terça-feira, 23 de abril de 2013

Excel 2010 para Totós

Uma colecção de livros didáticos de capa amarela procura tornar acessíveis ao comum dos mortais conceitos ou aparelhos complicados explicando-os de uma forma simplificada – uma grande qualidade. A colecção já leva mais de 1800 títulos publicados em inglês (onde se chama “For dummies”) e outras línguas, como francês (“Pour les nuls”) ou português (“Para totós”). Nesta última, aconselho vivamente o “Excel 2010 para Totós”: se alguns decisores públicos o tivessem lido, o mundo poderia ser hoje um lugar melhor para se viver.

Parece ficção ridícula, mas é a nossa realidade: em 2010, dois economistas americanos (Reinhart e Rogoff) publicaram um estudo intitulado “Crescimento em tempo de dívida”. Estudando os dados históricos de 44 países, os economistas analisaram a relação entre a dívida pública e o crescimento económico e chegaram a uma bombástica conclusão: se o Estado estiver razoavelmente alavancado, o crescimento médio do país a cada ano anda entre os 3 e os 4%. Mas se a dívida pública atingir ou ultrapassar o aparentemente fatídico nível de 90% do PIB, a economia estagna, e o crescimento médio é apenas de 0,1%. A alta dívida pública provoca a recessão.

Num mundo em que os bons e velhos modelos económicos parecem desadequados e inúteis (e apenas parecem, porque na realidade têm previsto e explicado muito bem as agruras por que passamos, apenas seria necessário saber ler...), uma análise pouco convencional, com um resultado extremo e que tão bem aproveita os ventos uivantes da austeridade cega só poderia estar destinada ao sucesso mediático. Nos últimos três anos, o tal papelzinho foi citado como justificação por todos os arautos do neoclassicismo económico no poder: de Schäuble a Rehn, de Osborne a Ryan, de Gaspar a Carlos Costa... ou se preferirem, o BCE, a Comissão Europeia, o FMI, os governos inglês, alemão, neerlandês, português, o Banco de Portugal, etc., todos juntos, em uníssono, a clamar pelos cortes e pela austeridade redentora, porque “Reinhart e Rogoff provaram que se devermos mais de 90% não crescemos”.

Na semana passada, o estudo foi desacreditado, mais, foi demolido por outros economistas (da Universidade de Massachusetts) que lhe apontaram três erros fatais: primeiro, os dados apontam naturalmente para uma conclusão invertida, já que é a recessão (que provoca menor receita e maior despesa ao Estado) que provoca o aumento da dívida, e não o contrário; segundo, não tinham sido inexplicavelmente incluídos países com altos crescimento e dívida (que contrariavam portanto a conclusão que se desejava atingir); e em terceiro – quase como o toque final de tragicomédia – os dois economistas tinham-se enganado ao inserir os dados na folha de cálculo Excel e excluíram vários países do resultado final.

A austeridade europeia, filha de mentes brilhantes que não conseguem criar uma folha Excel correcta, vai fazendo o seu caminho; entre políticos demagogos a soldo de banqueiros criminosos que se escondem atrás de economistas incompententes, não pode ser uma enorme surpresa constatar que hoje, mais de cinco anos depois do explodir da crise, estamos pior em quase todos os aspectos, e sem luz ao fundo do túnel. Ou talvez haja uma: a maré está finalmente a mudar, agora que já não é possível esconder o falhanço estrondoso da “receita única”. Atenção agora aos cata-ventos que, de galhardos defensores dos cortes e do torniquete, vão de repente só falar em “crescimento” e “incentivo”. O português que preside à Comissão Europeia deu hoje o tiro de partida ao fazer um fraco e velado mea culpa.

terça-feira, 16 de abril de 2013

O regresso do medo



Estamos ainda nas primeiras horas de rescaldo após os atentados terroristas na maratona de Boston. Ainda não sabemos exactamente o que se passou – em casos assim, o mais provável é que nunca venhamos a saber ao certo – nem quem são, desta feita, os assassinos responsáveis por tais actos. Mas conhecemos a brutalidade dos factos incontornáveis: dois engenhos explosivos detonados no espaço de doze segundos entre os espectadores que assistiam à chegada da corrida (estamos a falar de uma das seis grandes maratonas do mundo, capaz de atrair 500 000 espectadores ao longo de todo o percurso); mais duas bombas preparadas para explodir que, por uma razão ou outra, não detonaram; pelo menos três pessoas perderam a vida, uma delas um menino de 8 anos; pelo menos 150 pessoas ficaram feridas, algumas em estado crítico, talvez 14 com pernas amputadas – já que as bombas estavam no chão quando explodiram, e estavam concebidas para enviarem estilhaços em redor.

