quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Um ressentimento com 371 anos

"A Espanha teria ficado melhor se tivesse escolhido Portugal em vez da Catalunha", disse o senhor Peces-Barba. Logo a começar pelo seu nome (um tamboril ainda vai tendo uns penachos, mas peixes com barba é sempre um fenómeno raro), Peces-Barba é alguém de invulgar: um catedrático de filosofia do Direito, nascido em 1938 numa Madrid cercada por franquistas. Um antigo presidente das Cortes espanholas (parlamento). Um dos mentores da actual Constituição espanhola, criada com o advento da democracia. Um membro da Academia de Ciências Morais e Políticas. Um membro do PSOE, o partido de centro-esquerda que acaba este fim de semana de ser expulso do governo após governar Espanha desde 2004. E no entanto é exactamente este o homem que desatou a dizer disparates públicos anacrónicos sobre a Crise Peninsular de 1640 conducente à restauração da independência de Portugal - celebram-se para a semana 371 anos do golpe que aclamou João IV.

Segundo o argumento neocolonial de Peces-Barba, Madrid foi em 1640 colocada perante uma escolha simplista: confrontada com uma rebelião na Catalunha, que se recusou a entrar numa "união de armas" com Castela, e com um sentimento latente de revolução em Portugal, o duque de Olivares (o homem mais poderoso de Espanha, dado que o rei Filipe IV só tomaria as rédeas do poder após aquele ter caído em desgraça) decidiu atacar Barcelona, alistando à força para tal tarefa a discriminada nobreza portuguesa. Esta viu aqui a oportunidade de aclamar João de Bragança como novo rei. Só que a suposta "escolha" de Madrid não existiu: nos 28 anos seguintes, Castela nunca deixou de tentar reconquistar o rebelde Portugal através das armas, mas este venceu todas as batalhas até ao reconhecimento da sua soberania (Montijo, Linhas de Elvas, Ameixial, Castelo Rodrigo, Montes Claros...).

O problema, naturalmente, reside em interpretar leviana e anacronicamente acontecimentos históricos. Naqueles tempos as questões de Estado envolviam um punhado de elites (o golpe de Estado que matou Miguel de Vasconcelos não terá involvido mais de 20 conspiradores), mas as suas consequências eram magnas: quantas vezes o mapa do mundo não foi desenhado e redesenhado, e o destino de milhares alterado, por meras coincidências ou acontecimentos fortuitos. Matérias assim merecem pinças, ou inevitavelmente farão disparar reacções pavlovianas de um nacionalismo deslocado no tempo, que apenas se exacerba por este tipo de polémicas estéreis.

Economicamente, Portugal perdeu muito durante aqueles 60 anos de "união pessoal" com a coroa espanhola. Foi-se o comércio no Extremo Oriente, o rico Ceilão, as possessões em Angola e Brasil (estas mais tarde recuperadas), a frota de naus afundada com a Invencível Armada, o know-how e a riqueza judias esmigalhadas pela Inquisição, e sobretudo uma certa grandeza mundial que o pequeno país não mais realcançou. No entanto, hoje, em 2011, relembrar o que dividia os nossos antepassados é o caminho mais curto para a ruína presente. No rápido mundo em que vivemos, com fronteiras desenhadas em mapas numa cor progressivamente mais esbatida, escondermo-nos no egoísmo do nosso quintal nacional condena-nos à irrelevância. Conheçamos o nosso passado, mas não percamos tempo em construir um futuro melhor que ele.

V de Vendetta

Ultimamente tenho visto muitas pessoas estranhamente semelhantes. As suas características fisiológicas são algo fora do comum: pele muito pálida, só com um toque rosado nas bochechas; sobrancelhas pretas muito marcadas; os olhos são apenas dois buracos, mas são delineados num formato que faz lembrar um peixe, símbolo antiquíssimo e muito forte... a boca, essa, está sublinhada com um bigode fino e longo e rematada por uma barba ainda mais fina e vertical. Uma boca para sempre congelada num sorriso enigmático, perturbador, satírico.

A máscara de V arrisca-se a entrar de rompante na iconografia da História. As suas feições são as de Guy Fawkes, um católico que em 1605 quis revoltar-se contra a sua religião oprimida na Inglaterra protestante, e planeou fazer explodir o mais antigo parlamento do mundo, em Westminster. Vendo nele não um terrorista mas um corajoso combatente pela liberdade, os autores da banda desenhada "V for Vendetta" inspiraram-se em Fawkes para o seu herói, V.

V combate sozinho, de sorriso imperturbável, um regime totalitário imaginado para um futuro próximo. Hollywood, sempre à procura de boas histórias que possam ser desperdiçadas num qualquer filme pronto-a-comer, mostrou V ao mundo no péssimo filme de 2006 com o mesmo nome da banda desenhada - mas o pastiche teve ainda assim um ponto alto, o triunfante final, que culmina numa multidão de sósias de V deixando cair a máscara para se revelarem pessoas normais, anónimas, como eu ou o leitor.

