quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Jornalismo, descansa em paz

"Se as tuas fotos não ficaram boas, é porque não estavas suficientemente perto", disse uma vez o grande Robert Capa, talvez o melhor repórter de guerra de sempre. A sua foto mais famosa foi tirada logo na sua primeira missão, aos 22 anos, no início da guerra civil espanhola, e representa um soldado anarquista que tomba, ferido mortalmente por uma bala traiçoeira.

Ironicamente, as investigações mais recentes parecem indicar que esta foto, ícone da brutalidade das tropas franquistas, foi fabricada. O debate é tão velho como apaixonado: se não documentar uma morte "real", a fotografia deixa de representar os horrores da guerra? Sabendo que a foto ultrapassou em muito as fronteiras do jornalismo e se tornou “arte”, e dado que a arte imita a vida, a foto do “Soldado caído” é aceitável e importante, da mesma forma que a “Guernica” de Picasso o é. Se efectivamente tiver sido fabricada, no entanto, está muito mais próxima da simples propaganda do que do jornalismo.

O Jornalismo, com letra maiúscula, foi outra das vítimas de Paris. A impressionante manifestação do dia 11 de Janeiro levou às ruas dois, três milhões de pessoas, cidadãos anónimos que, de forma muitas vezes emocionada, quiseram gritar bem alto que não têm medo, que os valores republicanos prevalecerão, que a Liberdade não é negociável.
Os jornais do mundo todo – e neste caso não se trata de uma força de expressão, foram mesmo os jornais do mundo todo – destacaram a impressionante demonstração de convicções e unidade vindas da Cidade-Luz. E papaguearam quase sem excepções: a gigantesca manif “tinha sido liderada pelos políticos”, com Hollande, Merkel, Juncker, Renzi na linha da frente, ladeados por outros nomes ainda menos recomendáveis como Netanyahu, Lavrov ou Davutoglu, e perseguidos por um Sarkozy que ganhou o seu lugar na primeira fila à custa de cotoveladas. Esse guião era corroborado por fotos, tiradas sempre de longe, de frente e com uma objectiva de longa distância focal que “esmaga” a perspectiva, da autoria dos mais conceituados foto-repórteres e para os mais credíveis jornais e agências noticiosas. Fotos onde políticos impecavelmente vestidos, entrelaçados e de ar compungido, estão na linha da frente de uma multidão emocionada.

Essas fotos são um embuste. Uma manipulação. Uma infâmia. Sabemo-lo porque alguém, anonimamente, furou o círculo da mentira e fez chegar ao Le Monde uma outra foto, tirada de um ângulo mais elevado, que mostra uma realidade diferente: a rua vazia, e vedada, bem longe da verdadeira manifestação na praça da República, onde os políticos se organizaram para a farsa, caminhando por 200 metros e acenando para o vazio, posando para fotos hipócritas que lhes darão muitos votos nas próximas eleições.

Os líderes não se juntaram aos seus cidadãos porque tinham medo, e entre uma demonstração de coragem e unidade ou salvar a própria pele, preferiram a segunda. Mas isso já nem espanta ninguém; a verdadeira notícia daquelas fotos é que o jornalismo de referência desistiu da missão de informar e, ao invés de nos procurar relatar a realidade, decide recriá-la ao serviço de quem manda; dócil e domesticado, uma voz do dono que presta fretes aos poderes fátuos, políticos ou económicos. Uma voz em que não podemos mais acreditar (alguma vez pudemos?). O Jornalismo morreu, viva a propaganda.

Sem comentários:

Enviar um comentário