terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A nova jangada de pedra

“Jangada de Pedra” é um dos títulos mais bem conseguidos na obra de José Saramago. Escrito em 1986, o ano em que Portugal e Espanha aderiram finalmente à União Europeia, o livro disfarçava mal o pessimismo antieuropeísta do seu autor: nele a Península Ibérica separava-se do continente (um gigantesco corte na terra por altura dos Pirinéus) e começava a vaguear à deriva pelos sete oceanos, qual gigantesca balsa, perante a fúria impotente dos líderes dos restantes países europeus que insistiam em tratar portugueses e espanhóis com paternalismo e prepotência.

O romance é uma ficção e, com licença da presente crise, as previsões catastrofistas do Nobel português não se confirmaram – Portugal e Espanha estão hoje no coração da Europa, como aliás quase sempre fizeram ao longo da História. Mas o Velho Continente tem uma nova jangada de pedra: o Reino Unido. Ou melhor, a Grã-Bretanha. O absurdo da voragem isolacionista é tamanho, que nem conhecemos exactamente os limites do território a (possivelmente) separar.

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, anunciou ao mundo que o seu país vai decidir em referendo se se mantém, ou não, na União Europeia. Dito assim, poderia ser uma ideia bem-vinda que contribuísse para uma clarificação, há muito necessária, das relações entre o Reino Unido e os seus parceiros europeus. Os britânicos sempre estiveram com um pé fora e outro dentro da UE, o que lhes vale (e de forma crescente) a pouca abonatória reputação de não passarem de um cavalo de Tróia dos interesses americanos; nunca esquecerei a explicação que Sir Humphrey deu ao seu superior hierárquico na impecável série televisiva “Sim, senhor Ministro” (já em 1982!), em que era dito: “Nós decidimos aderir à Comunidade Europeia porque não estavamos a conseguir sabotá-la por fora, é mais fácil fazê-lo a partir de dentro”.

Essa clarificação nunca chegará. Cameron desceu a um ponto politicamente muito baixo, além de altamente irresponsável: está a usar a Europa como arma de arremesso no jogo partidário. Prometeu um referendo “se ganhasse as próximas eleições” – estamos assim a falar de uma mera promessa eleitoral cavalgando o imaginado populismo eurocéptico, ao pior estilo “votem em mim que eu vos guairei para fora da Europa”. A oposição, tanto os trabalhistas indecisos sobre o que pensar de um referendo que pode ter um resultado catastrófico para a economia do país como os extremistas de direita, ficaram agora confusos sobre o sua própria estratégia. Mas o que o PM fez foi prometer um referendo se conseguisse “renegociar a ligação do seu país à Europa” – o que isoladamente só poderá fazer sentido para assuntos menores, dado que o Reino Unido já não faz parte de muitas das políticas pan-europeias, como Schengen, o euro ou a Carta Social; e conjuntamente, ou seja se estivermos a falar de um novo tratado, levará muito provavelmente a um aprofundar dos laços e um passo na direcção do federalismo, ou seja, precisamente o contrário do desejado pelos eurocépticos. E como cereja no topo do bolo, ainda há a incógnita da Escócia, que tem em 2014 o seu próprio referendo sobre a independência – e não se quer separar da Europa. Uma confusão.

O Reino Unido teria muito mais a perder com uma “brexit” que a própria Europa, mas não nos enganemos: a Europa também precisa dos britânicos, da sua cultura, economia ou influência, da sua visão pragmática, das suas muitas qualidades. Mas para estes, começa a ser tarde. O ressentimento acumulado pelos seus erros históricos, a arrogância das suas elites e a ambiguidade permanente em relação ao carácter europeu ou antieuropeu do país já cansam, e provocam que muitos desejem ver esta pequena jangada pelas costas, vogando sem destino pelo mar do Norte.

