quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Quem tem medo da democracia?

“Quem tem medo do lobo mau, do lobo mau?” cantam os Três Porquinhos da Disney num filme de 1933 (este ano representa também uma coincidência – mas já lá vamos). Apetece dedicar a música do filme ao Syriza, o partido de verdadeira esquerda que acaba de vencer as eleições no país-berço da democracia. O coro de ameaças e alarmismos da Europa austeritária (e autoritária) sobre o suposto perigo que um partido anti-troika consistiria se chegasse ao governo juntou todos os nomes habituais, como Merkel, Cameron e Hollande, a outros como Juncker – cuja própria posição de presidente da Comissão Europeia, o órgão que defende o interesse comunitário e assegura a igualdade de tratamento de todos os Estados, o aconselharia a evitar imiscuir-se na campanha eleitoral afirmando que “preferia ver caras conhecidas” no governo grego. “Cuidado com os extremismos”, disse o luxemburguês na Grécia apenas um mês antes do voto.

Só que, talvez ajudado por esses mesmos avisos, o lobo Syriza ganhou mesmo, finalmente. Escrevo “finalmente” por dois motivos: porque esta vitória é importante; e porque chega com grande atraso. Sobre o atraso, já falei várias vezes aqui – a crise “explodiu” em 2008 e a resposta europeia foi sempre a errada. A Grécia, em particular, foi escolhida para servir de exemplo – e é agora um símbolo doloroso do falhanço total das políticas autoderrotistas. Constituiu-se à pressa um sindicato de credores que exigiram condições humilhantes ao país, delineadas no famoso memorando de Maio de 2010 que ficará para sempre como um tratado de fantasia económica, um embuste épico que se travestia de “realista” e “responsável”. Prometia-se que, seguindo a receita “sem alternativa” de punições e cortes selvagens, a Grécia só sofreria uma ligeira contracção em 2011 para voltar ao crescimento já em 2012; e que o desemprego, sim, subiria até aos 15% em 2012 mas desceria rapidamente depois disso.

A realidade foi (é) inevitavelmente outra. A Grécia desceu ao Hades, numa depressão económica ao nível dos anos 30. Tal também se traduz em números, embora estes não cheguem para dimensionar o pesadelo: cinco anos de recessão em que o país perdeu um quarto da sua riqueza; 28% de taxa de desemprego, que chega a 60% no desemprego jovem; milhões de pessoas sem acesso a cuidados de saúde. A economia parou de cair, mas continua estagnada, e sem perspectivas de recuperação num futuro razoável. Ah, e a dívida tornou-se muito maior, naturalmente impagável.

Aquando da Grande Depressão, Roosevelt e Keynes iniciaram a recuperação ao fim de quatro anos – ou seja, no tal ano de 1933. Grosso modo, foi o mesmo tempo que Obama levou a lançar o seu programa de estímulos que faz com que os EUA já olhem a crise pelo retrovisor. Mas na Europa já passaram sete anos, e continuamos a cavar o buraco mais fundo. Independentemente dos méritos que o Syriza venha a ter enquanto governo – provavelmente poucos –, a vitória democrática (sublinhe-se) de uma solução alternativa e, isso sim, mais realista é importante pelo que pode vir a significar para o rumo económico de um continente que caminha para uma “década perdida”. Há muito que era necessário renovar o ar bafiento que se vive na nossa Europa; os gregos acabam de abrir uma janela, resta aos espanhóis e aos portugueses abrirem agora mais portas.

Jornalismo, descansa em paz

"Se as tuas fotos não ficaram boas, é porque não estavas suficientemente perto", disse uma vez o grande Robert Capa, talvez o melhor repórter de guerra de sempre. A sua foto mais famosa foi tirada logo na sua primeira missão, aos 22 anos, no início da guerra civil espanhola, e representa um soldado anarquista que tomba, ferido mortalmente por uma bala traiçoeira.

