quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Continua a inércia

“Keep calm and have another summit”. A imagem humorística, glosando os famosos cartazes afixados nas ruas de Londres durante a guerra, começou a correr nas redes sociais logo na sexta-feira à tarde mal terminou mais um Conselho Europeu que decidiu... não decidir.

“Mantém a calma e organiza outra cimeira”. É isso que vai fazer a União Europeia, talvez em Fevereiro do próximo ano, de forma a obter um acordo sobre o orçamento deste clube de 27 Estados-membros (ou 28, já que a Croácia, que se juntará em Julho próximo, também faz parte das discussões). As cimeiras sobre o orçamento, sobretudo quando decorrem num clima económico minado como o actual, e ainda mais quando têm a missão de também decidir sobre o Quadro Financeiro Plurianual – ou seja, nos montantes para 2013 mas também nos fundos que a Europa terá à sua disposição até 2020 – são tão duras, mas tão longas e amargas, que justificam habitualmente a descrição de “a grande batalha”. Num dos campos, os contribuintes líquidos para a Europa, encabeçados como sempre por um cada-vez-menos-europeu Reino Unido (isto apesar de os britânicos serem o menos importante dos contribuintes); do outro, beneficiários líquidos, entre os quais Portugal (o sexto maior beneficiário por habitante). A linha que divide ambos é um fosso profundo, e na Europa de hoje há poucos construtores de pontes.

A novidade da semana passada foi exactamente a naturalidade, na fronteira da resignação, com que o falhanço das negociações foi encarado. No segundo dia da cimeira de Bruxelas, todos os líderes e assessores chegaram ao local das negociações já carregados de malas – prontos para partir de volta a casa ao final do dia, sabendo de antemão que do conclave não sairia fumo branco. E um ministro finlandês desabafava no Twitter ainda desde o aeroporto: “uma das mais amigáveis cimeiras europeias de que me lembro, mesmo que não tenhamos obtido um acordo. É curioso”.

Eu não descreveria esta inércia como curiosa, antes como previsível, considerando a fasquia cada vez mais baixa que as nossas elites políticas se auto-atribuem. Incapazes de lidar com problemas complexos, submergidos pela crise, confusos perante a evidência de uma Europa cada vez menos homogénea e logo com interesses divergentes, os nossos eleitos demitem-se de decidir. Encolhem os ombros e fazem as malas.

Imediatamente após a cimeira (e até mesmo antes da mesma) deu-se início ao costumeiro spin – o mascarar do fracasso. Reza a teoria que este “até pode ser bem-vindo”, porque neste momento há problemas mais prementes para resolver (mais uma possível bancarrota da Grécia, e a criação de uma verdadeira união bancária para estabilizar a zona euro), e adiando a discussão sobre o orçamento evita-se o envenenar do ambiente e pode-se continuar a contar com o Reino Unido como parte da solução. Logicamente, o argumento é rebuscado e não tem quaisquer garantias de sucesso; pelo contrário, Merkel, a sombra tutelar da Europa que temos hoje, estará no futuro cada vez mais pressionada com o aproximar das eleições alemãs, em Setembro. O que é garantido é que voltamos, europeus, a dar uma imagem de indecisão ao mundo e a nós próprios. Antes, a metáfora para a construção europeia era a da bicicleta (era preciso continuar em movimento para nunca tombar); ultimamente, parecemos seguir sim a política da avestruz.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Skyfall


“Skyfall” é, naturalmente, o título do último volume da franchise 007 – um filme entretido que vale em grande parte pela sua extraordinária sequência inicial e música de Adele com o mesmo nome, nome esse que poderia traduzir-se como “uma queda do céu”, no sentido figurado.

É nesse céu que se movem as companhias aéreas que, por entre discussões sobre altos salários e preços dos combustíveis, fazem recair todos os seus ónus sobre os viajantes – clientes e razão de ser da sua existência. Neste capítulo todos aqueles que costumam voar entre o Luxemburgo e Portugal são versados, já que esta rota é tradicionalmente umas das mais lucrativas para as duopolísticas companhias que nela operam: TAP e Luxair. O suspeitado conluio entre ambas, sob a observação atenta da mãe Lufthansa, permite-lhes combinar tarifas de força tão flagrante quanto impune; quantas vezes determinado bilhete para determinado dia não custa exactamente o mesmo, ou difere em um euro, numa e noutra (falsa) opção. Os horários de voos também indiciam uma cuidadosa divisão do mercado feita nos bastidores – uma estrutura que, sendo de cartel mais do que de duopólio, não é permitida às leis da concorrência. Aliás não por acaso a Comissão Europeia ameaçou no ano passado abrir uma investigação à mesma TAP e à Brussels Airlines (que pertencem à mesma aliança aérea) por práticas semelhantes na rota de Bruxelas, mas a investigação nunca saiu do chão.

