar de representar um país com uma economia que está a crescer agradavelmente a uma taxa de 3% ao ano, não vive num luxuoso palácio presidencial, mas sim na sua pequena casa rural com um quarto; não se desloca a alta velocidade numa limusine negra rodeada de motos da polícia, mas sim conduz um velho VW carocha, além de viajar de avião em classe económica; não se queixa de apenas receber 10000 euros de reforma, mas pelo contrário distribui por pobres e necessitados 75% do seu salário; e acaba de anunciar querer adoptar 30 ou 40 crianças, a quem tenciona ensinar as artes de trabalhar a terra.

O desapego material de um líder político é admirável, mas ainda mais relevante são as políticas liberais e progressistas que esse líder vai aplicando. A mais recente (e surpreendente) provém de uma lei que vai regular a produção, venda e consumo de cannabis, uma “experiência” – a modesta descrição do próprio presidente – que vai retirar os lucros dos traficantes, tratar o problema ao mesmo nível do álcool, e libertar a polícia para lidar com crimes mais graves. Simultaneamente, abandona a hipocrisia da proibição total e responsabiliza cada cidadão pelas suas escolhas, em vez de ter o Estado-avózinha a tratar toda a sua população como crianças.

O pequeno Uruguai ouviu os gritos globais de “legalizem-na!” (em relação à marijuana). Mas isso é o menos; o que me apetecia mesmo era dizer: legalizem Mujica nos outros países.

A narrativa do “gastámos muito”

“Vem-nos à memória uma frase batida”, canta o trovador. O primeiro-ministro de Portugal proferiu ontem uma dessas frases muito batidas: “vamos demorar muito tempo a pagar o nosso despesismo dos últimos 20 anos”. É uma ideia clara, forte, que ressona bem junto de eleitores traumatizados com cortes no seu rendimento e nos serviços públicos de que usufruem. Só há um pequeno problema: trata-se de uma mentira, e não é bem intencionada.

Passos Coelho poderia ter razão – se se estivesse a referir ao regabofe em que vive a antiga capital do império, Lisboa. Se os 20 anos incluíssem o Centro Cultural (ou Comercial) de Belém, os negócios obscuros da Expo98, os cerca de 1000 km de auto-estradas SCUT disponíveis na região do Vale do Tejo, as centenas de milhar de funcionários públicos concentrados na capital, as suas estações de metro e hospitais novos e subutilizados enquanto que no resto do país eles encerram, bom, aí a sua análise seria desgraçadamente certeira. Mas conhecendo nós como conhecemos os nossos actores políticos, a frase não passa de uma variação da conhecida narrativa “andámos a viver acima das nossas possibilidades” que nos tem vindo a ser impingida há alguns anos pelos arautos da austeridade – estando ela já completamente desacreditada.

Nunca é demais repeti-lo: a crise em que vivemos não foi provocada por desmesurada despesa pública. Mais uma vez: não foi provocada por demasiada despesa pública. Sobretudo sabendo que o Estado gasta mais em juros da sua dívida (que, sendo hoje em dia bem maior do que há cinco anos, se vai tornando efectivamente impagável...) do que aquilo que investe em educação ou investigação tecnológica, por exemplo. Em 2007, todos os países da zona euro (à excepção da Grécia) tinham
indicadores económicos sólidos, relativamente baixos défices, dívidas controladas. Espanha e Irlanda tinham mesmo superavits orçamentais e estavam assim em melhor posição fiscal que a Alemanha ou a França, por exemplo, e Portugal também não estava longe.

Aquilo que despoletou o marasmo em que, exportadores alemães à parte, vivemos hoje na Europa foram os resgates com dinheiros públicos feitos para salvar bancos privados e, em menor medida, a perda de receita de impostos provocada pela drástica diminuição da actividade económica directamente decorrente da imposição de uma austeridade draconiana – esta é renegada hoje por grande parte dos seus próprios criadores, mas continua em vigor e sem fim à vista para o túnel. Se o diagnóstico está errado, não admira que a cura receitada também o esteja.
A frase batida do primeiro-ministro atira-nos mais areia para os olhos, e é pena. Após tanto tempo de troikas, o que os europeus precisam é das boas notícias que nunca chegam; não de mais radicalismo ideológico travestido em fantasmas do passado.

