quarta-feira, 16 de maio de 2012

E no entanto, ela move-se

"Eppur si muove", pronunciou Galileu ao ser condenado pela Inquisição a aceitar que era o Sol quem girava em torno de uma Terra supostamente imóvel. Tendo estas palavras sido realmente proferidas ou não, o "ela" referia-se aqui ao planeta Terra. Mas hoje, na Europa, algumas vozes com interesses inconfessáveis acabam de adoptar a sua própria versão de heliocentrismo - em defesa das suas próprias escrituras, o mantra neoclássico dos orçamentos a zero e do desmantelamento da economia pública.

O "consenso europeu" (e mundial) gizado como resposta à terrível crise iniciada em 2008 teve menos de consenso do que de hegemonia ideológica: em Novembro de 2011 apenas as pequenas Dinamarca, Áustria, Eslovénia e o minúsculo Chipre eram governados por partidos à esquerda do centro - todos os outros 23 governos europeus, incluindo os de todos os "grandes" Estados-Membros, eram essencialmente de matriz conservadora/popular. A solução encontrada, apresentada como não tendo alternativas, foi a da dor, da austeridade, dos cortes, dos "sacrifícios", da "punição" por crimes nunca bem especificados. A teoria era que estas demonstrações económicas de heroísmo salpicado de masoquismo teriam a sua recompensa (terrena) através de uma suposta renovada simpatia dos mercados e de um mirabolante acréscimo da confiança dos agentes económicos, que supostamente faria reavivar o produto da economia e fazer-nos a todos viver melhor muito em breve.

O curioso - e assustador - é que este tipo de pensamento, e de opções políticas e económicas, repete de perto o ocorrido durante a Grande Depressão iniciada em 1929, que só começou a ser combatida após a eleição de Roosevelt e o seu New Deal, quatro anos depois. Acreditar numa espécie de "austeridade estimulante" é o equivalente económico de acreditar no Pai Natal; agradável durante alguns anos, e uma desilusão forte quando a realidade entra em cena. No nosso caso, os resultados da austeridade já estão aí: economias paralisadas, uma segunda recessão, pânico nos mercados e desemprego. Tudo em crescendo, até porque as economias entraram em círculo vicioso.

Pois bem, se a realidade não valida as nossas opiniões, mude-se a realidade, pensaram alguns arautos do declínio, que acabam de declarar que a austeridade na Europa "não existe". E se ainda existiu alguma foi devido a aumento de impostos, que por alguma razão "não conta". Só por a austeridade "não existir" é que não está a funcionar, porque se existisse, certamente funcionaria.
Felizmente, há dados objectivos com que responder a estes desmandos, e é o próprio FMI que o demonstra: a austeridade não só existe como se move, e países como Portugal estão a fazer um ajustamento absolutamente brutal - porque muito oneroso e feito em muito pouco tempo - das suas despesas públicas: - 1,2% até 2011, e provavelmente -4,1% até 2013. A duras penas, a Grécia obteve uma melhoria de 11 pontos no seu défice estrutural. Até a Alemanha já cortou 2,3% da sua despesa só nos últimos dois anos.

O problema é precisamente esse: mais do não existir, a austeridade move-se para ocupar o espaço de qualquer solução complementar que se debruce sobre o crescimento. Precisaremos de eleger um novo Roosevelt? É que não se vislumbra nenhum no horizonte. Pelo contrário, há mais aprendizes do chanceler alemão que era seu contemporâneo.

A revolução dos detergentes


Proponho ao leitor um exercício: imagine que é dia de Natal, que está rodeado daqueles de quem mais gosta, e que o bacalhau e o perú estão quase a sair do forno. De repente, alguém ouve na televisão que o supermercado da sua rua tem produtos com 50% de desconto - e a debandada na sua sala é imediata e inevitável. O leitor, que nem tem paciência para ir às compras, ficou sozinho sentado à mesa, enquanto o resto da família passou o resto da tarde engalfinhado a lutar com o vizinho do lado pela última garrafa de detergente para a louça que ainda sobrava na prateleira dos produtos para a cozinha.