As imagens de poeira e sangue no asfalto, a câmara de vídeo em movimento frenético, os gritos de pânico, e eis que a nossa memória é imediatamente reenviada para a angústia de 2001 em Nova York, 2004 em Madrid ou 2005 em Londres. A escala de terror destes atentados é completamente distinta da desta (terrível) segunda-feira, mas o poder hipnótico do choque e do horror, ou a dor causada pela morte de uma criança, não é menor apenas porque os engenhos parecem ter sido fabricados em casa – aliás este indício pode apontar para a culpa de algum fanático extremista de uma milícia americana (assim foi em Oklahoma, onde Timothy McVeigh fez explodir um edifício governamental faz esta sexta-feira 18 anos); outras pistas no mesmo sentido incluem o facto de as bombas em Boston terem explodido no feriado do “Dia dos Patriotas” e ninguém ter ainda reinvindicado o atentado, o que também aponta para a “domestic connection”. Mas também é possível que sejam outros fanáticos, como um grupo de radicais islâmicos, os que executaram este crime hediondo – o modus operandi é o mesmo que é utilizado, em base semanal, no Paquistão, Iraque ou Afeganistão perante a indiferença do resto do mundo.

O fumo provocado pela primeira explosão envolve as bandeiras de todo o mundo que bordejam a estrada logo antes da meta da maratona. Em poucos segundos, é como se as coloridas bandeiras se apagassem, impotentes perante as crescentes trevas – aquele fumo é sinistro, e provavelmente não é uma coincidência que a bomba tenha sido colocada precisamente ali. As bombas de Boston tinham-nos a todos como alvo. Não apenas os nossos corpos mas também os nossos espíritos sobressaltados, e com eles a sociedade ocidental que construímos – a nossa forma de vida, as nossas escolhas, a civilização que vamos construindo. A intenção é quebrar-nos, obrigar-nos a ter medo, forçar-nos a viver permanentemente limitados. No meio de cada multidão, a percepção do risco; em vez de usufruir de um grande evento desportivo, o receio que nos leva a ficar em casa; em vez de uma manifestação, parte essencial de uma sociedade democrática, o medo que cinicamente nos atira para o sofá e faz renegar a intervenção. Depois virá um segundo nível de pavor, quando um simples comboio ou autocarro passam a ser vistos como alvos ambulantes... enquanto isso, as nossas liberdades fundamentais são cada vez mais cerceadas e a cultura da vigilância permanente permeia todos os aspectos da nossa vida.

Aquelas bandeiras representando o mundo todo não caíram. Nem uma. Vacilaram, mas depois seguiram impávidas, tremulando ao vento.

Por quem os sinos dobram

A mediática morte de uma pessoa no Reino Unido, ocorrida nestes últimos dias, afectou-me e fez-me reflectir. É um produto directo dos tempos perigosos em que vivemos.

O homem que deixou de ter amanhã chamava-se Lee Halpin e tinha 26 anos. Era jornalista, não um daqueles aburguesados que sentados à sua secretária defendem interesses ocultos e inconfessáveis – uma subespécie em franca proliferação entre a classe –, mas sim um jovem idealista que estava a começar e queria criar um impacto, fazer a diferença, melhorar o mundo. Tal foi-lhe fatal, e isso também é chocante.

Lee, locutor de rádio e criador de uma publicação dedicada às artes na sua cidade do Norte de Inglaterra, queria fazer jornalismo de investigação. Para isso candidatou-se a uma vaga no Channel 4 que pedia, entre outras coisas, uma demonstração de “jornalismo sem medos”. E Lee tinha um projecto corajoso: fazer uma reportagem sobre os sem-abrigo de Newcastle tornando- se um deles. Por uma semana, o rapaz de bom coração oriundo de uma família da classe média viveria nas ruas, sem dinheiro nem comida, vagueando sem destino certo, metendo-se na pele de um sem-abrigo. Há uma semana, enviou a sua candidatura ao Channel 4, pediu emprestado um telemóvel antigo e um saco-cama, gravou um vídeo a agradecer o apoio da família e dos amigos, e saiu de casa.