Um homem para a eternidade

Perdemos um amigo. Nelson Mandela não é apenas um ícone, um símbolo, uma figura maior que a vida, embora seja tudo isso. Era também um homem, alguém sincero que cultivava uma desarmante proximidade. Não era um amigo pessoal; era um amigo da humanidade, que melhora o mundo em que vivemos e que nos inspira pela força inabalável do seu exemplo, da sua coragem e da sua estatura moral.

Mas já lá vamos. Este texto não tenciona servir de elogio fúnebre a um homem, porque para essa função já muitos outros textos mais bem escritos apareceram antes. O que também parece interessante é fazer uma pequena retrospectiva e avaliar percursos: como mudam as opiniões à luz da extraordinária e improvável transformação de pouco conhecido e aprisionado líder da resistência em extraordinário líder político mundial...

Nos anos 80, as perspectivas do prisioneiro 46664 da prisão espartana em Robben Island eram assustadoras. De dentro da sua miserável cela, com um balde vermelho como casa de banho, Mandela caminhava para 27 anos nas mãos dos seus verdugos. Não são 27 dias... é toda uma vida. No final dessa década, o guerrilheiro completaria 70 anos; tinha a saúde debilitada e a visão afectada pelos trabalhos forçados da prisão. Steve Biko, Robert Sobukwe e outros grandes activistas já tinham sido assassinados há muito e o regime do apartheid parecia de pedra e cal, oficialmente proscrito pelo resto do mundo mas satisfeito com os seus negócios que traziam prosperidade aos seus habitantes (brancos).

Nessa altura, e mesmo reconhecendo o nome Mandela, o que nem era evidente, era muito duro estar do seu lado. Muito mais fácil e popular era estar ao lado, ou pelo menos não incomodar, os poderosos, os que estavam na mó de cima. Dos racistas que tinham criado o apartheid. Foi assim que o presidente Botha veio visitar a Madeira, recebido por João Jardim, em 1986; foi assim que o Portugal do primeiro-ministro Cavaco votou contra resoluções da ONU que apelavam à libertação de Mandela. Sim, estávamos do lado errado da História. Os representantes do país fizeram-nos engolir os princípios em nome de uma difusa servilidade aos interesses de um regime iníquo. E é também por isso que é chocante ser o mesmo Cavaco o nosso representante no funeral do próximo domingo; uma consciência (e uma memória) activas nunca o permitiriam.

 Mandela não abandonou os seus princípios, nem ao fim de 27 anos de prisão. Tal como Thomas More em “Um homem para a eternidade”, deve ter dito: “O que importa não é se é verdade, mas sim se eu creio; e não, não é eu creio, mas sim eu creio”. E quando os seus princípios finalmente prevaleceram, Mandela olhou em volta e perdoou. Nesse gesto tão simples quão magnífico, devolveu-nos a esperança na Humanidade.

Abraço de urso faz mais uma vítima

Há cerca de quatro anos, escrevi neste mesmo espaço um texto intitulado “Como treinares o teu urso alemão” (o título glosava um filme que estreava então nas salas, “Como treinares o teu dragão” – e curiosamente já então, tal como agora, o treinador do FC Porto parecia precisar de conselhos). O texto era sobre a redescoberta assertividade alemã e sobre a melhor forma de a Europa saber lidar com o seu país mais poderoso.

Passaram menos de quatro anos. Muita coisa mudou na Europa – se há uma constante da nossa época, é precisamente a velocidade crescente da mudança – e é absolutamente extraordinário como, em tão pouco tempo, a Alemanha passou de força dominante a potência hegemónica. Hoje, nada se faz de importante na Europa contra a opinião da sra. Merkel (eleita pela Forbes como “a segunda pessoa mais poderosa do mundo”) e do seu séquito. As consequências para a Europa estão à vista de todos, e ainda nem iniciámos o terceiro mandato de uma chanceler que parece imparável, rodeando as suas decisões de uma aura de inevitabilidade. E não admira: cada obstáculo que aparece no seu caminho, despertando justas ilusões em todos nós que sentimos que esse caminho leva à lenta mas segura morte da Europa, acaba por ser neutralizado quando não triturado.