Schadenfreude


Sendo uma língua historicamente tão importante (a sétima mais falada em todo o globo, nunca é demais recordá-lo), é natural que o português tenha emprestado ao mundo algumas palavras hoje universais. Muitas destas provêm do Brasil, como “papagaio” ou “guaraná”, outras da miscigenação característica do império, como “crioulo”, outras ainda remetem para períodos negros da nossa História – não é um facto muito conhecido entre nós, mas “auto-de-fé” é comummente compreendido nas outras línguas ocidentais. Para equilibrar, há também palavras portuguesas universais que afagam e acariciam, como “bossa nova”.
Paralelamente, também o alemão emprestou o seu próprio conjunto – reduzido, que as  características intrínsecas da língua alemã lhe retiram universalidade – ao léxico mundial. Muitas dessas palavras advêm do campo da filosofia e são impronunciáveis (é mais fácil escrever do que dizer “weltanschauung”), outras reflectem o passado guerreiro do país, como “blitzkrieg”. Para mim, no entanto, nenhuma palavra é tão interessante como schadenfreude: o sentimento de alegria perante a desgraça alheia. Um prazer inconfessável, e no entanto tão humano; um conceito que na rígida língua germânica pode ser expressado recorrendo a uma única palavra. Meio a sério meio a brincar, podem ser acrescentadas mais algumas: “Schadenfreude é a alegria mais bela, já que vem de coração”.

É irónico que a schadenfreude tenha sido inventada na Alemanha – pois é daí que chegam as notícias que provocam uma certa alegria proibida pelo infortúnio alheio: a economia alemã, suposto motor de um espaço económico europeu deprimido, está a abrandar. No último trimestre de 2012, regrediu mesmo (0,5 pontos percentuais), e as perspectivas para 2013 são incertas. Sim, é óbvio que à primeira vista isto são más notícias para a Europa e em particular para Portugal – que depende em grande parte do grande mercado alemão para exportar os seus produtos. Mas o abrandamento do baluarte da austeridade, o país que tem a prerrogativa de ditar a política económica do continente – repleta de opções erradas tomadas no momento errado, e que nos está a fazer sofrer, a quase todos, muito mais daquilo que seria necessário, ao mesmo tempo que nos atola numa espiral destrutiva que torna a recuperação muito mais difícil enquanto beneficia para si próprio de condições muito mais favoráveis dos mercados, incluindo taxas de juro negativas – pode vir a ter o condão de finalmente incutir algum bom-senso económico na equipa da primeira-ministra Merkel.

Pelo quinto ano consecutivo, é preciso dizê-lo: a austeridade não está a funcionar. Para a Alemanha, até agora, a situação tem sido razoável comparada com a deprimida periferia mediterrânica – mas na verdade, quando deixada em perspectiva histórica e mundial, a performance da economia alemã tem sido simplesmente sofrível. O professor Paul De Grauwe, da LSE, afirma-o com todas as letras e acrescenta que se a economia não recuperar até às eleições gerais alemãs de Setembro, Merkel será forçada a abandonar a obsessão pelo défice e abraçar finalmente políticas orientadas para o consumo e o crescimento – ou arriscar-se a perder as eleições e falhar o seu terceiro mandato. Ambas as possibilidades configuram óptimas razões para um pouco de schadenfreude esta semana.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O homem que se triturou contra o sistema

A internet tem as suas próprias tragédias. Na semana passada sucedeu uma, e as ondas de choque ainda reverberam: de repente, os cidadãos digitais mais atentos apercebem-se da incrível importância de um homem de nome Aaron Swartz. E no entanto agora é tarde demais, porque Swartz desapareceu na sexta-feira, aos 26 anos de idade.

O menino-prodígio que aos 14 anos inventou a tecnologia RSS – hoje em dia ubíqua na rede, permitindo aos utilizadores receberem feeds com actualizações em tempo real com, por exemplo, notícias – tinha escrito o seu manifesto, “Guerrilha pelo Acesso Livre”, em 2008, o ano da grande crise; o livro abria com a frase “A informação é poder. E, como acontece com todo o poder, há aqueles que a querem guardar só para si”. Swartz, avesso a todas as formas de controlo abusivo, era um enorme paladino do acesso de todos à informação; ao defender a sua causa, estabelecia ao mesmo tempo para si próprio (e para os que o rodeavam, o que tornava as suas relações pessoais mais difíceis) padrões morais e intelectuais altíssimos, quase impossíveis de alcançar.