Grosso modo, foi isto que se passou em Portugal na semana passada, não no Natal, mas sim no dia do Trabalhador. Uma cadeia de supermercados, conhecida por ao longo de 17 anos de existência ser contra a estratégia de fazer promoções (ficou agora famosa, por exemplo, a campanha publicitária de há dois anos onde a mesma marca, referindo-se aos concorrentes, perguntava aos clientes "já pensou que se há condições para baixar os preços um dia, é porque eles são demasiado altos em todos os outros dias?"), optou no dia 1 de Maio por uma ofensiva de choque: sem o anunciar previamente, cortou para metade, só naquele dia, o preço dos seus produtos para a casa ou alimentares (nos quais os supermercados têm em média margens de 70% - logo, há mesmo condições para baixar os preços). O balanço foi extraordinário para a empresa, que esvaziou os seus stocks por todo o país, e colocou o seu nome firmemente nas bocas do mundo; um golpe profundo de marketing de que os supermercados (agora) holandeses bem necessitavam após ter perdido 1% de clientes exactamente ao mudar a sua sede (e os seus impostos) de Portugal para os Países Baixos...

O rescaldo da operação é bem menos meigo para os trabalhadores, que somos, fomos ou seremos todos. Desde logo, existe um desrespeito de cada um para consigo próprio: estragar horas preciosas de um dia de lazer primaveril, feito à medida para se respirar fundo, estar com os filhos, ir ao parque ou à praia ou ao café, e trocá-lo pela claustrofobia de um templo do consumo iluminado a lâmpadas fluorescentes e apinhado, é um verdadeiro atentado à própria dignidade pessoal - sobretudo quando a loucura colectiva impele a andar ao soco pelo último pacote de Skip (verídico, e não inédito, já que a polícia tomou nota de 50 ocorrências do género naquele dia). Em seguida há um dilema de respeito histórico: o feriado de 1 de Maio tem as suas origens em 1886 quando, em Chicago, a polícia disparou sobre a multidão que se manifestava a favor de dia de trabalho de "apenas" 8 horas, e em 1955, o Vaticano consagrou o dia como dedicado "a S. José, o padroeiro dos trabalhadores". Mas esses trabalhadores, envergonhados da palavra que os classifica como tal; incrédulos na utilidade dos sindicatos; aspirantes perpétuos a subir tanto na vida que esta os liberte da grilheta do trabalho e do cinzentismo da sua condição; incapazes de sair do sofá para se indignar contra o enésimo corte no investimento público em educação ou saúde; esses trabalhadores, no dia que os celebra, votam com os pés - não fugindo, nem em manifestações, mas sim pregando uma rasteira ao adversário na busca dos últimos espinafres ultracongelados. Como dizia o sociólogo Villaverde Cabral, "hoje a figura do consumidor é mais importante que a do trabalhador" - e esta é talvez a lição mais sórdida do 1.º de Maio de 2012.

Partilha, partilha, partilha


Abril é um mês com conotações libertárias. A Primavera ajuda a libertar corpo e espírito, trazendo um renascimento anual e um ressurgir de energias. Não por acaso se trata de um mês propício a revoluções; a de 1974, em Portugal, libertou o país da asfixia de meio século de ditadura, e da sua omnipresente censura.
Por estarmos perto do dia 25, a notícia difundida por vários jornais portugueses indigna ainda mais todos os que, sem pedir desculpa por isso, continuam a amar a liberdade acima de todos os valores. "Jovem condenado por partilhar", era parte do título. Ditosos tempos estes em que a partilha é criminalizada! E que tencionava então partilhar o jovem, 17 anos mal cumpridos e socialmente desfavorecido? A segunda parte do título esclarece-nos: "... três músicas pela internet". Uma dos Delfins, uma do João Pedro Pais, e uma da Alanis Morissette.