Combinar preços não é o único truque constante do livro de uma companhia com uma posição dominante no mercado: o levantamento de barreiras à entrada de competidores é outro, e assim o aeroporto de Findel, com imensa capacidade instalada não utilizada, nunca acolheu um concorrente que possa minimamente desafiar os “direitos adquiridos” dos poderes ali instalados. Quem sofre mais uma vez é quem precisa dos aviões para viajar: em grande medida, somos consumidores especiais pois, devido às tão fortes ligações familiares, culturais, económicas, sentimentais ou muitas outras, não temos escolha senão pagar o que for preciso e voar desta terra de trabalho para Portugal. Sujeitamo-nos assim a toda a espécie de manipulações e desrespeitos, como um serviço subpadrão, preços obscenos (um bilhete simples para ir passar o Natal a Portugal custa neste momento 750 euros, bastante mais que um bilhete para Nova York para as mesmas datas) ou horários perfeitamente absurdos – na sua nova versão, por exemplo, a TAP pede-nos para estar no aeroporto de Pedras Rubras às 2 da manhã de domingo, de forma a podermos aterrar no Luxemburgo às 6 da madrugada!

Que opções temos nós, viajantes, para abalar este abusivo status quo? Não muitas. Por terra, a viagem é longa e também cara; no ar, a Ryanair também trata a rota Hahn-Porto como a sua “vaca leiteira” – os aviões, pouco frequentes para o potencial do mercado, estão sistematicamente repletos, mesmo que nunca sejam objecto das promoções de que usufruem os outros destinos (e mesmo que o presidente da companhia insulte frequentemente os seus próprios clientes, como fez no mês passado ou apelidar de “estúpidos” todos aqueles que se esquecem de imprimir o seu bilhete num papel). Acresce que esta é uma opção pouco prática, que o aeroporto de Hahn sofre de dificuldades financeiras, que as previstas alternativas em Bitburgo ou Metz não descolam, e que Charleroi também tem os voos sempre cheios. Existe um grupo no facebook que pressiona para que a Easyjet voe daqui para Lisboa; veremos o que acontece deste lado, mas por enquanto, não há outro remédio senão engolir em seco e economizar para as viagens. Ao contrário de um James Bond, o dinheiro não cai do céu.

A Europa prefere Obama, mas vota em Romney

Conheço muitos europeus que se interessam por política, mas muito poucos entre eles teriam preferido Romney a Obama como vencedor das eleições americanas. Tal não é surpreendente, a acreditar nas sondagens “mundiais” publicadas pela BBC ou a MSN; por exemplo esta última analisou 35 países ou áreas geográficas, num total de 570 mil pessoas, e em quase todos Obama foi declarado vencedor virtual com resultados absolutamente esmagadores. O único país em que “perderia” seria curiosamente a China, um país formalmente comunista onde Romney obteria 52% das preferências. Do outro lado do espectro está Portugal, onde Obama obteria uns quase ditatoriais 94%; em Espanha 84%, na Alemanha 92%, em França 88%, no Reino Unido 85%... a BBC corrobora estes resultados, temperando-os com alguma abstenção, e dá ao Paquistão (o país onde Osama Bin Laden foi assassinado por marines) o privilégio de se destacar como o único onde Romney poderia prevalecer. Mas entre os dois nem hay color, como dizem os espanhóis; se todo o planeta pudesse votar nas eleições americanas, Obama nem teria de sair do sofá para fazer campanha. E o seu maior feudo eleitoral estaria precisamente na Europa, que votaria em massa no partido Democrata.