Ironicamente, as investigações mais recentes parecem indicar que esta foto, ícone da brutalidade das tropas franquistas, foi fabricada. O debate é tão velho como apaixonado: se não documentar uma morte "real", a fotografia deixa de representar os horrores da guerra? Sabendo que a foto ultrapassou em muito as fronteiras do jornalismo e se tornou “arte”, e dado que a arte imita a vida, a foto do “Soldado caído” é aceitável e importante, da mesma forma que a “Guernica” de Picasso o é. Se efectivamente tiver sido fabricada, no entanto, está muito mais próxima da simples propaganda do que do jornalismo.

O Jornalismo, com letra maiúscula, foi outra das vítimas de Paris. A impressionante manifestação do dia 11 de Janeiro levou às ruas dois, três milhões de pessoas, cidadãos anónimos que, de forma muitas vezes emocionada, quiseram gritar bem alto que não têm medo, que os valores republicanos prevalecerão, que a Liberdade não é negociável.
Os jornais do mundo todo – e neste caso não se trata de uma força de expressão, foram mesmo os jornais do mundo todo – destacaram a impressionante demonstração de convicções e unidade vindas da Cidade-Luz. E papaguearam quase sem excepções: a gigantesca manif “tinha sido liderada pelos políticos”, com Hollande, Merkel, Juncker, Renzi na linha da frente, ladeados por outros nomes ainda menos recomendáveis como Netanyahu, Lavrov ou Davutoglu, e perseguidos por um Sarkozy que ganhou o seu lugar na primeira fila à custa de cotoveladas. Esse guião era corroborado por fotos, tiradas sempre de longe, de frente e com uma objectiva de longa distância focal que “esmaga” a perspectiva, da autoria dos mais conceituados foto-repórteres e para os mais credíveis jornais e agências noticiosas. Fotos onde políticos impecavelmente vestidos, entrelaçados e de ar compungido, estão na linha da frente de uma multidão emocionada.

Essas fotos são um embuste. Uma manipulação. Uma infâmia. Sabemo-lo porque alguém, anonimamente, furou o círculo da mentira e fez chegar ao Le Monde uma outra foto, tirada de um ângulo mais elevado, que mostra uma realidade diferente: a rua vazia, e vedada, bem longe da verdadeira manifestação na praça da República, onde os políticos se organizaram para a farsa, caminhando por 200 metros e acenando para o vazio, posando para fotos hipócritas que lhes darão muitos votos nas próximas eleições.

Os líderes não se juntaram aos seus cidadãos porque tinham medo, e entre uma demonstração de coragem e unidade ou salvar a própria pele, preferiram a segunda. Mas isso já nem espanta ninguém; a verdadeira notícia daquelas fotos é que o jornalismo de referência desistiu da missão de informar e, ao invés de nos procurar relatar a realidade, decide recriá-la ao serviço de quem manda; dócil e domesticado, uma voz do dono que presta fretes aos poderes fátuos, políticos ou económicos. Uma voz em que não podemos mais acreditar (alguma vez pudemos?). O Jornalismo morreu, viva a propaganda.

O ovo da serpente

"Posso discordar completamente do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo". As famosas palavras atribuídas a Voltaire (na verdade, foram escritas pelo seu biógrafo como um exemplo do seu pensamento) encerram a essência da sociedade que construímos na Europa ao longo dos séculos, uma sociedade aberta, tolerante, participativa e democrática. E livre. Sobretudo livre. Na qual ninguém é perseguido por motivos religiosos ou opiniões controversas.

É essa sociedade aberta, pesadelo de todos os fanáticos cujo negócio é manipular cérebros, que está a ser atacada - e por arrasto, todos nós que a vivemos. O horror de Paris representa um ponto de viragem, em que a maioria entre nós se apercebe finalmente que 1. há um problema terrível a resolver e 2. a estratégia do apaziguamento não está a resultar.