O ideal filosófico de que a informação é poder e deve ser partilhada livremente presidiu à concepção da Rede tal como a conhecemos (e não por acaso o “pai” da mesma, Tim Berners-Lee, foi dos primeiros a lamentar publicamente a perda de Swartz). Desde então, está sob constante ataque por parte de governos e corporações, interessados em manter os seus súbditos (nós) ignorantes e logo mais facilmente manipuláveis. Swartz era apenas uma pessoa, um jovem cuja inteligência prodigiosa lhe permitia encetar acções anti-sistema que considerava justas – como escrever um elegante programa de computador que permitia o acesso grátis a registos legais que eram antes duplamente pagos, por exemplo, ou ajudar a derrotar uma lei feita à medida das companhias discográficas, por exemplo. O dinossáurico sistema, bem entendido, queria usar a cabeça daquele idealista como exemplo disuassor e esperava uma oportunidade para se vingar; esta surgiu quando Swartz descarregou para o seu computador portátil 4,8 milhões de trabalhos científicos da base de dados do MIT, uma das mais prestigiadas universidades do mundo, de forma a disseminar esse conhecimento livre e gratuitamente pelo mundo em linha.

“Chamam-lhe roubo ou pirataria, como se partilhar a riqueza do conhecimento fosse o equivalente moral a pilhar um navio e assassinar a tripulação... mas partilhar não é imoral – é sim um imperativo moral. Apenas aqueles cegos pela ganância recusariam deixar um amigo fazer uma cópia.” O governo norte-americano não se impressionou com a profecia e levou Swartz a tribunal, mesmo após o MIT ter desistido da queixa. O julgamento começaria em abril próximo e a pena poderia ir até aos 35 anos de prisão, mais do dobro da pena máxima para assalto à mão armada. O homem de 26 anos que desafiou o sistema soçobrou perante a insanidade da palhaçada travestida de justiça, e foi encontrado sem vida em casa. Agora, a internet está inundada de chocados tributos a alguém excepcional – um idealista, um visionário, um pequeno génio irascível, um promotor do conhecimento humano, um homem de princípios irrevogáveis. Provavelmente um pouco de tudo isto, mas para mim o melhor elogio que se (lhe) pode fazer é: um valoroso defensor da liberdade.

O mundo fervilhante dos telefones móveis

Depois de uma noite de copos em 1909, o poeta italiano Marinetti escreveu: “Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, pois criámos a eterna velocidade omnipresente”. Este era o ponto 8 (em 20) do Manifesto Futurista, que criou uma nova escola artística de ruptura radical (até porque preconizava a destruição dos museus...) com as correntes vigentes até aí. O Futurismo teve grande influência nas artes, mas a sua aplicação hoje, mais de um século depois, está na tecnologia. E nada melhor para o lembrar que o início de um novo ano, altura boa para balanços e previsões.

Esta é também a altura em que Las Vegas tenta esquecer o seu triste lado de capital mundial do kitsch e do desperdício de água, engalanando-se para receber a CES, a grande feira de eletrónica de consumo. 3000 expositores apresentam as novidades tecnológicas do amanhã que podemos comprar já hoje e rapidamente se tornarão símbolos do ontem – afinal, vivemos na eterna velocidade omnipresente. A CES, que começou por ser uma montra da última palavra em áudio e vídeo, rendeu-se aos computadores na década de 70; hoje em dia, está centradíssima nos telemóveis, porque é nesta área que se concentra toda a verdadeira inovação do ramo. O discurso de abertura da feira (a ser proferido sensivelmente ao mesmo tempo que estas linhas são publicadas) já não provem da Microsoft, que nem sequer estará presente no certame, mas sim da Qualcomm – uma pequena companhia que fabrica processadores para smartphones.