A ironia, claro, está nos pormenores: a máscara ubíqua do movimento que varre o planeta faz parte do merchandising do filme e é produzida numa fábrica chinesa por uma multinacional, a Time Warner, que assim encontrou uma original forma de lucrar com um capitalismo em crise. Mas focarmo-nos no acessório é esquecermos o essencial: V está nos pontos focais do planeta. Foi imaginado em Londres, iniciou o movimento "Occupy" em Kuala Lumpur, Malásia, atravessou vários oceanos até Nova York, espalhou-se pelos Estados Unidos, atravessou o Atlântico e voltou a varrer a Europa. No dia 15 de Outubro, o movimento contou as suas manifestações: 951 cidades de 82 países, entre as quais nove cidades portuguesas (e 20 mil pessoas no Porto, mais 20 mil em Lisboa). Presente em praticamente todos os países da Europa, e mesmo em todos os da Europa Ocidental (menos no Luxemburgo, onde o tempo passa de forma diferente e é importante não criar ondas para melhor seguir a direcção da corrente), o Occupy, ou os Indignados, representam a inevitável resposta das populações aos tempos economicamente injustos em que vivemos.

E contudo, não é de uma revolução que se trata. Isto é um carnaval: a época onde as regras da sociedade se subvertiam, onde nobres e bispos se expunham à sátira da plebe, onde os costumes se castigavam rindo, como em Gil Vicente. Hoje, é V quem se ri, e V somos todos nós - ou antes, quase todos. Somos 99%.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O homem que correu sozinho e chegou em segundo

O senhor German Antonio Londoño Roldan é colombiano e acaba de entrar na História. Não, não é ele o personagem principal do conto "Um senhor muito velho com umas asas enormes", do também colombiano Gabriel Garcia Marquez; Roldan é um quarentão calvo, e não voa pelos seus próprios meios. Mas este político soube trazer-nos para a vida real um pouco do "realismo mágico" que povoa os livros de Marquez, prémio Nobel da Literatura em 1982: Roldan era o único candidato a governar a cidade de Bello, no noroeste da Colômbia. Era o único... mas perdeu as eleições. Quem ganhou, com maioria absoluta, foi o voto em branco.

A história conta-se em algumas pinceladas: Bello é uma cidade da Colômbia, um país complexo onde a política se subordina amiúde ao narcotráfico e às organizações paramilitares, mas também um país que experimenta um ressurgimento económico e social simplesmente notável. Na cidade de 400 000 habitantes e um historial de corrupção e clientelismo, as eleições autárquicas pareciam ir ser disputadas por quatro candidatos: a favorita, Luz Ochoa, corria contra o candidato do partido conservador, Roldan, e dois outros que acabaram por desistir a favor deste. Mas a senhora Ochoa, à frente de um movimento cívico de independentes, teve problemas com as assinaturas necessárias à candidatura - alguém se queixou, e o tribunal proibiu a sua campanha. Roldan ficou a correr sozinho e começou a preparar o discurso de vitória, enquanto se aconselhava com o seu padrinho político (um antigo alcalde de Bello), visitando-o por dez vezes... na prisão onde ele se encontra detido.

O guião do filme era até aqui previsível, mas a maré começou a mudar. Luz Ochoa persistiu, começando a fazer campanha pelo voto em branco, acompanhada de várias associações cívicas e pequenos partidos. A cidade, tradicionalmente apática e conservadora, começou a discutir o seu próprio destino. E pouco a pouco, um livro de outro prémio Nobel da Literatura, o português Saramago, entrou na lista dos best sellers em Bello. O livro chama-se "Ensaio sobre a Lucidez", e ao ver tantas pessoas a lê-lo, um jornalista da capital comentou: "alguma coisa se vai passar aqui...".

E passou-se: provavelmente pela primeira vez na história da democracia, um candidato único perdeu as eleições. A lei colombiana obriga a que as mesmas sejam repetidas, mas agora sem os candidatos da primeira edição - Roldan, o nosso realista mágico, estará impedido de participar... mas Luz Ochoa, a sua adversária, vai poder fazê-lo. Saramago, que não era um homem muito democrático mas cuja lucidez era inegável, avisava: "ao político, a abstenção não diz nada. Mas o voto em branco provoca medo, porque define algo que não se pode condensar numa frase. O eleitor está a dizer: isto não me agrada".

A mim agrada-me. Vivemos tempos de insurgência contra as velhas e erradas formas de fazer política e nos governarmos; revoltarmo-nos contra as falsas escolhas que nos são dadas votando em branco é a forma mais cívica de protesto. Uma verdadeira bofetada de luva. Branca, naturalmente.