quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Honestos passageiros de todo o mundo, revoltai-vos!

Sejamos sinceros: viajar de avião é um suplício. E as coisas vão piorar depois de dois incidentes ocorridos esta semana, ambos em aviões a viajar de Amesterdão para Detroit. O primeiro provavelmente real, o segundo nem por isso (mas já lá vamos).

Imediatamente – e ainda antes de alguém averiguar o que se passou ao certo nos dois aviões - companhias de aviação e aeroportos se uniram para reclamar “novas medidas de segurança”. Tradução: mais atrasos, mais filas, mais invasões da privacidade, mais aborrecimentos, mais custos. Custos para os pobres passageiros, evidentemente, que suportam a subida astronómica das taxas aeroportuárias nos últimos anos (o Porto já cobra mais de 35 euros por uma partida, um dos mais altos valores da Europa). Centenas de milhares de pessoas, após um árduo ano, não têm outra alternativa senão pagar preços inflacionadíssimos só para passar alguns dias com a família no Natal – mas tal não os livra de serem tratados alternadamente como gado e como mina de ouro ambulante. Primeiro o gado: os requisitos estapafúrdios, a pouca simpatia recebida, as filas labirínticas, o descalçar, o abrir as malas. Depois a mina de ouro: não bastando o enorme número de empregos em todo o tipo de vigilantes de aeroporto (cujas atribuições, curiosamente, não parecem impedir o roubo de malas), há ainda uma parafernália de lojas de aeroporto cheias de artigos inúteis e a preços monopolistas para visitar… e quanto mais tempo for possível obrigar as pessoas a passar dentro das instalações, melhor.

O segundo incidente ocorrido num voo para Detroit esta semana não passou de um passageiro que “esteve cerca de uma hora na casa-de-banho e, quando interpelado, reagiu mal”, segundo comunicou o FBI. Discussões deste género acontecem milhares de vezes por dia, e até na minha casa-de-banho. Mas esta, propositadamente repetida e amplificada por todos os media mundiais, servirá de pretexto para “medidas” como a Air Canada já anunciou: na última hora do voo, todos os passageiros são obrigados a ficar colados ao assento. Outras companhias pensam proibir o acesso à própria bagagem de mão. Numa decisão que é pelo menos mais honesta – porque busca declaradamente o lucro sem estar travestida de “medida de segurança” – a Ryanair vai começar a cobrar 1 euro por cada utilização das “toilettes” – há uns anos, em Portugal, o controlo do tempo aí passado pelas funcionárias de empresas têxteis provocou um clamor social, mas vemos agora que tais tácticas humilhantes pecavam apenas pelo amadorismo.

Tanta imaginação para extorquir mais tempo e dinheiro aos passageiros, mas basta um dia de neve como o passado 20 de Dezembro para cancelar os voos de meia Europa, como se a água congelada fosse uma ameaça tão letal e inesperada. Definitivamente, as companhias de aviação não estão de acordo com a máxima de que a viagem faz parte integrante do prazer de viajar.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

As duas fugas de informação que ameaçam Copenhaga

Há uma regra que se aplica sem falhas à História da Humanidade: a informação circula cada vez mais depressa e em maior quantidade. A (errónea) lenda afirma que o pobre soldado grego Fidípides morreu exausto ao chegar a Atenas com a notícia (contida numa só palavra, “ganhámos”) da vitória sobre os persas em 490 AC, depois de correr 42 km, incidentalmente criando a prova da maratona; hoje, qualquer jogo de futebol entre a Grécia e o Irão, mesmo provavelmente aborrecido, pode ser seguido em tempo real por ecrã de telemóvel na América do Sul. Há um corolário daquela regra, apesar de bastante mais difícil de provar: é cada vez mais difícil impor restrições à informação e mantê-la confidencial. O segredo pode fugir para o grande público e provocar efeitos imprevisíveis – dois desses casos ameaçam esta semana o sucesso da crucial cimeira de Copenhaga sobre as alterações climáticas.

Fuga 1: o “ClimateGate”. A 17 de Novembro, um site de hackers publicou emails internos trocados ao longo de 13 anos por investigadores da Universidade de East Anglia, um dos centros de investigação climática mais avançados do mundo, incluindo sugestões sobre a necessidade de disfarçar o facto de as temperaturas médias globais não estarem a subir nos últimos anos. Os (poucos) cientistas “cépticos” amplificaram as passagens mais sumarentas, enquanto em Copenhaga, a Arábia Saudita – maior produtor mundial de petróleo – afirmou que o caso vem colocar dúvidas sobre as bases em que são feitas as negociações, enquanto nos EUA, imersos uma grande discussão interna sobre o clima, o Climategate já foi aproveitado como argumento pelos republicanos.