A sua última vítima, depois de Hollande, é o outro grande partido alemão, o SPD (centro-esquerda). No seu primeiro mandato, Merkel fez um governo de coligação com o SPD, asfixiando-o – e nas eleições seguintes, em 2009, o partido obteve o seu pior resultado de sempre, dado que nada representava de novo ou diferente. Agora, para obter de novo o seu apoio no Bundestag, Merkel atirou ao SPD mais algumas migalhas de consumo interno: um salário mínimo, alguns investimentos em infra-estruturas. Os sorrisos de entendimento entre os dois grandes partidos rapidamente se transformarão num abraço de urso que tornará o SPD inofensivo.

Os restantes europeus ficam agora sem quaisquer ilusões quanto a uma Alemanha auto-redentora: nem uma vírgula vai mudar na forma paternalista como o país, aquele que mais beneficia com o euro e taxas de juro baixíssimas, vai lidar com os seus parceiros europeus, sobretudo os da periferia. Sobre obrigações europeias, nem uma palavra; mas sobre o acordo de comércio livre com quem nos espia, os “parceiros” americanos, aí sim há regozijo e entusiasmo. E, numa medida quase insultuosa mas realmente simbólica, as autoestradas passarão a ser pagas... para todos os não-alemães.

A Alemanha é parte do problema europeu, não é a solução. E, embora a tomada de consciência colectiva deste facto esteja distante, a Alemanha precisa mais da Europa que a Europa da Alemanha. Compete a essa mesma Europa demonstrá-lo. É necessário mudar, não a Alemanha, mas sim contra a Alemanha. Não é possível, nem desejável – muito menos necessário – viver quatro anos mais apenas a gerir a decadência e assistar à ascensão de um novo império egoísta.

Como destruir o bom gigante

... e de caminho ganhar 25 milhões por fazê-lo. Ou então, “Como roubar a Nokia e receber de recompensa a Microsoft”. Ambos são possíveis títulos para a futura autobiografia de um homem chamado Stephen Elop.

Elop, um homem redondo e de aparência um tanto alarve, foi escolhido em 2010 para dar um rumo novo ao gigante europeu de tecnologia. O próprio facto de ser o primeiro gestor não-finlandês da Nokia era suposto simbolizar o corte com a confortável estratégia de sempre – vender telefones na sua maioria relativamente baratos e com poucas características mas sólidos, fiáveis e óptimos para fazer chamadas. Era dessa forma que uma companhia europeia esmagava um dos mais apetecíveis mercados globais – e digo esmagava pois isso significa que vendia mais do dobro dos telefones do seu mais directo perseguidor, a Samsung. Só em telefones, a Nokia tinha receitas anuais de 29 mil milhões de euros; e mesmo só contando smartphones, um produto no qual a empresa tinha sido pioneira mas não estava a responder ao sucesso do iPhone, os resultados continuavam excelentes – 35% do mercado e 104 milhões de smartphones vendidos, mais do que Apple e Blackberry juntas! Em 2010, era esse o presente da companhia – e todos os analistas concordavam que, tomando as boas decisões, a liderança seria para manter.

Entra Stephen Elop, contratado à Microsoft. Poucos meses depois, em Fevereiro de 2011, escreve uma mensagem a todos os empregados em que comparava a Nokia a uma “plataforma em chamas”, prosseguindo num tom em que autoflagelava a empresa, líder absoluta de mercado, para ao mesmo tempo elogiar Apple e Google, os novos concorrentes. O texto tornou-se histórico pelas piores razões: destruiu a moral da companhia e a confiança de muitos dos seus clientes. Foi uma verdadeira profecia que se auto-realiza, aquilo que é designado de “efeito Ratner” (nome de um vendedor de jóias que em 1991 gozou publicamente com os seus produtos e quase levou a companhia à falência com um simples discurso).