Que nos trará 2013 na esfera da tecnologia móvel? O lucrativo mercado que criou dois pesos-pesados, Samsung e Apple, está a encorajar as altas ambições de outros novos e velhos contendores: HTC, Nokia, Sony e Motorola, mas também a Amazon e talvez mesmo o Facebook preparam os seus próprios modelos de telefone. Em sistemas operativos, a dominação global do Android (que equipa 75% dos smartphones) não deverá sofrer contestação dos restantes sistemas, sejam eles iOS, Windows 8 ou Blackberry 10; mas a entrada de novos sistemas open source, o Firefox para telefones e o Tizen, promete libertar os utilizadores das grilhetas associadas a grandes corporações.

2013 será também o ano em que os pagamentos por telefone graças à tecnologia NFC, já presente em vários modelos Android mas não no iPhone, se começarão a banalizar. Mas o mais interessante estará porventura no aparecimento de telemóveis flexíveis: a tecnologia para criar ecrãs que se dobram como uma folha de papel já existe (baseia-se num díodo orgânico), e tanto a Nokia como a Samsung parecem apostadas em criar o primeiro modelo com esta base. A companhia finlandesa também deixou toda a gente boquiaberta em 2012 ao lançar um modelo com uma máquina fotográfica capaz de atingir 41 Mpixeís de definição – 2013 poderá trazer aos telefones câmaras 3D, e inclusive uma máquina desenvolvida pela Toshiba que “adivinha” a nossa intenção e dispara ainda antes de carregarmos no botão...

Toda esta inovação começa a ter vontade de transbordar do nosso telefone para outros objectos que utilizamos. 2013 pode também ser o ano dos relógios de pulso, sapatos, calças ou óculos inteligentes, cheios de sensores e informação útil. O limite, aqui, é mais uma vez o céu; nem o Movimento Futurista alguma vez imaginou que as mudanças se processassem a tamanha velocidade.

Roubar sim... mas sempre dentro da lei

O Tribunal de Justiça da União Europeia (que por acaso se situa no Luxemburgo) acabou de decidir: Lisboa não será castigada por desviar os fundos europeus que se destinavam originalmente às três regiões mais pobres de Portugal – o Alentejo, o Norte e o Centro do país. Por outras palavras, o menino bem alimentado roubou a comida do prato dos irmãos famintos mesmo debaixo dos seus narizes, e os papás acabam de dizer que não há qualquer problema – e isto apesar do tal irmão gordinho andar a levar más notas na escola.

Há muito tempo (demasiado segundo alguns; desde os primórdios do império segundo outros, mas seguramente desde a regência do marquês de Pombal) que Lisboa canibaliza o país que governa, sugando recursos e oportunidades de forma centrífuga, criando um país macrocéfalo - com uma cabeça enorme, mas sem pernas para andar ou braços para trabalhar. Nas últimas décadas, esse efeito intensificou-se até ao absurdo: aguaceiros de investimento público caíram sobre a capital, em autoestradas (que continuam maioritária e tranquilamente grátis para o utilizador), centros culturais/comerciais, expo98s, hospitais, escolas, estações de metro sumptuosas, renovações totais do aeroporto (o que não impediu a vontade de empenhar as jóias em construir um novo), gares para comboios rápidos (que ainda não existem)... ao invés de, como numa verdadeira democracia europeia, procurar aplanar o "terreno de jogo" e oferecer a todos os portugueses as mesmas oportunidades e a mesma qualidade de vida, o Estado português sempre fez precisamente o contrário: cobrou os impostos pagos por todos e gastou-os em esmagadora medida em apenas um local, sempre o mesmo privilegiado, de forma a guindá-lo ao estatuto de "grande capital europeia" que Lisboa, por complexo, sempre almejou. E ao entrar na União Europeia em 1986, inebriado pela bonança dos fundos europeus vindos de Bruxelas, o Estado lisboeta perdeu as estribeiras e a vergonha. No espaço de 20 anos, a "região" de Lisboa (não uma verdadeira região, claro, dado que a regionalização do país, apesar de inscrita na Constituição, não serve os interesses da capital e sempre será combatida por esta) enriqueceu de forma espectacular e, partindo de 70% da média europeia, está agora nos 107% - ou seja, na metade superior na tabela. Isto enquanto o resto do país se afunda na recessão e no desespero.