O ataque ao Charlie Hebdo configura um capítulo brutal da ofensiva de que somos todos alvos. Mas nem por sombras o primeiro - só nos últimos dois anos e meio, a Europa sofreu ataques de terroristas islâmicos radicais em França, Alemanha, Inglaterra e Bélgica, totalizando pelo menos 26 mortos e 35 feridos. Muitos outros foram evitados e outros ainda, como os atropelamentos que precederam em alguns dias o ataque ao jornal, são atribuídos a "pessoas isoladas com distúrbios mentais", para evitar o alarme da população perante agressões coordenadas.


Enterrados (mais) mortos e cuidados os feridos, é preciso parar para pensar. Porque somos visados pelo fanatismo? E acima de tudo, como responder? O presidente da câmara de Oslo, na ressaca dos atentados de um fanático neonazi norueguês em 2011, ofereceu algo admirável: "vamos punir o responsável", disse. "E vamos puni-lo com mais generosidade, mais tolerância e mais democracia".

Esse é o caminho dos fortes, mas não sejamos utópicos: não basta. Tal como o ovo da serpente do nazismo chocou porque as democracias ocidentais tentaram apaziguar Hitler com concessões - o que foi interpretado pelo ditador como prova de fraqueza e podridão -, também o islamismo radical, que assustadoramente tem tantos pontos em comum com o nacional-socialismo, se alimenta da apatia e permissividade, reais ou imaginadas, do nosso liberalismo.

Dos modos líderes políticos esperamos muito mais que palhaçadas como aquela a que eles se prestaram domingo em Paris (marcharam 200 metros para a fotografia, confortavelmente distantes da verdadeira e comovente manifestação de milhões de cidadãos). Esperamos inteligência, confiança e firmeza de convicções, além de protecção. Esperamos espionagem, justiça, inclusive a prisão ou deportação de criminosos. Esperamos o derrube do sinistro "Estado Islâmico" por todos os meios legítimos. Para que a serpente do fascismo não renasça.

2015 já começou mal


2015 começou mal. E tudo por causa de um homem, Ulrich Beck, cujo coração falhou logo no dia 1 de Janeiro. Beck era um pensador, um sociólogo alemão que representava uma das poucas vozes lúcidas que nos restavam, um respeitado professor - talvez o investigador mais citado da actualidade - que na suas aulas, palestras ou entrevistas sempre se distinguiu pelas suas ideias lúcidas e positivas, uma influência e uma inspiração para quem com ele contactava.

Beck escreveu um livro marcante em 1986, "Sociedade de Risco", traduzido para 37 línguas (em português somente do Brasil). Nele argumenta que a tecnologia e a globalização estão a destruir a estrutura da sociedade industrial que conhecemos, baseada nas famílias e no emprego, criando riscos novos como a radioactividade ou o terrorismo que passam a estar no centro das preocupações individuais - mas já não societais - de cada um de nós.

Actualmente o seu interesse principal estava na Europa (e por isso foi convidado a falar em Portugal há apenas 8 meses), mais precisamente na construção europeia que considerava algo de simultaneamente lógico e necessário para lidar com a força centrífuga da globalização, regulando-a. O alemão, europeísta convicto, alertou sempre para os perigos de uma "Europa alemã", à qual considerava até que já chegámos, por oposição à desejável "Alemanha europeia". Era um enorme crítico das hesitações e imposições da chanceler Merkel (chamada corrosivamente de "Merkiavelli"), a quem acusava de estar a destruir a Europa em nome de uma descarada tomada de poder. No seu último e essencial livro, de 2013, sublinha que a União corre o risco de evoluir para uma Europa feudal, onde os mais poderosos votam sob a égide da Alemanha e onde os outros se submetem. Uma Europa impossível, "onde não vale a pena viver".

E tinha ainda muito para dizer-nos quanto à possibilidade, que considerava desastrosa, de algum país sair do euro, fantasma que por estes dias volta a assombrar a Grécia. Foi neste contexto turbulento que Beck morreu, deixando o campo do bom senso ainda mais vazio. Para a Europa e não só, não é um bom augúrio para o início de um novo ano.