Só durou três dias. Na quarta de manhã, o seu corpo sem vida, enregelado, foi encontrado num prédio entaipado de uma zona problemática da cidade. Nessa noite, durante uma das semanas mais frias do ano, o termómetro tinha atingido os -4 ºC; por outro lado, foram presos dois dealers como suspeitos do possível crime. (Ainda) não sabemos o que se passou, mas o resultado é inelutável: uma morte estúpida. E existe nela uma macabra ligação com outro falecimento recente de um súbdito britânico, a antiga primeira-ministra Margaret Thatcher.

Thatcher teve um efeito arrasador na arquitectura económica do Reino Unido e, graças à aliança ideológica com o então presidente americano Reagan, também na do mundo inteiro. A “Revolução Conservadora” personificada pelos dois estadistas criou de certa forma o mundo ocidental em que vivemos hoje, esse mundo que colapsa: em 1987 na “segunda-feira negra”, no verão de 2008 com violência, e todos os dias, pouco a pouco, à nossa volta.

O legado de Thatcher é pesadíssimo; apesar de a propaganda oficial o tentar esconder, o desempenho económico do Reino Unido durante os anos do seu reinado classifica-se entre o sofrível (com crescimento económico pouco significativo e muitos anos recessivos) e o desastroso, com uma explosão do desemprego (que passou de um milhão para mais de três milhões de pessoas) e uma descida radical do investimento público. A acompanhar tudo isto, a destruição de fileiras industriais inteiras, compensadas com a aposta nos serviços financeiros, atirou para a decadência partes inteiras do país em benefício de Londres. Entre as zonas mais afectadas está Newcastle: a antigamente orgulhosa cidade nortenha nunca se reergueu. Hoje, com o agravar da crise no país liderado por David Cameron – um “filho espiritual” de Thatcher – o número de sem-abrigo na cidade disparou em 31% só no último inverno, com tendência para piorar. Era para esse fenómeno que Lee Halpin queria chamar a sua atenção com a sua reportagem sem medo. Acabou por fazê-lo, da pior maneira possível.

A rainha alemã vai nua

Até há alguns anos atrás, os Conselhos Europeus eram verdadeiras cimeiras de geometria variável onde os grupos de interesses formados entre diferentes países mudavam consoante o assunto em questão, havia um peso especial para “o motor franco-alemão” que no fundo propulsionava a Europa, e os objectivos comunitários eram mais que palavras vãs para encher declarações vazias de conteúdo.

Tudo isso mudou em relativamente pouco tempo. Hoje, o que importa realmente é saber o que pensa a chanceler Merkel (e a sua clique) sobre determinado assunto, pois essa será a solução adoptada. O motor franco-alemão gripou, enredado na pouca fiabilidade do pistão francês, e metade dos membros da União sentem-se cada vez mais desconfortáveis por ver um clube solidário ser substituído por outro em que um membro distribui “diktats” a seu bel-prazer.

Apesar da resistência – visível nas ruas de Atenas e na opinião escrita publicada um pouco por toda a União – é evidente que a Europa está rendida à liderança alemã, e que esta cada vez tem mais dificuldade em disfarçar que por trás da preocupação pelo saneamento das finanças de vários países está na realidade uma luta pelo poder puro e duro. A Alemanha actual está decidida a aproveitar as vulnerabilidades alheias para decidir, com crescente prepotência, pelos seus antigos parceiros, agora transformados em subalternos incómodos (e amiúde ridicularizados em programas de tv ou conversas de café). A versão revista e actualizada do “A Alemanha acima de todos” (a parte do hino do país que deixou de ser utilizada a partir de 1945) foi a opção tomada pela chanceler Merkel no verão de 2011, quando o seu assessor para os assuntos europeus lhe apresentou um relatório que basicamente constatava o impronunciável: todos os assuntos que caem na esfera de competências da União Europeia, e são regidos por Bruxelas ou Frankfurt, funcionam relativamente bem; enquanto que aquilo que é regido a nível dos diferentes Estados-membros, como a política económica ou a supervisão bancária, estão em total desarranjo. Logo, seria lógico aumentar os poderes da UE. Mas Merkel ignorou o aviso, e ao invés ressuscitou a Europa das Nações – o que levou o seu histórico antecessor Helmut Kohl, ainda por cima membro do mesmo partido, a exclamar angustiado “Ela está a destruir a minha Europa!”. Outro antigo chanceler, o social-democrata Helmut Schmidt, do alto da autoridade de quem viveu a II Guerra Mundial, acrescentou recentemente: “Merkel comporta-se como o centro da Europa, para crescente exaspero dos nossos vizinhos e parceiros, e ajudando a criar uma visão nacionalista dentro da Alemanha”.