Mas Elop ainda não tinha terminado o serviço que lhe tinha sido encomendado. A Nokia tinha passado os últimos anos a investir no desenvolvimento de um sistema operativo próprio, o MeeGo, para concorrer com Android e iOS. A meio de 2011, por entre grande excitação e críticas especializadas muito favoráveis, a Nokia apresenta o N9 – o primeiro modelo a utilizar o novo e próprio sistema; e no dia seguinte, o presidente da companhia, o americano Elop, anuncia que não haverá mais nenhum telefone MeeGo, pois a Nokia iria comprar o Windows Phone da Microsoft – um péssimo sistema que não estava sequer pronto. O N9 foi morto à nascença e a Nokia não teve durante quase um ano nenhum smartphone com Windows para vender. Agora, apenas três anos depois da chegada de Elop, eles existem – chamam-se Lumia – e a empresa vendeu uns míseros 7 milhões de unidades, perdendo dinheiro em cada um deles; de líder mundial, passou a ocupar a nona posição dos fabricantes, com 3% do mercado; e mais importante, tem agora prejuízos consideráveis e cada acção vale um décimo do que valia. Arruinada a empresa, foi fácil à Microsoft comprar os ossos que restam por tostões (menos do que foi pago, há dois anos, pela Skype); e Elop, finalmente despedido, leva  para casa como recompensa por ter destruído uma empresa fantástica um “pára-quedas dourado” de 25 milhões de dólares.

Eu disse para casa? Na verdade ele volta para a Microsoft, o mesmíssimo império a quem Elop acaba de oferecer a antigamente orgulhosa Nokia, agora destituída de valor, de patentes e de pessoas. Fecha-se o círculo, e fecham-se-nos os olhos de vergonha.

Por mares nunca dantes navegados

Melinde. Este nome de cidade africana foi como um bálsamo, primeiro, e uma miragem salvadora, depois, para a exausta e depauperada tripulação de Vasco da Gama e da sua frota de três naus mais um barco de mantimentos. Na viagem de ida surgiu ao caminho dos navegadores apenas uma semana depois da mal-sucedida abordagem a Mombaça, a ilha onde os mercadores árabes tinham um monopólio impenetrável. Já Melinde, o outro grande porto da contracosta africana, acolheu favoravelmente os portugueses numa lógica concorrencial de “os inimigos de Mombaça são nossos amigos”: o sultão recebeu os presentes do enviado do rei D. João II, permitiu a reequipagem da frota e, famosamente, facultou a Gama um piloto que já conhecia as monções e a parte do Índico que restava cruzar até aportar na Índia. Camões imagina o navegador a narrar ao sultão os grandes momentos da História de Portugal; nunca saberemos se foi realmente assim, mas o sultão jurou fidelidade ao rei português, e o porto tornou-se inestimável como guarda avançada do império construído no Oriente – desde logo, na muito mais dura viagem de volta pelo mesmo percurso. Ignorando a força das monções, a frota navegou contra o vento, e a mesma distância Melinde-Calecute que tinha demorado 23 dias à ida demoraria agora 132 dias. Foi um Vasco da Gama enfraquecido que reencontrou o sultão; metade da tripulação tinha morrido, e quase toda a restante sofria com o escorbuto. Mais uma vez, o porto amigo de Melinde permitiria à frota recompor-se, e chegar rapidamente de volta ao Cabo.