A ironia aqui contida parece-me evidente e é de monta: quando chamados a escolher sobre o seu próprio destino, os europeus escolhem sistematicamente os seus Romneys. Não quero com isto dizer que ao mesmo tempo rejeitem os seus Obamas, dado que não existem no Velho Continente políticos inspiradores ou com carisma similar ao do reeleito presidente americano. Afirmo sim que, com apogeu em Dezembro de 2011 (altura em que, dos 27 da União Europeia, apenas 4 pequenos países não eram governados por membros do Partido Popular Europeu) a liderança europeia na última década pertence resolutamente à família política conservadora do partido Republicano – e as semelhanças estão também nas questões sociais, mas sobretudo em opções financeiras, fiscais e económicas. E foram essas mesmas opções que, nos EUA, transformaram os anos de bonança da era Clinton em anos deficitários com George Bush, e na Europa nos atiraram para um buraco do qual estamos a tentar escapar escavando mais e mais fundo.
Romney (e o seu parceiro candidato a vice-presidente, Paul Ryan, que representa uma autêntica versão americana do ministro português das Finanças) propunha várias medidas que o que incluiam cortes de impostos para os mais ricos e as empresas, mas também o equilíbrio do défice como prioridade – cortando brutalmente na despesa pública - e menos regulação da economia, além de aumento da idade da reforma, desmantelamento do sistema público de saúde ou o endurecimento das leis sobre imigração. Provavelmente tudo isto soa familiar, já que é esta a receita que temos aplicado deste lado do Atlântico, sendo por isso recompensados com o quinto ano consecutivo de recessão (em Portugal) ou de crescimento anémico (na zona euro). Esta semana chegamos mesmo a um ponto quase caricato: o FMI a aconselhar uma inversão das políticas de austeridade, e a Comissão Europeia a pedir mais da mesma – e sem a devida compensação necessária do lado monetário (simplificando, a impressão de mais moeda), porque a Alemanha assim não permite, mantendo-nos assim presos numa reedição do ano 1930. Nessa época, a meio da Grande Depressão, Keynes escreveu: “Os tempos de crescimento, e não os de depressão, são os indicados para a austeridade”. Nos Estados Unidos, há quem o saiba, e há sinais claros de que o pior já ficou para trás; a Europa aplaude, mas continua nas mãos de Romney.

E tudo o vento lembrou


A capa desta semana da revista New York traz uma imagem extraordinária: uma foto da ilha de Manhattan, o núcleo da cidade que nunca dorme, tirada com “vista de pássaro” desde um helicóptero. Com uma arrepiante singularidade: metade da cidade está completamente às escuras.

O foto foi tirada no rescaldo da passagem do furacão Sandy, que inundou centrais eléctricas e cortou cabos, e mostra a parte sul da ilha sem electricidade. Curiosamente, é aqui que fica a zona financeira de Wall Street; o movimento Occupy Wall Street não conseguiu ocupar este verdadeiro governo-sombra do planeta, mas o furacão conseguiu apagá-lo (por um dia). A morte e destruição causadas pelo Sandy tiveram pelo menos um mérito: os ventos ciclónicos empurraram as alterações climáticas para as primeiras páginas dos jornais, local de onde tinham sido arredadas por preocupações mais comezinhas, como a crise ou o desemprego. E o aquecimento global inundou mesmo, repentinamente, a campanha eleitoral renhidíssima entre Obama e Romney – e durante a qual os temas ambientais primaram pela ausência. Tal foi o rasto deixado pelo furacão que, no dia seguinte, o mayor Michael Bloomberg (inicialmente eleito pelo partido Republicano) veio apoiar publicamente o candidato democrata, sublinhando que este, Obama, era o único a “considerar as alterações climáticas um problema urgente que ameaça a nossa existência”. Bloomberg não o fez, mas poderia ter acrescentado que Romney é financiado por milhões e milhões de petrodólares – e por coincidência, o plano energético que propõe consiste em “perfurar, perfurar, perfurar” toda e qualquer terra, incluindo parques naturais e ecossistemas protegidos no Alasca, que possa conter vestígios de petróleo. Ao apresentar este plano, em Agosto, Romney ridicularizou o discurso de tomada de posse de Obama, em 2009, quando o presidente prometeu “parar a subida dos oceanos” e começar a “curar o planeta”.

O drama? Esse discurso de abertura, proferido no primeiro dia da sua presidência, foi também um dos últimos em que o presidente dos EUA, ainda o país mais poluente do planeta (com licença da China, que também chegará a esta posição em pouco tempo), se referiu a temas ambientais nos últimos quatro anos – o que significa que também nesta área a “esperança” simbolizada por Obama desiludiu. Sim, é certo que alguns passos foram dados no sentido de reduzir as emissões de carbono e de mercúrio, mas isso não chega para estancar os oceanos – eles continuam a subir, inexoravelmente, e quatro vezes mais rápido que a média global no caso da costa Leste americana; foi exactamente destes mares inchados que o furacão Sandy se alimentou – e a próxima tempestade, mais fraca mas ainda mortífera, vai repetir a dose dentro de poucos dias.