Jóia da coroa

Uma expedição portuguesa - a segunda naquela zona, depois de Cabral se ter desviado "ligeiramente" da sua rota para a Índia e encontrado novas terras a Ocidente, a que chamou da Vera Cruz - desceu ao longo da costa então coberta pela luxuriante mata atlântica até desembocar numa baía tão extensa que poderia ter sido criada pela foz de um enorme rio. Estava-se no dia de Ano Novo do ano da graça de 1502, ou seja em janeiro, o mês mais sufocante por alturas do trópico de Capricórnio. Gaspar de Lemos, o capitão da expedição, socorreu-se da cândida falta de imaginação usada para preencher tantos novos locais para a cartografia. Tinha sido avistado um grande rio durante o mês de janeiro, logo assim ficou crismado para todo o sempre - Rio de Janeiro.

Não há qualquer rio que desague na baía da Guanabara, mas ao contrário da história corrente, os exploradores não cometeram um erro geográfico básico: na altura não existiam diferentes definições para os diversos tipos de corpos de água, pelo que a baía foi (às regras da época) correctamente identificada. E em seguida esquecida, pois o dinheiro que havia para ser ganho naquela novíssima parte do expansionista império português estava mais a norte, em Salvador, ou nas parcas oportunidades proporcionadas por entrepostos ao longo da costa. Só uma ameaça externa reavivou o interesse pela área: os franceses, desejosos de abocanhar algum naco de riquezas coloniais, aliaram-se aos índios tupinambás contra os portugueses e estabeleceram na baía a sua própria colónia, a que chamaram, com eternas e típicas ilusões de grandeza, "la France Antarctique".

Os portugueses, naqueles tempos, reagiam. E fizeram-no aliando-se a uma tribo rival, os temiminós, que auxiliaram o explorador Estácio de Sá a destruir a fortaleza francesa em 1560. Estácio viria a fundar formalmente a "Colónia de São Sebastião do Rio de Janeiro" a 1 de Março de 1565 - a data que o Rio actual, megalópolis com 6,5 milhões de habitantes e segunda maior urbe de língua portuguesa no mundo, quer comemorar em 2015 (450 anos). A mítica avenida Atlântica, em Copacabana, ostenta orgulhosamente todas as diferentes bandeiras que a cidade já viu, desde a cruz gamada sobre fundo branco das caravelas até à verde do Império Brasileiro de D. Pedro II, o imperador relutante. Tudo entre os milhares de cores das festas de réveillon, quando a cidade explode de alegria, tantos séculos depois daquele 1.º de Janeiro.

O Rio é algo de especial, um aglomerado global que é simultaneamente uma cidade genial - com tudo o que isso implica de loucura. Mas sendo criação de muitos e pertença de todos, a cidade é inevitavelmente motivo de orgulho, pois é em enorme parte uma invenção portuguesa. Desde o comerciante Cosme Velho, que deu nome à rua que leva ao Cristo Redentor, até ao rei que fugindo de Napoleão fez da cidade capital do Império (única vez da História em que um império europeu esteve baseado fora da Europa), passando pelos 1,5 milhões de portugueses que para ali emigraram ao longo do século XX, a cidade é nossa História mas também presente. E para tantos jovens cérebros portugueses sem oportunidades no seu país e chegados nos últimos anos à Barra da Tijuca ou Ipanema, é previsivelmente o futuro.

Trégua de Natal

O vilarejo belga de Ploegsteert voltou esta semana a ver os pesados uniformes caqui do exército britânico e os lúgubres uniformes cinzentos do exército alemão. O pretexto foi a inauguração de um monumento ao jogo de futebol realizado entre soldados dos dois exércitos que constituiu uma espécie de ponto culminante da célebre “trégua de Natal” de 1914, quando a Grande Guerra parou espontaneamente.