Não, o rapaz não foi condenado por ter mau gosto musical, foi sentenciado a dois meses de prisão por ter divulgado o nome daqueles três músicos, que vivem, curioso paradoxo, na busca incessante de popularidade. Não foram, naturalmente, os músicos a processar o jovem, dado que a maior parte daqueles sabe que tem tanto mais a ganhar quanto mais o seu trabalho for conhecido (os rendimentos provêm crescentemente de concertos, t-shirts e patrocínios); quem o processou foi quem faz fortuna às custas dos músicos, os distribuidores, neste caso uma ordem de interesses chamada "Associação Fonográfica Portuguesa" que, no final, não estava envergonhada com o desperdício do dinheiro dos contribuintes, mas sim furiosa com a "demora da justiça" (o caso remonta a 2006). Lamuriou-se a AFP que "o mercado físico da música em Portugal, que representa 85% das nossas receitas, está em recessão". É óbvio que vender um CD a, por vezes, 20 euros, quando ele custa menos de 4 euros a produzir e pôr nas lojas, terá mais do que uma certa influência nessa tendência, mas isso não aparecia (nunca aparece...) na notícia.

A repressão da indústria musical que resulta nestes casos algo caricatos têm algo de quixotesco: eles pugnam por manter artificialmente caro um produto, o CD de originais, que cada vez menos pessoas está interessada em comprar - e que inclusivamente nos parece agora até menos cool que o seu antepassado, o disco de vinil. Mas o caso é mais grave que uma simples desadequação aos nossos tempos digitais. O que acontece é que a indústria se colocou do lado errado da barricada moral: agarrada a modelos económicos ultrapassados porque baseados na escassez - ou seja, de número finito, em que todos competimos para os obter, e em que se eu dou um disco a alguém, fico sem ele. Imaginemos por absurdo que as discográficas compravam a "propriedade intelectual" das ideias de Newton, e nomeadamente da teoria da gravidade: em vez desta contribuir para a ciência e o conhecimento do mundo que nos rodeia, cada consumidor de gravidade teria de pagar 20 euros sempre que não quisesse vaguear sem destino pela atmosfera.

Na era digital, as ideias, a informação, as imagens, a música fluem e estão infinitamente disponíveis. Se eu partilho música com alguém, mantenho-a também para mim. A ideia de partilha de algo bom, em que todos ficam a ganhar (menos as companhias discográficas...) e como tal a sociedade se aproxima de uma distribuição óptima de recursos, deve fazer parte do imperativo moral de cada pessoa de bem. Como o é partilhar o pão com um meu amigo - mas neste caso os pães são infinitos.

A morte saiu ao estádio

Há dois anos comecei uma destas crónicas falando de Fidípides, o mítico soldado que correu 42 km para avisar os patrícios da vitória do exército ateniense contra o muito mais poderoso exército persa. Nessa altura escrevia sobre a maratona, a corrida que teve origem nessa lenda. A lenda, ou não se tratasse de tragédia grega, termina mal: Fidípides caiu inanimado ao chegar a Atenas e não mais se levantou. Foi a primeira morte súbita registada na História de um jovem desportista.

 No sábado, em Itália, a improbabilidade voltou a atacar impiedosamente. Improbabilidade porque falamos de atletas, pessoas jovens, sem gordura, de alimentação regrada, vida saudável e extraordinária preparação física, tudo isto completado por exames médicos rigorosos e periódicos, que são fulminados por uma paragem inesperada do seu coração, ou por um aneurisma. Estes problemas são agrupados num termo tão abrangente quanto aflitivo: síndroma de morte súbita (SDS, da sigla inglesa). Os defeitos que o provocam, como por exemplo uma malformação cardíaca, tornam-se explosivos quando combinados com a prática intensiva de desporto. Ainda por cima, raramente há sintomas: em 80% dos casos, o primeiro sintoma é o desfalecimento fatal.