Hoje, a viagem de Mombasa a Malindi faz-se em duas horas por uma estrada razoável que apenas requer alguma perícia para contornar todos os obstáculos que abundam no Quénia, desde rebanhos de cabras a babuínos passando por camiões tombados e condutores com os máximos permanentemente ligados. Mombasa, que acabou por ser conquistada pelos portugueses não através do comércio mas pela força das armas, continua nos nossos dias a ser um porto comercial vibrante e uma ilha difícil de atingir (só há uma ponte), foi a capital do território até que os novos colonizadores ingleses, fartos do calor da costa e dos mosquitos, se refugiaram na altitude de Nairobi. Melinde, por seu lado, foi perdendo dimensão e estatuto e é hoje uma cidadezinha relativamente neutra, não fora por dois sobressaltos: os decadentes hotéis de praia; e os marcos da presença portuguesa. O padrão mandado erigir por Vasco da Gama no seu retorno continua lá, altivo, numa pequena península que guarda a baía, e é encimado por uma cruz de pedra coralina provinda de perto de Lisboa, logo original. Está em relativo risco, dado que a erosão causada pelo mar ameaça fazer ruir a coluna mais cedo ou mais tarde. Mas entrementes é visitado por toda a gente, habitantes, escolas ou turistas no local. A menção de que somos portugueses, por toda esta costa, continua a suscitar surpresa e respeito.

Perto fica uma pequena capela mandada erigir por S. Francisco Xavier na primeira das suas viagens missionárias, 40 anos depois de Vasco da Gama. As quatro paredes caiadas originais continuam a albergar missas, mas o local também não beneficia de uma conservação eficaz – até porque ao contrário do monumental Forte de Jesus, em Mombaça, nem o padrão nem a capela gozam da protecção da Unesco, e como aqueles, vários outros padrões espalhados pela costa de África e pelo Oriente estão ameaçados pela negligência. Não é pedir muito que seja Portugal a ocupar-se deles; é o nosso legado, é a lembrança de uma gesta heróica, é o símbolo de nossa vocação universalista (mesmo estando esta hoje em perigo). Sejamos orgulhosos e salvemos os padrões dos navegadores.

Game Over

Este é um texto forçosamente nostálgico, porque fala da infância e de recordações trazidas à tona por algo que se afunda. Neste caso, por uma empresa surgida da imaginação de um contabilista (!) portuense nos duros tempos a seguir à II Guerra: a Majora chegou a ser nos seus tempos áureos – início da década de 80 – um quasi-monopólio da diversão em Portugal. Várias gerações passaram horas esquecidas a atirar dados jogando Monopólio, Jogo da Glória, Petroleiros ou dezenas de outros títulos, jogos que tinham sido antecedidos por clássicos mais artesanais como Sabichão ou Pontapé ao Goal.

A Majora chegou a empregar, numa fábrica fervilhante de actividade, 130 pessoas; hoje, com o despedimento dos últimos 30 empregados, o edifício está vazio, esperando o golpe de misericórdia. Inquiridos sobre as razões de uma decadência tão abrupta, quem lá trabalhou aponta “esta crise, que faz as pessoas cortarem no supérfluo, a começar pelos jogos. E além disso os portugueses não têm tradição de jogos de tabuleiro como os outros europeus”.

Já se sabe que tanto a crise como os portugueses têm as costas largas, logo esta explicação é confortável. Mas errónea. Os portugueses gostam de diversão, não têm é culpa se uma empresa não sabe preencher os seus anseios. Acresce que os jogos em geral têm uma elasticidade bastante baixa que, em alguns contextos, chega mesmo a ser positiva; significa isto que quando os consumidores sofrem uma redução no seu rendimento compram mais jogos (e não menos), dado que estão a investir num produto que os fará passar um tempo poupadinho recolhidos em casa, em vez de em bares ou restaurantes. Na verdade a lenta descida aos infernos da Majora começou bem antes de 2008, ano fatídico de explosão da “crise”. A empresa estagnou e viu-se completamente ultrapassada pelas mudanças que o mercado lhe pedia. Enquanto a esmagadora maioria dos consumidores prefere, e isto há mais de 20 anos, jogar em mundos virtuais computadorizados, a companhia insistiu teimosamente em agir como sempre tinha agido: confiando o seu destino a produtos que tinham sido um sucesso infantil há décadas. Nos últimos meses ainda lançou uma aplicação para smartphones – foi demasiado pouco, demasiado tarde.