A loucura tinha começado em Agosto. E alguns tinham embarcado em direcção à frente convencidos que aquela carnificina sem sentido estaria terminada a tempo de poderem passar o Natal em casa. No entanto, chegado Dezembro, qualquer soldado enterrado nas trincheiras ensopadas já sabia que do outro lado estavam outros homens que partilhavam da mesma miséria interminável.

Na noite de Consoada ouviu-se um cântico de Natal. O outro lado respondeu com outro. Em vários pontos da linha da frente, soldados alemães desejaram – em inglês – “Merry Christmas” àqueles que até aí tinham tentado matar, e vice-versa. Pequenos grupos encontraram-se na terra de ninguém para se cumprimentar, trocar tabaco, comparar experiências. Dar um rosto ao inimigo. E também cumprir a macabra tarefa de resgatar os cadáveres dos camaradas caídos no campo de batalha.


Todos tinham consciência do perigo mortal que corriam. Não era apenas a possibilidade bem real de tudo não passar de uma pérfida armadilha e a qualquer momento o inimigo poder disparar à traição; era também a certeza de que os oficiais superiores, desde as suas posições confortáveis a uma distância segura da linha da frente, continuavam a acirrar os ânimos e proibir terminantemente a confraternização com o inimigo – equiparada a traição e passível de ser punida com tribunal marcial e fuzilamento. Aqueles homens a quem já tinha sido tirada a dignidade tornavam-se pouco a pouco em máquinas de matar animalescas que viviam enterradas na lama. A única opção parecia ser a de matar para não, e até, morrer.

E no entanto eles desafiaram as ordens e o medo. 

Em dois ou três locais, incluindo o campo lamacento em St Yvon onde está agora uma estátua, aconteceu o impensável. No dia de Natal, os regimentos trocaram as armas por uma bola de futebol (provavelmente seria apenas uma “bola” feita de trapos) para darem a este grande desporto uma das suas histórias mais comoventes e duradouras. O diário de um soldado alemão afirma que o seu lado venceu por 3-2; não temos provas suficientes para ter a certeza. Mas afinal, em amigáveis o resultado é o que menos importa.

No dia 26 recomeçou a matança. Imaginem quão difícil deve ter sido a estes homens ter pegado nas espingardas e recomeçar a disparar contra aqueles com quem tinham acabado de comemorar o Natal… mas a partir daí não houve retorno. Em 1915 o ressentimento e o ódio já tinham subido para níveis incompatíveis com tudo que se assemelhasse à normalidade. A trégua de 25 de Dezembro de 1914 ficará sempre como um momento único em que o humanismo venceu por instantes a barbárie.

Milagres de Natal? Só nos filmes

Natal não seria Natal sem a oferta específica de filmes que se adequam à quadra. Em Dezembro, as programações das tv e cinemas intensificam a sua oferta de histórias redentoras cheias de animação, heróis e efeitos especiais; por exemplo filmes da série Harry Potter, Madagáscar ou Shrek são incontornáveis (já o meu lado romântico inclina-se mais para clássicos como “Casablanca” ou “Do céu caiu uma estrela”, de Frank Capra).

Na Hungria não é diferente, e como tal, na véspera de Natal de 2009, um húngaro senta a sua filha Lola ao colo e ambos preparam-se para assistir a “O Pequeno Stuart Little”, uma comédia sobre um ratinho branco que é adoptado por uma média família americana. O filme é divertido e Gergely Barki, um investigador na Galeria Nacional, disfruta dos pacíficos momentos em família. Mas de repente dá um tal salto no sofá que quase atira a criança ao chão: no ecrã acaba de vislumbrar um quadro perdido há mais de 90 anos. Está ali, no filme, ao fundo da sala de estar, logo atrás do ratinho branco e dos actores Hugh Laurie e Geena Davis! Um quadro que se pensava destruído e do qual o investigador só conhecia uma foto a preto e branco tirada em 1928…


Gergely foi comprar o filme assim que pôde, para comprovar se os seus olhos não alucinavam. Quando percebeu que o quadro no filme era mesmo “Mulher Adormecida com Vaso Negro”, de Robert Bereny (um pintor vanguardista dos anos 1920 na esteira de Kandinsky ou Fernand Léger), o investigador desatou a escrever emails para todos os que pudessem estar relacionados com o filme: o estúdio, a Sony Pictures, a Columbia Pictures, até os actores. Sempre sem resposta.