O jogador italiano do Livorno, Morosini, vem juntar-se a uma lista de vítimas se está a alongar rapidamente nos últimos anos. Um dia depois desta tragédia, outro futebolista de elite (Muamba, congolês do Bolton) teve alta do hospital após o seu coração também ter parado em pleno jogo, e por 78 longuíssimos minutos. Muamba dificilmente voltará a jogar futebol, mas pelo menos tem uma vida pela frente, ao contrário de Daniel Jarque, Antonio Puerta, Miklos Fehér, Marc-Vivien Foe, Bruno Baião ou Pavão, todos eles futebolistas de alta competição caídos fatalmente no relvado. 

Quando um desportista morre em plena acção, a pergunta queima os lábios de todos: como é possível evitar isto? A resposta dos peritos ronda sempre “mais exames, melhores exames”, para a detecção precoce dos problemas. Isto parece consensual (embora nos Estados Unidos, que não querem começar a exigir electrocardiogramas aos adolescentes, não o seja), mas há também dois  tabus que é necessário quebrar: um é o do doping (as substâncias utilizadas aumentam as necessidades cardíacas), outro é o do exagero em que a alta competição caiu, numa loucura vertiginosa de esforço em cima de esforço e de corpos levados ao limite. À excepção de Pavão, todos aqueles nomes desapareceram nos últimos 10 anos, o que não é uma coincidência: as cargas de treino no futebol de elite não têm hoje nada a ver com o que se fazia há 15 anos; os melhores jogadores, sobrecarregados de competições, chegam a fazer 70 jogos a alta rotação por época, e cada um desses jogos exige-lhes muito mais do físico do que um jogo da década passada. A espiral não parece ter fim, mas algo tem de ser feito para a travar; é preciso arrefecer todo o sistema, organizar muito menos jogos (mas melhor futebol), parar de transformar os jogadores em superhomens biónicos sempre no limite da dor. É que tê-los a cair como tordos, em directo e a cores, é um sinal gritante de que algo está profundamente errado.

“Do que é que precisas?” – de menos ganância

“Há três palavras importantes na língua portuguesa: TMN, Vodafone e Optimus”. Essa seria a primeira frase que um viajante no tempo – digamos Luís de Camões, por provocatório exemplo - escreveria no seu diário se pudesse percorrer hoje o país. A minha massa cinzenta, que por ter recebido demasiada publicidade ao longo da vida já não a regista conscientemente, reparou no fenómeno ao olhar para o rádio: em vez de “Antena3” ou “Rádio Nova”, este atirava-me um “Vodafone”. A estação seguinte, também com boa música, ripostava “TMN”. Uma rápida vista de olhos sobre a apetecível lista de festivais de verão, uma das grandes febres (e negócios) do rectângulo lusitano, confirma que, de Paredes de Coura à Zambujeira do Mar, não há um único evento que não seja financiado por telemóveis. Na televisão, o mesmo: metade dos anúncios são sobre a nova geração 4G ou uma promoção de smartphones. Também sabemos que muitos títulos da imprensa não sobreviveriam sem estas empresas, as mesmas que escondem as cidades e os campos por trás dos seus ubíquos e horríveis cartazes outdoors. A TMN dá-se ao luxo de fazer o pleno do futebol, constituindo-se em principal patrocinador dos três clubes ditos “grandes”. E até o menor dos operadores, a Optimus, gasta em marketing quatro vezes aquilo o que gasta em novos projectos + salários e custos operacionais...

