segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Legalizem-no

Um homem inesperado. Um homem que clama publicamente contra a obsessão desmesurada pelo dinheiro. Alguém que chega ao topo da sua carreira, numa posição de enorme poder e prestígio, e abdica de grande parte das regalias e mesmo do salário a que tem direito. Tudo isto escolhas que são coerentes com toda uma longa vida passada em defesa dos mais oprimidos, muitas vezes com grande sacrifício pessoal, para tentar tornar o seu país da América do Sul num lugar mais justo e menos desigual.

Poderia perfeitamente estar a referir-me ao cardeal Jorge Bergoglio, o argentino que se tornou o Papa Francisco e que, seguindo a filosofia de Francisco de Assis, tem dado provas de uma humildade e simplicidade inesperadas e refrescantes para o sumptuoso cargo. O Papa ousou mesmo, há três semanas, assinar uma análise crítica à persistente desigualdade económica no mundo como seu primeiro documento oficial. O texto contém capítulos intitulados “Não à nova idolatria do dinheiro”, “Não à economia da exclusão” ou ainda “Não à desigualdade que leva à violência”. E não poupa nas palavras em relação ao ponto em que nos encontramos: “Alguns continuam a defender teorias em como um mercado em rédea livre vai inevitavelmente levar a mais justiça e inclusão pelo mundo. Esta opinião, nunca confirmada pelos factos, revela uma confiança ingénua na bondade dos que detêm o poder económico. Entretanto, os excluídos continuam à espera”.

Um texto desassombrado pelo qual o Papa merece todo o respeito. Mas não é apenas Francisco quem quero destacar nesta altura natalícia, em que se celebra o (suposto) nascimento de um filósofo que há dois milénios já alertava para o poder nefasto da desigualdade económica. O primeiro parágrafo refere-se a José Mujica, um político extraordinário por vários motivos.

Mujica é presidente do Uruguai. Mas este idoso pachorrento e mal barbeado, apesar de representar um país com uma economia que está a crescer agradavelmente a uma taxa de 3% ao ano, não vive num luxuoso palácio presidencial, mas sim na sua pequena casa rural com um quarto; não se desloca a alta velocidade numa limusine negra rodeada de motos da polícia, mas sim conduz um velho VW carocha, além de viajar de avião em classe económica; não se queixa de apenas receber 10000 euros de reforma, mas pelo contrário distribui por pobres e necessitados 75% do seu salário; e acaba de anunciar querer adoptar 30 ou 40 crianças, a quem tenciona ensinar as artes de trabalhar a terra.

O desapego material de um líder político é admirável, mas ainda mais relevante são as políticas liberais e progressistas que esse líder vai aplicando. A mais recente (e surpreendente) provém de uma lei que vai regular a produção, venda e consumo de cannabis, uma “experiência” – a modesta descrição do próprio presidente – que vai retirar os lucros dos traficantes, tratar o problema ao mesmo nível do álcool, e libertar a polícia para lidar com crimes mais graves. Simultaneamente, abandona a hipocrisia da proibição total e responsabiliza cada cidadão pelas suas escolhas, em vez de ter o Estado-avózinha a tratar toda a sua população como crianças.

O pequeno Uruguai ouviu os gritos globais de “legalizem-na!” (em relação à marijuana). Mas isso é o menos; o que me apetecia mesmo era dizer: legalizem Mujica nos outros países.

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