Nada acontece por acaso; as escolhas políticas e económicas têm consequências profundas na vida das pessoas. O Estado português gastou o que tinha e o que não tinha para desenvolver Lisboa; a parte de "o que não tinha" é esmagadoramente responsável por um défice público impossível de derrubar e uma dívida pública que passou de 60 a 120% do PIB em uma década. Agora, todos os portugueses são chamados a pagar a factura - e esta continua a aumentar (por exemplo, em breve abrirá um novo luxuoso hospital público em Lisboa, o de Todos os Santos, ao passo que no resto do país eles continuam a encerrar).

Há muito libertos de qualquer constrangimento ético ou moral, os políticos de Lisboa recorrem agora ao assalto puro e simples: como a região já não é elegível para receber fundos europeus, eles desviaram os fundos que estavam destinados às zonas mais pobres do país e investiram-nos... em si mesmos (60% dos fundos comunitários continuam a ter como beneficiário o próprio Estado português e não os agentes privados a que se destinariam...) Lamentavelmente, foi esta prática que acaba de ser considerada curial pela UE. O argumento é que, concentrando o dinheiro em Lisboa, haverá um efeito mágico que levará algum do mesmo a "transbordar" do copo e beneficiar ligeiramente as zonas à volta. Esperemos é essas gotitas de bem-estar transbordem rapidamente para as bocas abertas de fome no resto de Portugal - antes que estas tenham emigrado todas.

O Louvre já não é só em Paris

Uma antiga cidadezinha mineira de 36000 habitantes, sem história ou monumentos relevantes e economicamente deprimida tal como a sua zona circundante, é um local altamente improvável para que ali seja possível encontrar um quadro de Leonardo ou Rubens. Se a esta hipótese adicionarmos um enorme museu cheio de preciosidades culturais e construído na vanguarda da técnica, e no topo de tudo chamarmos a este museu "Louvre", então entramos no domínio onírico da realidade alternativa. E no entanto... é exactamente isso que se passa em Lens, no norte de França, a uns meros 300 km do Luxemburgo.

O Louvre já não é só em Paris. A veneranda instituição fundada em 1793 decidiu começar a rentabilizar a sua "marca", provavelmente a mais forte do mundo no que à cultura diz respeito; ciumento do sucesso relativo dos seus competidores (o Guggenheim, a quem é creditado o renascimento de uma cidade inteira, Bilbao, a partir de um novo museu, ou o Centro Pompidou, que criou em Metz um novo farol arquitectónico), o Louvre avança agora timidamente para a conquista do mundo, abrindo duas franchises em sítios antes desprovidos de alma cultural. O Louvre-Lens abriu as portas na semana passada, a 12 de Dezembro; daqui a três anos, será a vez do Louvre-Abu Dhabi. O emirado desértico e rico em petróleo pagou uma soma absolutamente astronómica (832 milhões de euros) pelo direito de usar o nome durante 30 anos; parece um grande negócio, mas a estratégia de "McDonaldização" do maior repositório da arte mundial tem valido ao museu fortíssimas acusações de ter vendido a sua alma por um pouco mais de trinta dinheiros. Nestas considerações éticas nunca entra, infelizmente, a forma como o museu reuniu grande parte da sua colecção inicial, roubando e pilhando outros países através do "braço armado" que era o exército napoleónico. Portugal, em particular, muito perdeu durante essa altura, com igrejas e colecções particulares a serem esventradas por soldados franceses e britânicos das suas preciosidades antiquíssimas (isso sim, muitas delas por sua vez pilhadas das colónias do império, no Brasil, Índia ou África). A propósito, existem actualmente existem vários Estados soberanos, com Grécia, Turquia e Egipto à cabeça, que reclamam a restituição das riquezas subtraídas ao seu solo, e seria mais que tempo de Portugal se juntar ao mesmo grupo de pressão.