A comparação com outra empresa familiar de brinquedos, a Lego, é gritante. Esta empresa criada por um carpinteiro dinamarquês nunca se deitou à sombra do sucesso dos seus tijolos de plástico e, atenta à mudança constante no ambiente de negócios, não mais parou de diversificar: o primeiro jogo de computador Lego, por exemplo, foi logo lançado em 1997 e desde aí a marca já produziu nada menos de 46, cobrindo todas as plataformas. O primeiro livro associado surgiu pouco depois, seguido pelo primeiro de 23 filmes usando os produtos da marca (e a estrear em 2014 há o “Filme da Lego”, já em produção), para não falar em seis parques de diversões espalhados pelo mundo. Uma marca valiosíssima apoiada em valores éticos (como a recusa de temas abertamente bélicos) e de obsessão pela excelência: o lema da empresa, adoptado pelo fundador, continua a ser “Mesmo o melhor nunca será suficientemente bom”.

Duas empresas familiares de brinquedos criadas do nada na década de 40, obtendo as duas um sucesso demolidor. E em seguida, caminhos opostos: uma história de sucesso, outra de fracasso. Aprenda o próximo empreendedor com energia as lições da Lego e da Majora, e talvez daqui a uns anos estejamos a falar não de mais uma falência, mas de uma nova marca portuguesa global.

Melhor fora que dentro

“Apanhem Banksy!”, chapou na sua primeira página o New York Post, tablóide sedento de vingança, na semana passada. Está bem, mas quem é Banksy? O problema é que ninguém sabe, e muito menos a polícia. Convenhamos que só pelo nome se torna um pouco mais difícil encontrá-lo, quanto mais apanhá-lo.

Banksy é um artista, ou um activista, ou um grafiteiro, ou apenas uma esperta construção de marketing. Ou então todas estas coisas ao mesmo tempo, ou então nenhuma. Supostamente vem de Bristol, Inglaterra, ninguém conhece o seu aspecto ou verdadeiro nome, e pinta paredes; imagens irónicas, muitas vezes monocromáticas, envolvendo-se com aquilo que as rodeia e apelando à reflexão – e sempre que podem, à subversão. Como o grafito que mostra um macaco de laboratório, supostamente um animal que apenas cumpre o que lhe mandam, envergando um cartaz que diz “Keep it real” – a mesma frase que é quase marca geracional de milhões de adolescentes americanos.

Banksy não gosta do mercado da arte nem dos seus lucros pré-fabricados, baseados em valorações subjectivas. Também não gosta das suas regras, por isso subverte-as: no seu sítio web há uma “loja”, mas tudo o que lá está é grátis. O apreciador de arte pode descarregar a obra do artista e reproduzi-la as vezes que quiser, numa parede, numa t-shirt ou numa caneca de café. Banksy poderia ganhar rios de dinheiro, já que se tornou em fenómeno global; por vezes paredes (inteiras) com os seus grafitos aparecem em leilão sem a sua autorização – pelo menos é essa a história oficial – e pela última obra nesta situação, por exemplo, o comprador pagou um milhão de euros. Em contraste com esta soma, o próprio Banksy montou no sábado uma banquinha em pleno Central Park e começou a vender, disfarçado com um boné e óculos, os seus originais por uns irrisórios 45 euros cada um. Quase ninguém os quis e, ao final do dia, o próprio artista só tinha arrecadado 300 euros.