O grande problema de tudo isto? É que esta liderança alemã não é eticamente defensável, não é ideologicamente desejável, e não é competente. Não é ética porque é arrogante (o ministro das Finanças, Schäuble, afirma que os outros europeus têm é “inveja” da Alemanha) e porque nunca admitiu retirar, como retira, grandes benefícios da “crise” (10 mil milhões de euros poupados em juros só no ano passado, por exemplo); tem uma ideologia dogmática de austeridade contra-cíclica que agrava a recessão transformando-a em depressão; e definitivamente não é competente – se os últimos cinco anos de crise agravada não fossem suficientes para o atestar, a tremenda, desnecessária e altamente destrutiva confusão à volta de Chipre retira toda e qualquer margem de dúvida. A Europa não está em boas mãos. Mas ainda vai a tempo de arrepiar caminho.

Desigualdade

“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da ignorância, foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a temporada da Luz, foi a temporada das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tudo estava diante de nós, nada estava diante de nós, íamos todos directos para o Paraíso, íamos todos directos no outro sentido, era um período tão parecido com o presente...”.

Poucos livros em toda a Literatura mundial terão um início tão conhecido como “História de Duas Cidades”, escrito no longínquo ano de 1859; mesmo muitas pessoas que não conhecem o título do livro, ou nunca leram Dickens, reconhecem com um frémito as seminais linhas de abertura do romance – e isso é ainda mais verdade no caso da versão original inglesa: “It was the best of times, it was the worst of times...”.

O livro é um clássico intemporal – apesar de decorrer durante a Revolução Francesa, que continua a ser “um período tão parecido com o presente”, pela sua dualidade quase esquizofrénica, pela radicalidade e incerteza dos tempos em que vivemos. Tempos desiguais, de facto. E a desigualdade transporta as sementes e colhe as espigas das crises que provoca.

Nos Estados Unidos, de 2009 a 2011 – os anos da grande crise e também do início da recuperação, já que os EUA não seguem à risca a receita suicida da austeridade – os rendimentos médios nominais de 99% da população desceram. Mas os rendimentos dos 1% que já tinham os maiores rendimentos aumentaram em 11,4%, um pouco em linha com os lucros das grandes corporações americanas e o maior índice da bolsa da Nova York, ambos actualmente nos seus máximos históricos. Como também o está a taxa de desemprego, que teima em não descer – o que terá certamente algo a ver com a facto de não haver muitas empresas a contratar.

Há um ano, a OCDE apresentou um relatório curioso: “Divididos nos mantemos”. Aí se apresentava um quadro absolutamente negro do aumento da desigualdade, em duas décadas, em todo o mundo considerado desenvolvido (honrosa excepção feita ao Brasil), e como isso estava a criar problemas em todas as sociedades. Voltemos aos EUA: a desigualdade de rendimentos entre americanos só em 1928 tinha sido tão alta como em 2007. Ou seja, precisamente os dois anos anteriores às duas maiores crises financeiras da civilização moderna.

Saltemos para Portugal, a terra da desigualdade. O país da OCDE onde os indicadores de desequilíbrio (entre a pequena percentagem que mais rendimentos obtém e a maioria silenciosa que se sente mais e mais cercada) são dos mais elevados, logo abaixo da Turquia, do Chile e do México. E dos EUA, cuja forma de organização da sociedade copiamos, pelo menos nos aspectos mais nefastos. Como na redução sem limites dos custos do trabalho ou de políticas económicas redistributivas.

Estas constatações não se tratam de um ataque a quem mais ganha, só que a desigualdade queima: destrói a confiança, as liberdades, a prosperidade da sociedade. E também nos vai corrompendo moralmente, até que a indignação por um mundo cada vez menos bom se reduza a um espasmo envergonhado.