Toda esta opulência espanta-me, como me intriga a aparente despreocupação destas companhias nos tempos árduos que vivemos. Parte da explicação encontra-se em factores culturais, patentes por exemplo num estudo publicado na passada semana que descobriu que “62% dos portugueses utilizam o telemóvel mesmo durante o jantar, e 20% levam-no consigo para a cama quando vão dormir”. O pequeno gadget como extensão da personalidade. Não esqueçamos que há pelo menos 11 milhões destes bichos em Portugal, e com tendência para a multiplicação, ao passo que pessoas, essas, há cada vez menos (pois emigram).
Mas a melhor explicação para a cornucópia das operadoras é bem mais vil: falar ao telefone é aqui absurdamente caro. A observação pessoal já cada um de nós a fez, por exemplo agora durante as férias da Páscoa, e mesmo tendo o cuidado de adquirir um cartão SIM português – em poucos dias gasta-se tanto como num mês passado noutro país europeu. Absurdamente, pago menos se fizer uma chamada internacional, em roaming, com um telefone luxemburguês (35 cêntimos) do que se ligar com um telefone português para casa, cinco minutos antes de lá chegar, para perguntar o que é o jantar (36,6 cêntimos)! As comparações científicas, feitas cuidadosamente de forma a ultrapassar a (propositada) complexidade dos diferentes planos de tarifas, comprovam a ideia: os operadores portugueses dividem cuidadosamente o mercado entre si de forma a limitar a concorrência e obter um lucro obsceno, muito acima do “lucro normal” teorizado na microeconomia. A OCDE comparou quatro diferentes tipos de utilizador de telemóveis em vários dos seus Estados-membros (sendo Portugal um dos mais pobres), e invariavelmente a TMN e a Vodafone portuguesas estão entre as mais caras operadoras de telecomunicações do mundo. Num cliente de assinatura e que utilize 300 minutos de conversa por mês, conseguem mesmo a duvidosa honra de pedir o segundo preço mais alto, cinco vezes mais que para um serviço equivalente comprado no Reino Unido...

Dá vontade de glosar um recente lema publicitário da Optimus, que me perguntava insistentemente “do que é que eu preciso”. Na verdade, não preciso de muito – mas um pouco menos de ganância ajudava.

Não era suposto isto estar a acontecer


Outra vez a chata da economia. Porque ela está ali, omnipresente, mais ou menos escondida como pano de fundo de cada decisão que tomamos, mesmo que a tempestade financeira pareça ter acalmado, mesmo que nós optimistas queiramos muito ver sinais de optimismo. 

Há pelo menos dois anos que todos somos submetidos a uma lavagem cerebral sob a forma do “mantra da austeridade”. Grosso modo, a teoria é a seguinte: no eclodir de uma gigantesca crise financeira, os bancos devem ser salvos da falência com dinheiro público, e os contribuintes devem pagar todas as facturas. Uma crise causada pela ausência de regulação pública, ou se quiserem, por vivermos num Faroeste económico, torna-se depois o pretexto para a emergência do radicalismo neoclássico (a “doutrina de choque” sobre a qual escreveu Naomi Klein); e o desemprego maciço, teoricamente a ser combatido por uma política em contraciclo que se concentre no crescimento económico e na criação de emprego, é em vez disso alimentado por uma Nova Era de Austeridade, em que a despesa pública em educação, saúde ou infraestruturas é reduzida drasticamente.
A obsessão pelos “cortes” e a alegria mórbida que é sentida por ver, paulatinamente, o tecido da sociedade a degradar-se só encontra paralelo no nonsense dos Monty Python, cujo personagem do Cavaleiro Negro persistia na sua superioridade apesar de ir vendo cortados no duelo, um a um, os seus braços e pernas. “Isto é só um arranhão!”, dizia o tronco humano.

A malta da austeridade vende-nos esta via repetindo exaustivamente mais dois mantras: “não há alternativa” – mas há várias e credíveis, só necessitariam de uma Alemanha mais visionária ou de termos a coragem da Islândia, por exemplo; e “a austeridade no fundo até vai criar empregos, porque vamos recuperar credibilidade, o que vai tornar consumidores e empresas mais confiantes”. E esta confiança, supõe-se, vai fazer aumentar o consumo privado ao ponto de compensar a redução do investimento público. Ou seja, um pouco como acreditar na Fada dos Dentes.