Banksy adora dismistificar estas hipocrisias paradoxais da arte – já tinha sido essa a intenção ao realizar o seu aborrecido documentário em que glosava a táctica utilizada pelos museus que obrigam os visitantes a passar pela loja de lembranças antes de sair do edifício. Durante todo este mês de Outubro, o artista anda por Nova York a desvendar um novo grafito/obra por dia, num gigantesco jogo do rato e do gato com as autoridades. Chamou a esse projecto “Better Out Than In”, melhor fora que dentro, porque é fora dos vetustos museus e próxima das pessoas, na rua, no chão e nas paredes que a arte (também) deve andar.  Mal aparecem, as pinturas de rua tornam-se um instantâneo sucesso público e uma atracção turística; e como reagiu então o multimilionário que é presidente da câmara da cidade mais cosmopolita e mais artística do mundo a esta boa publicidade a Nova York? 
Pois bem, como um provinciano alcalde da aldeia mais recôndita. “Banksy é um vândalo e o graffiti representa a perda de controlo. Eu defendo as artes, mas acho que há lugares para a arte e lugares sem arte”, disse Bloomberg, provando simultaneamente que Banksy pôs mesmo o dedo na ferida. Bloomberg ainda não entendeu nada. Todos os lugares são lugares para a vida, e a arte, que a imita, está na rua da grande cidade.

Um Picasso no forno

Quadros de grandes artistas são irrepetíveis – e no caso de qualquer obra saída dos pincéis de um punhado de eleitos, pela sua raridade e importância, são também valiosos. E nada mais valioso que um Picasso, o nome que é mais rapidamente associado à genialidade, o homem que alterou toda a História da Arte com apenas um quadro  (“Les Demoiselles de Avignon” – uma representação protocubista de pobres raparigas num bordel da rua de Avignon em Barcelona). Quando a um Picasso adicionamos outros quadros da autoria de sobredotados como Monet, Matisse e Gauguin, chegamos facilmente a um espólio de 100 milhões de euros. Um valor que permite comprar Cristiano Ronaldo, um avião Airbus A320, construir dois hospitais em Portugal, ou mais de 100 mansões (mesmo num mercado inflacionado como o do Luxemburgo).

Tanto dinheiro não foi suficiente para convenver o museu Kunsthal em Amesterdão a instalar alarmes
na exposição temporária que organizava. Isso veio mesmo a calhar para um grupo de amigos precisados de dinheiro: primeiro dirigiram-se, a meio da madrugada, ao museu de História Natural da cidade – mas tiveram dúvidas sobre se seria assim tão fácil, ou lucrativo, revender fósseis de peixes e esqueletos de dinossauro. Seguiram então para o Kunsthal; os quatro ladrões demoraram exactamente três minutos a tirar os quadros das paredes, embrulhá-los e sair. Depois foi meter-se no carro com os quadros e guiar em direcção à Roménia. Estava consumado aquele que foi imediatamente apelidado de  “roubo do século”.

O cérebro da operação, Radu Dogaru, 29 anos, vem de uma pequena aldeia no extremo leste da Roménia, perto da Moldova. São os confins da Europa: 3000 habitantes, a maioria lipovanis (uma cisão da religião ortodoxa russa), e uma miséria da qual só é possível escapar emigrando ou entrando numa vida de crime. Mas Radu, procurado na Roménia por assassínio e tráfego de humanos, ainda está a começar no mundo da arte: nem sabe ao certo quanto valem os quadros que tem nas mãos, e sobretudo não os consegue revender por eles serem tão conhecidos. Acaba por chamar a atenção da polícia. Esta prende quase toda a quadrilha (um membro ainda está fugido) mas não encontra os quadros. Estes estão escondidos na casa de Olga, a mãe de Radu. Olga julga que sem o produto do crime, não há caso contra o seu querido filhinho; empilha o Picasso sobre o Monet, o Matisse do lado a aparar, o Gauguin a fazer peso, atira todos os quadros para dentro do forno onde habitualmente só assa galinhas, e acende os carvões.

A polícia chegou tarde demais à pequena aldeia romena. No forno, já só restavam vestígios de telas com óleo antigo e pregos usados em molduras do século XIX. O nosso património colectivo ficou mais pobre, enquanto a mãe (que nega agora ter queimado os quadros) e o filho Dogaru, bem como os seus cúmplices, arriscam agora 20 anos de prisão. O julgamento reinicia-se a 10 de Setembro e trará a uma história surrealista um epílogo mais concreto – mas a “Cabeça de Arlequim” de Picasso nunca renascerá, qual fénix, das cinzas de um forno romeno.