Perdidas na bruma do tempo, algumas destas peças que um dia adornaram, por exemplo, um altar minhoto ou uma casa rica no Porto encontram agora o seu caminho até Lens, dispostas na extraordinária "Galeria do Tempo" – uma sala enorme, sem pilares, onde os tesouros são expostos por ordem cronológica e paralela entre as diferentes civilizações, podendo ser visitadas transversal ou verticalmente e sublinhando o diálogo existente entre diferentes eras e culturas. É uma experiência enriquecedora e fascinante que se inicia logo pela visão do serpenteante edifício do museu imaginado pelos japoneses do gabinete SANAA – um pavilhão baixo e longo, minimalista e esbranquiçado, que segue as ondulações do terreno. Completamente contrário à imagem que formamos na mente quando falamos em "Louvre", e certamente era mesmo essa a intenção.

Numa Europa desindustrializada, com um sector primário ligado à máquina, e onde já nem sequer os serviços fogem à constante "deslocalização" para o Oriente, é o "quarto pilar" – a Cultura – que ganha cada vez mais relevância identitária e mesmo económica. É uma área a que nos podemos agarrar, nós europeus, para continuarmos a contar no mundo. A alternativa é que todo o nosso continente se transforme num museu.

O elefante na sala de estar

“Elephant”, de Gus Van Sant, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2003. É um filme estranho, incomodativo mas fascinante, bem construído e altamente controverso: sendo uma ficcionalização do massacre no liceu de Columbine, que tinha ocorrido apenas quatro anos antes e onde dois adolescentes tinham assassinado 12 colegas estudantes e um professor, a comoção provocada iria sempre ser grande – sobretudo se, como na verdade acontece, a tresloucada violência fosse glamourizada ao passar para o grande ecrã.

Na sexta-feira, a história voltou a repetir-se. Um louco covarde voltou a invadir uma escola americana carregado de armas e, talvez acreditando estar a reviver um qualquer nível de Call for Duty ou outro jogo de computador baseado no ódio, abateu 20 crianças da primeira classe e seis adultos, antes de se suicidar com uma das armas da mãe (esta abatida em casa alguns minutos antes). Os crimes são de tal forma hediondos e o horror tão brutal que ninguém, e muito menos eu, pode pretender no espaço de algumas linhas encontrar algum sentido, conforto ou solução milagrosa. O que se torna muito claro é que é preciso agir – e agir agora, antes que as armas de fogo desapareçam dos títulos da imprensa até ao próximo massacre. O ano de 2012 bateu todos os recordes em matéria de vítimas de tiroteios em massa (76 fatais, com 66 feridos graves). Anualmente, e só nos EUA, morrem 31 000 pessoas devido a armas de fogo, com 70 000 feridos adicionais. São muito mais vítimas que aquelas sofridas pelo invasor do Iraque e Afeganistão em toda a duração das duas guerras...

Sabemos que os Estados Unidos vivem uma “cultura da arma de fogo” um tanto assustadora para um europeu, cultura essa muito ligada (até pela constituição do país) à luta pela independência e ao desbravamento de um território selvagem e árduo. E no rescaldo de cada massacre deste género, o poderosíssimo lobby pró-armas, financiador de uma fileira de políticos de todas as cores, procura fechar-se em copas e afirmar que tão perto dos acontecimentos ainda “é cedo” para uma discussão séria sobre restrições ao porte de armas. Mas não é nada cedo. Pelo contrário, para muitas vítimas é demasiado tarde.
A política do medo leva a mais medo, a política do ódio leva a mais ódio. As pessoas não se sentem seguras porque não estão seguras. Não estão seguras porque há demasiadas armas – e todos os estudos mostram que quanto mais armas em dado local, mais vítimas elas provocam. Não estando seguras, as pessoas reagem – comprando ainda mais armas. É preciso quebrar o círculo vicioso, e pela primeira vez em muitos anos pode haver vontade de o fazer. Mas haverá mesmo?

