quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O ovo da serpente

"Posso discordar completamente do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo". As famosas palavras atribuídas a Voltaire (na verdade, foram escritas pelo seu biógrafo como um exemplo do seu pensamento) encerram a essência da sociedade que construímos na Europa ao longo dos séculos, uma sociedade aberta, tolerante, participativa e democrática. E livre. Sobretudo livre. Na qual ninguém é perseguido por motivos religiosos ou opiniões controversas.

É essa sociedade aberta, pesadelo de todos os fanáticos cujo negócio é manipular cérebros, que está a ser atacada - e por arrasto, todos nós que a vivemos. O horror de Paris representa um ponto de viragem, em que a maioria entre nós se apercebe finalmente que 1. há um problema terrível a resolver e 2. a estratégia do apaziguamento não está a resultar.

O ataque ao Charlie Hebdo configura um capítulo brutal da ofensiva de que somos todos alvos. Mas nem por sombras o primeiro - só nos últimos dois anos e meio, a Europa sofreu ataques de terroristas islâmicos radicais em França, Alemanha, Inglaterra e Bélgica, totalizando pelo menos 26 mortos e 35 feridos. Muitos outros foram evitados e outros ainda, como os atropelamentos que precederam em alguns dias o ataque ao jornal, são atribuídos a "pessoas isoladas com distúrbios mentais", para evitar o alarme da população perante agressões coordenadas.


Enterrados (mais) mortos e cuidados os feridos, é preciso parar para pensar. Porque somos visados pelo fanatismo? E acima de tudo, como responder? O presidente da câmara de Oslo, na ressaca dos atentados de um fanático neonazi norueguês em 2011, ofereceu algo admirável: "vamos punir o responsável", disse. "E vamos puni-lo com mais generosidade, mais tolerância e mais democracia".

Esse é o caminho dos fortes, mas não sejamos utópicos: não basta. Tal como o ovo da serpente do nazismo chocou porque as democracias ocidentais tentaram apaziguar Hitler com concessões - o que foi interpretado pelo ditador como prova de fraqueza e podridão -, também o islamismo radical, que assustadoramente tem tantos pontos em comum com o nacional-socialismo, se alimenta da apatia e permissividade, reais ou imaginadas, do nosso liberalismo.

Dos modos líderes políticos esperamos muito mais que palhaçadas como aquela a que eles se prestaram domingo em Paris (marcharam 200 metros para a fotografia, confortavelmente distantes da verdadeira e comovente manifestação de milhões de cidadãos). Esperamos inteligência, confiança e firmeza de convicções, além de protecção. Esperamos espionagem, justiça, inclusive a prisão ou deportação de criminosos. Esperamos o derrube do sinistro "Estado Islâmico" por todos os meios legítimos. Para que a serpente do fascismo não renasça.

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