O consenso científico é esmagador: as alterações climáticas são provocadas por nós, e elas estão a tornar-se, mais do que visíveis, evidentes; fenómenos extremos como furacões e ondas de calor são agora frequentes e cada vez mais fortes. O furacão Irene, que atacou no ano passado, chegou a ser classificado de “sem precedentes”; mas poucos meses depois, o Sandy eclipsou-o. Isto no ano que está a caminho de ser o mais quente de sempre desde que há registos nos EUA.

Mais uma vez, estamos numa encruzilhada – o futuro dirá se a maior de sempre, e se tomámos a opção correcta. Não fazer nada será muito caro (só este furacão custou 40 mil milhões de euros em prejuízos) e provavelmente letal a longo prazo; aumentar a dependência do petróleo, e as emissões que dele provêm, acelerará a nossa autodestruição; combater as emissões poluentes e “curar o planeta” será duro, lento, impopular e também caro, além de incerto. Os eleitores norte-americanos fazem esta semana uma destas escolhas – resta descobrir se disso se apercebem.

Os Intocáveis

Heinrich Kieber, Hervé Falciani e agora Kostas Vaxevanis. Fixe bem na memória estes nomes, caro leitor, porque estes são os heróis possíveis da sociedade em que hoje vivemos. Nenhum deles salvou donzelas em perigo ou conseguiu grandes proezas atléticas; o seu instrumento não é a capa nem a espada, mas sim o computador; e os seus feitos poderão não ser desinteressados, mas a verdade é que estes homens aparentemente banais não deixaram passar a oportunidade de lutar pelo ideal de Justiça, mesmo arriscando os seus pertences e a sua vida.

A história não se conta em poucas palavras. Kieber e Falciani eram ambos técnicos de informática dentro de bancos, o primeiro no Liechtenstein (o LGT, banco detido pela família “real” do pequeno principado, e que muito naturalmente também está presente no Luxemburgo) e o segundo na Suíça, o HSBC, um dos maiores do globo. Ambos compilaram pacientemente enormes listas com nomes de fugitivos aos impostos, pessoas (e companhias) que depositam em paraísos fiscais com forte segredo bancário enormes somas não declaradas ao fisco. Dinheiro de proveniência e/ou destino sujo.

A “lista Kieber” foi comprada pela Alemanha por 4,2 milhões de euros, e depois usada por vários países europeus para exigirem a alguns proeminentes cidadãos o pagamento dos seus impostos atrasados. Só a própria Alemanha recuperou perto de 300 milhões em impostos devidos, enquanto a Áustria investigou 180 dos seus nacionais. A Espanha calculou perder 16 milhões de euros anuais por não cobrar os impostos desta lista. Portugal... não quis saber quem lá constava. E Kieber, entretanto, correndo risco eminente de vida, desapareceu algures na Austrália em 2008.

A “lista Falciani” é ainda mais bombástica, porque este outro jovem informático, afirmando “não querer nada em troca e apenas estar a agir como cidadão cumpridor”, denunciou nada menos de 80 000 evasores ao fisco provenientes de 180 países diferentes – só franceses eram 8000, e foi a França que geriu o processo; perante insistentes pedidos da furiosa Suíça, a então ministra das Finanças Christine Lagarde copiou os nomes dos possíveis infractores e transmitiu-os a todos os Estados que por eles perguntassem. Nos últimos dois anos, foram recuperados graças a Falciani (que entretanto teve de mudar de vida e identidade, mas ainda assim foi preso em Espanha no passado Julho e pode ser extraditado) nada menos de 10 mil milhões de euros de impostos não pagos – três vezes a redução do défice que Portugal tem de fazer este ano. Mas Portugal, mais uma vez, não quis saber quem eram os seus criminosos fiscais que lá apareciam.
A razão para tanta falta de curiosidade portuguesa é simples: os grandes evasores são pessoas poderosas, bem-relacionadas, amigos ou cônjuges de políticos, colegas de juízes, companheiros de caça de banqueiros; resumindo, pessoas que em países de elites corruptas, como Portugal, estão facilmente acima da lei – agradecendo a complacência de quem se sacrifica para a cumprir. O mesmo acontece na Grécia, onde o governo tudo fez para ignorar a existência da parte grega desta lista para evitar ter de perseguir quem foge aos impostos em grande escala – aparentemente ali o Estado está a nadar em dinheiro. Mas esta semana (e tal seria quase divertido não fosse assustador) o caso provocou finalmente uma prisão: a do editor do jornal que, cumprindo a função da imprensa, divulgou a lista dos grandes evasores do país. Aparentemente, Kostas Vaxevanis esqueceu-se de que nem todos podemos fazer parte da casta dos Intocáveis.