Fuga 2: o “Texto dinamarquês”. Um rascunho do acordo a assinar em Copenhaga, elaborado em segredo por um grupo de indivíduos que ficou conhecido como "o círculo do compromisso", foi terminado há algumas semanas, mostrado a um grupo muito restrito de países (desenvolvidos) e só deveria ser conhecido dentro de alguns dias. Mas na terça-feira foi publicado no “Guardian” (o mesmo jornal que tinha noticiado a fuga 1…) e provocou uma reacção furiosa dos países em desenvolvimento, que se sentem atraídos para uma cimeira onde tudo já estaria decidido de antemão – e em seu desfavor.

Ambas as fugas fariam apenas parte da “petite histoire” não fora pelo inconveniente pano de fundo: o esmagador consenso científico – intocado pelas fugas referidas – de que a acção do Homem está a mudar o clima; de que os oceanos estão a subir e as catástrofes naturais a aumentar; que o esforço, nomeadamente de redução de CO2, da nossa geração e seguintes terá de ser enorme, dando à cimeira que acaba na sexta em Copenhaga laivos de oportunidade imperdível. É que há uma máxima incontornável: o planeta Terra não tem uma capacidade infinita…

O anticlímax de Lisboa


Acaba de entrar em vigor, por fim, o Tratado de Lisboa. 1 de Dezembro de 2009 é uma data que vai figurar em todos os compêndios históricos sobre a União Europeia; a partir deste dia, foi dado mais um passo importante para a unificação do continente, para o melhor funcionamento das suas instituições e para o crescimento da presença europeia no mundo.

As primeiras decisões importantes tomadas sob a égide do novo tratado foram, naturalmente, sobre quem iria preencher os imponentes novos cargos criados na constelação dourada e azul. E a União, masoquista, decidiu não em função de si própria e dos seus interesses comuns (sobretudo exteriores), mas sim tomando em conta todas as suas limitações internas. Foi escolhido quem (ao contrário de Juncker com Sarkozy, por exemplo) nunca tinha aborrecido ninguém. Ou seja, perfeitos desconhecidos.

É legítimo perguntar neste momento: era mesmo necessário criar um novo cargo de presidente do Conselho que se sobrepõe ao já existente? Se a intenção era entregá-lo a um obscuro e veterano burocrata cuja visão sobre a Europa era desconhecida até há menos de um mês atrás, quando Van Rompuy fez um discurso de alguns minutos numa reunião do grupo Bilderberg – um poderoso clube que prima pelo secretismo –, então a resposta seria provavelmente não. Se a isto adicionarmos uma Alta Representante, Catherine Ashton, que nunca foi eleita para qualquer cargo, era há cinco anos subsecretária de Estado responsável pelos arquivos do parlamento inglês e não tem qualquer tipo de experiência diplomática, obtemos a receita para uma Europa funcionando em circuito fechado. O temido “método intergovernamental” entrou em acção; mais uma vez, os grandes países obtiveram o que desejavam, eminências pardas que não lhes fazem sombra – e dão uma pálida imagem de uma Europa que se arrisca, a continuar por este caminho sinuoso, a acordar num mundo irremediavelmente dividido entre EUA e China. E isto quando a União Europeia a 27 representa a maior economia do mundo!

A Europa foi desiludida. Onde lhe prometeram coragem, deram-lhe modéstia. Onde deveria estar a potência política, está um ex-primeiro-ministro tardio, temporário e não sufragado. Onde era preciso um símbolo de união, foi colocado um especialista da diversidade. A desejada independência da diplomacia europeia vai ser posta em marcha por uma oriunda da Grã-Bretanha, tradicional seguidora dos Estados Unidos.

Lisboa, como panaceia dos males de que padece a indecisa Europa, começa mal. Mas estas personalidades podem sempre revelar-se óptimas e agradáveis surpresas – e dada as baixas expectativas, têm mesmo todas as condições para isso. É mais que tempo de deixar de tergiversar e passar a agir – o comboio da História não espera por ninguém, nem mesmo pelo belo ideal de uma Europa em paz, livre, próspera e unida.