Proponho ao leitor um exercício: imagine que é dia de Natal, que está rodeado daqueles de quem mais gosta, e que o bacalhau e o perú estão quase a sair do forno. De repente, alguém ouve na televisão que o supermercado da sua rua tem produtos com 50% de desconto - e a debandada na sua sala é imediata e inevitável. O leitor, que nem tem paciência para ir às compras, ficou sozinho sentado à mesa, enquanto o resto da família passou o resto da tarde engalfinhado a lutar com o vizinho do lado pela última garrafa de detergente para a louça que ainda sobrava na prateleira dos produtos para a cozinha.
Grosso modo, foi isto que se passou em
Portugal na semana passada, não no Natal, mas sim no dia do Trabalhador. Uma
cadeia de supermercados, conhecida por ao longo de 17 anos de existência ser
contra a estratégia de fazer promoções (ficou agora famosa, por exemplo, a
campanha publicitária de há dois anos onde a mesma marca, referindo-se aos
concorrentes, perguntava aos clientes "já pensou que se há condições para
baixar os preços um dia, é porque eles são demasiado altos em todos os outros
dias?"), optou no dia 1 de Maio por uma ofensiva de choque: sem o anunciar
previamente, cortou para metade, só naquele dia, o preço dos seus produtos para
a casa ou alimentares (nos quais os supermercados têm em média margens de 70% -
logo, há mesmo condições para baixar os preços). O balanço foi extraordinário
para a empresa, que esvaziou os seus stocks
por todo o país, e colocou o seu nome firmemente nas bocas do mundo; um
golpe profundo de marketing de que os
supermercados (agora) holandeses bem necessitavam após ter perdido 1% de
clientes exactamente ao mudar a sua sede (e os seus impostos) de Portugal para
os Países Baixos...
O rescaldo da operação é bem menos meigo para
os trabalhadores, que somos, fomos ou seremos todos. Desde logo, existe um
desrespeito de cada um para consigo próprio: estragar horas preciosas de um dia
de lazer primaveril, feito à medida para se respirar fundo, estar com os filhos,
ir ao parque ou à praia ou ao café, e trocá-lo pela claustrofobia de um templo
do consumo iluminado a lâmpadas fluorescentes e apinhado, é um verdadeiro
atentado à própria dignidade pessoal - sobretudo quando a loucura colectiva
impele a andar ao soco pelo último pacote de Skip (verídico, e não inédito, já
que a polícia tomou nota de 50 ocorrências do género naquele dia). Em seguida
há um dilema de respeito histórico: o feriado de 1 de Maio tem as suas origens
em 1886 quando, em Chicago, a polícia disparou sobre a multidão que se
manifestava a favor de dia de trabalho de "apenas" 8 horas, e em
1955, o Vaticano consagrou o dia como dedicado "a S. José, o padroeiro dos
trabalhadores". Mas esses trabalhadores, envergonhados da palavra que os
classifica como tal; incrédulos na utilidade dos sindicatos; aspirantes
perpétuos a subir tanto na vida que esta os liberte da grilheta do trabalho e
do cinzentismo da sua condição; incapazes de sair do sofá para se indignar
contra o enésimo corte no investimento público em educação ou saúde; esses
trabalhadores, no dia que os celebra, votam com os pés - não fugindo, nem em
manifestações, mas sim pregando uma rasteira ao adversário na busca dos últimos
espinafres ultracongelados. Como dizia o sociólogo Villaverde Cabral,
"hoje a figura do consumidor é mais importante que a do trabalhador"
- e esta é talvez a lição mais sórdida do 1.º de Maio de 2012.
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