O problema, como sempre, é a realidade. Os resultados das opções que tomámos começam a chegar – e a fotografia não é bonita de se ver. Tentar corrigir desequilíbrios não nos bons tempos, mas já em recessão, é o caminho mais curto para a depressão. A Grécia está em colapso. O desemprego em Espanha atinge os 20%, em Portugal 15% oficialmente mas provavelmente mais. A Irlanda, que fez tudo o que lhe era exigido pelos gurus da austeridade, continua em vão à espera de ver recompensado o seu zelo. Mais fundo ainda, estes países desistiram de tentar proporcionar um futuro decente às suas gerações mais novas. Um em cada dois jovens espanhóis não tem emprego, na Irlanda e em Portugal é um em cada três. O governo português está agora mais preocupado em convencer os seus jovens a fugir do país. Entretanto, a contracção económica agrava-se – talvez -4% em Portugal este ano – e o problema inicial, a dívida, torna-se cada vez mais difícil de pagar.

O “caminho único” não previa sofrimento infinito e não era suposto isto estar a acontecer. Mas está, e não há luz ao fundo do túnel.

Juncker está fora da UEFA

Para que serve o Eurogrupo? Está desculpado se não puder responder a esta questão, caríssimo leitor(a), ou mesmo se pensar que estamos a referir-nos à primeira fase da Liga dos Campeões em futebol. A verdade é que a “reunião informal de ministros das Finanças dos 17 países que compõem a zona euro” nem sequer tem um nome oficial designado nos tratados europeus, e as suas funções económicas e políticas repetem as desempenhadas por outros órgãos e cargos: o Banco Central Europeu, o presidente permanente do Conselho Europeu, o comissário europeu para os assuntos económicos, o conselho de ministros das Finanças (Ecofin, que reúne todos os 27 países, enquanto o Eurogrupo apenas reúne os 17 que utilizam o euro)...

Com o tempo, foi no entanto esta construção informal (tão informal que não existiam regras escritas para a sua existência até 2009) que se consagrou como a mais importante na arquitectura do euro e na governação económica de toda a Europa – e há poucas tarefas mais importantes no mundo político que esta. As características do grupo assim o proporcionaram: os 17 ministros das Finanças gerem todos a mesma moeda, por isso têm interesses similares, e tendem a ser menos demagógicos (e já agora, é suposto perceberem bastante mais de economia) que os políticos de carreira que chegam habitualmente a primeiro-ministro. E mais uma vez, o Luxemburgo beneficiou das suas fraquezas para conseguir um lugar de destaque nesta instituição de poder: como o país é inofensivamente pequeno e ocupa uma posição de charneira entre a França e a Alemanha, foi considerado campo neutro: o primeiro Eurogrupo deu-se em 1998 no castelo de Senningen, e em 2005, quando foi eleito um presidente permanente, a escolha lógica recaiu sobre o economista luxemburguês Jean-Claude Juncker. Até agora foi ele o único a ocupar o cargo, indo já no seu quarto mandato, que termina em Junho. “Certamente não serei eu”, disse Juncker quanto questionado sobre quem lhe vai suceder.

Não admira. Em Junho próximo, as capitais europeias verão com alívio a saída de cena de um homem directo (até algo brusco), que não tem problemas em dizer o que pensa e pensa muitas coisas, demasiadas mesmo – até porque algumas delas contraditórias. Sobretudo, Juncker será lembrado por não ter sabido ou querido actuar no momento e na medida certos para impedir a crise, o pânico e o quase desmembramento da moeda de que era suposto ser o mais activo defensor. Com um guarda-redes tão inactivo é difícil obter resultados nas competições europeias, e Merkel já avisou que a partir de agora será o seu próprio ministro – Schäuble – a defender os ataques.