Até que, dois anos mais tarde, o desejado email aterra na sua caixa de correio: a cenógrafa do filme responde: “sim, tenho o quadro desaparecido em minha casa”. A reconstituição do circuito do quadro não resolveu todo o mistério, apenas os últimos passos: comprado pela cenógrafa numa loja de antiguidades da Califórnia, onde tinha chegado vendido por um homem que o tinha encontrado – custou-lhe 32 euros – numa venda de caridade católica, coincidência que contribui para pintar o curioso quadro de milagre de Natal. E agora, à laia de epílogo, o quadro foi no sábado leiloado em Budapeste (por 250 mil euros). Mas o porquê de ter desaparecido por quase um século, isso nunca saberemos.

No tumulto do século XX europeu, repleto de guerras, revoluções e extremismos, perdeu-se muito – incluindo incontáveis objectos preciosos. Tal como o elegante “Mulher Adormecida com Vaso Negro”, muitas outras obras-primas estão desaparecidas para sempre, espalhadas pelo mundo. Por vezes aparecem como filão, o que aconteceu num apartamento pertencente a um velhote alemão no ano passado; outras vezes, é precisa uma improvável combinação de um filme de Natal, um ratinho branco e um pai babado com olhos de lince.

Devolvam o nosso dinheiro

A explosão global do escândalo LuxLeaks, a 6 de Novembro – meros 5 dias após o início de funções de Jean-Claude Juncker – manietou seriamente a suposta renovada dinâmica que a nova Comissão Europeia se propunha imprimir, logo desde o início, ao projecto europeu. Nesse dia, Juncker faltou à cerimónia pública que tinha prevista a sua presença, e desde aí tem gerido as suas aparições com parcimónia e cuidado. Mas a moção de censura da extrema-direita europeia acabou por funcionar a favor do luxemburguês, ao permitir-lhe emergir mais forte depois de um voto de respaldo ainda mais significativo do que aquando da sua eleição original pelo mesmo Parlamento Europeu.
 
Mas o espectro LuxLeaks é grande, e promete continuar a assombrar a Europa. Os holofotes incidiram repentinamente sobre os negócios obscuros – “legais”, mas obscuros – que a administração tributária do pequeno Grão-Ducado celebra com milhares de multinacionais de forma a que estas consigam escapar ao pagamento dos seus impostos devidos nos países onde efectivamente conduzem os seus negócios e obtêm as suas receitas, apenas deixando no Luxemburgo um montante que frequentemente equivale a 1% dos seus lucros – e por vezes nem isso, dado que os lucros também podem ser mascarados de muitas formas.

Tal como em outros centros mundiais BEPS (Base Erosion and Profit Shifting, algo como erosão da base tributária e transferência de lucros), como Jersey, ilhas Caimão ou Hong Kong, também aqui há centenas de companhias registadas num único endereço. O número 46A da avenida J.F. Kennedy alberga mais de 1300 empresas. O edifício na avenida Charles de Gaulle n.º 2 apresenta 1450, e o recordista é o edifício na rua Guillaume Kroll n.º 5, em Cloche d’Or (a dois passos de edifícios onde funcionam a Comissão e o Parlamento europeus): ali estão registadas mais de 1600 companhias diferentes.

Não é preciso ser muito bom com números para perceber que nem todas estas empresas têm verdadeiros escritórios ou actividade (no sentido estrito do termo) no país. Simplificadamente, a lei só requer que elas apresentem uma morada, um contacto, uma conta bancária carregada, e a demonstração que “decisões importantes” são tomadas no Luxemburgo.

Só que essas decisões importantes sonegam aos cofres públicos dos países europeus dinheiro que lhes era devido em impostos – dinheiro de todos nós, cidadãos europeus. Quanto dinheiro? Muito, muitíssimo, tanto que é praticamente incalculável. Uma estimativa relativamente conservadora aponta para que a economia europeia como um todo perca – a cada ano – 900 mil milhões de euros para a evasão e elisão fiscais, um valor que cobriria mais de 11 vezes o empréstimo que Portugal teve de pedir à troika e que será pago em décadas, à custa de uma economia em frangalhos.

LuxLeaks configura um caso grave e que deve ser pelo menos investigado. Como cidadãos, contribuintes, pessoas vítimas de uma austeridade cega e sem fim, temos o dever de o exigir.

Dia do arroz com ervilhas

A emigração é velha como o mundo. Os primeiros humanos emigraram da massa continental que é hoje África para povoar todos os continentes, e tal foi apenas o início de uma história sem fim: não mais as populações deixaram de abandonar casa e raízes e partir para outras paragens em busca de paz, comida, trabalho, melhores condições de vida ou, muito simplesmente, a felicidade.

Tantas vezes a busca foi infrutífera. Tantas vezes, do outro lado, o suposto Eldorado nada mais reservava que dureza e desilusão. Tantas vezes as dificuldades no local de origem foram substituídas por outro tipo de obstáculos, agigantados pela discriminação ou pela saudade.


A rica região do rio da Prata, descoberta por Magalhães, disputada ao longo de séculos entre portugueses e espanhóis, atraiu (sobretudo na primeira metade do século XX) um enorme contingente de europeus oriundos das mais desfavorecidas partes do Velho Continente, com grande destaque para italianos do Sul do país, que exerceram tremenda influência na construção de dois países (Uruguai e Argentina) – a ponto de terem criado em Buenos Aires um dialecto próprio com origens no submundo e no tango, o lunfardo.

A emigração é uma força poderosíssima de mudança. E como sempre acontece, também os italianos transportaram para a longínquo Novo Mundo os seus genes, os seus hábitos, a sua cultura; e a pobreza pachorrenta do Mezzogiorno dava amiúde lugar a uma subsistência precária nas pampas. O magro salário chegava a cada dia 1, pelo que os últimos dias do mês eram passados em sobressalto e sem dinheiro para o bife, e para se conseguir chegar ao proverbial “panza llena, corazón contento”, já não sobravam muitas opções de alimentação: talvez algumas batatas, um pouco de farinha, eventualmente um ovo. Ingredientes bastantes para fazer um prato de gnocchi, simples, barato e que enche facilmente o estômago. Os “nhoquis” tornaram-se a comida dos últimos dias de cada mês, e a cada dia 29, as casas de pasto só ofereciam esse prato, à volta do qual se reuniam todos – família, amigos ou conhecimentos de ocasião.

O “dia do nhoqui” assim ficou. Hoje, a cada dia 29, as famílias argentinas, uruguaias ou brasileiras do sul (e não apenas as de origem italiana, longe disso) reúnem-se para comer em comunidade a humilde iguaria enche-barrigas dos imigrantes sem dinheiro. A maioria dos restaurantes alinha sem pretensões, e serve várias variedades do prato. A dureza de antanho tornou-se factor identitário, a superação das dificuldades motivo de orgulho, os laços comunitários razão para celebração, sempre a cada dia 29.

Seria engraçado que os portugueses, também eles senhores tanto de uma história rica em privações como de uma gastronomia versátil e deliciosa, adoptassem algo parecido. Poderíamos designar o dia 29 como “o dia do arroz de ervilhas” – prato típico, barato, delicioso e retemperador. E além disso, óptimo para partilhar em comunidade e reforçar laços