A ironia é que, apesar do prestígio intramuros de que goza o homem que gere os destinos do país desde 1995 e o único luxemburguês a presidir a uma organização internacional (e também o único oriundo do país que é conhecido fora das suas fronteiras), Juncker, o europeísta,  abandona a Europa pela porta pequena: não conseguiu presidir à Comissão Europeia (batido por Barroso), não foi escolhido para primeiro presidente permanente do Conselho Europeu (batido no prolongamento por Van Rompuy) e não conseguiu realizar um bom trabalho como “senhor Euro” ao longo de sete anos. Se voltar ao grande palco internacional – do que duvido –, o seu próximo cargo será apenas honorífico.

O vídeo viral que pôs o Uganda no mapa

No dia 5 de março, a organização não governamental Invisible Children (Crianças Invisíveis) pôs um vídeo de meia hora de duração no YouTube. Ao fim do primeiro dia, o vídeo tinha sido visto 10 milhões de vezes. Ao fim de três dias, o contador já tinha ultrapassado a marca dos 52 milhões. E hoje, duas semanas após ter sido colocado em linha, o vídeo original mais as respostas também em vídeo que ele originou já foi visto mais de 100 milhões de vezes - o mais rápido da história a atingir essa marca.


O longo vídeo, apenas em inglês, não é engraçado nem musical e muito menos romântico: é sobre activismo político, sobre a guerra num miserável canto do planeta, sobre temas que ensombram o nosso mundo. E é feito a partir de uma visão muito americana - claramente maniqueísta e simplificada para um problema tremendamente agudo e complexo. Fala de um bárbaro, Joseph Kony, que durante anos aterrorizou o Uganda e países vizinhos durante uma guerra suja e sem quartel - como se assim não fossem todas... Kony recrutou, ao longo de anos, milhares de crianças (calcula-se que 60 mil), os rapazes como soldados, as raparigas como escravas sexuais. Quem se negava a fazê-lo era torturado ou desaparecia. E tais atrocidades passaram-se ao longo de uma década, o que levou Kony a ser procurado pelo Tribunal Penal Internacional - mas como encontrar um ditador todo-poderoso no meio da selva sem fim não dispondo de quaisquer meios para o fazer? Talvez por isso mesmo o procurador-geral do TPI fez um elogio sentido ao vídeo originário da Califórnia: "Isto foi feito por uns miúdos que podiam estar a surfar ou qualquer outra coisa, mas escolheram fazer isto. Estão a dar voz a pessoas que ninguém sabia que existiam e por quem ninguém se preocupava. E por isso saúdo-os".

Mesmo que simplificado, o activismo engagé destes putos californianos merece o respeito e admiração de todos. Pelo menos, do meu. Mas a chuva de reacções negativas acaba de levar o realizador e protagonista do filme, Jason Russell, 33 anos (e cara de surfista, efectivamente), a um esgotamento nervoso: em duas semanas, a Invisible Children foi acusada de só gastar 32% do que recebe nas actividades que se propõe financiar (o resto é em salários e outros custos), enquanto o filme, argumenta-se, "erra o alvo": irritou os ugandeses ao proclamar "vamos tornar Kony famoso" (uma expressão americana interpretada à letra no Uganda), irritou os diplomatas ao reduzir toda a guerra a um homem maléfico, irritou os especialistas no terreno que afirmam que "abrir uma caça ao homem sabendo que Kony já não mora aqui, e não referindo o fim da guerra e a reconstrução que decorrem agora no Uganda, é reabrir feridas desnecessariamente".

Mas o que ninguém nega é o sucesso estrondoso de uma campanha viral, baseada nas redes sociais da internet, e adoptada sobretudo por pessoas menores de 25 anos - as tais que têm a reputação de ocas e apáticas. Este sucesso deu muito trabalho - e trabalho de sapa: a Invisible Children tem anos de filmes activistas, trabalho porta-a-porta em universidades, milhares de seguidores no Twitter, narrativas fortes e focadas, e uma escolha criteriosa de celebridades que propagam a sua mensagem. Quase tão importante, não se escondeu quando criticada: o presidente da organização respondeu aos ataques ponto por ponto, sem se desviar de nenhum. Lições a aprender por todos que querem ser ouvidos - activistas sociais, políticos, empresas ou media.