O elefante do título do filme de Van Sant refere-se a algo óbvio, incontornável, mas que todos fingem ignorar – como se no meio da sala estivesse um paquiderme e ninguém o referisse na conversa. Os americanos sentem que esta guerra surda não pode manter-se, mas preferem assobiar para o lado. Para o provar, dois factos assombrosos: a cada ano desde 1990, menos pessoas são a favor de controlos mais restritos sobre as armas de fogo –desde 2009, há mesmo uma maioria que defende uma ainda maior liberalização; e tragédias como a da semana passada na escola primária Sandy não alteram substancialmente a opinião da população a este respeito. Cinicamente, a perda regular de crianças parece ser um preço aceitável a pagar para que a maioria da população americana possa continuar, feliz, a carregar no gatilho.

Problemas no paraíso

Um conhecido meu que antes tinha vivido no Luxemburgo e mudado para Paris por não gostar do Grão-Ducado decidiu voltar a viver no pequeno país junto ao Mosela. Ao saber do seu regresso, um amigo comentou-o de forma taxativa: “Pois claro! Acontece a todos, saem daqui mas acabam sempre por voltar a este paraíso!”

Nunca me ocorreria descrever o Luxemburgo como um paraíso, mas entendo o que o meu amigo quis dizer – é um sítio confortável, com baixas taxas de criminalidade, e onde é possível levar uma vida bem remunerada e dedicada pachorrentamente ao consumo. Este modus vivendi cristaliza-se em volta de uma cidade, a pequena capital, com uma alta qualidade de vida, emprego para todos, escolas, hospitais e parques. Tudo graças a um cuidadoso segredo bancário e um discreto e bem-sucedido sector financeiro.
O caso, no entanto, passou-se há mais de uma década. Hoje, o meu amigo já não olha para o Luxemburgo como um éden, nem o modelo do país como aquele capaz de proporcionar amanhãs que cantam. Vem tudo isto a propósito da divulgação, esta semana, do ranking das cidades com maior qualidade de vida para expatriados, elaborado anualmente pela consultora Mercer. O Luxemburgo aparece em 19.º lugar (entre 221 cidades de todo o mundo), a mesma posição de 2011; a cidade beneficia da alta pontuação obtida em critérios como “estabilidade e segurança pessoal”, onde aparece em primeiro. Viena, Áustria, é a cidade que encabeça a lista, que continua a ser dominada pela Europa – das 25 melhores cidades, nada menos que 15 encontram-se no nosso continente, que também domina o novo sub-ranking de infraestruturas.

Mas por quanto tempo? Nas entrelinhas, é possível ler já uma certa decadência da posição europeia. Atenas é a pior colocada do continente, em 84.º lugar e sempre perdendo posições; outras cidades da periferia, como Lisboa, Madrid ou Dublin, também vão descendo no ranking de forma acelerada (e entre outras razões, pelo recrudescimento da criminalidade). E se as infraestruturas das cidades europeias são em geral invejáveis, com sistemas de transporte em massa e abundantes piscinas cobertas, também é verdade que há anos que não existe expansão significativa das mesmas; poucas cidades da Europa constroem hoje linhas de metro, ou novas estradas de forma a melhorar o trânsito. Em compensação, o ritmo a que novas estruturas aparecem nos países asiáticos é quase frenético...

Mesmo no tal paraíso grã-ducal, a sensação presente é de um certo indefinível mas inegável mal-estar. As boas notícias escasseiam, a praça financeira tem sofrido alguns sustos, o que resta da siderurgia está permanentemente ameaçado, o Estado entrou numa espiral de cortes e está menos disponível para ser o tradicional suporte da economia, enquanto se multiplicam os apelos de algumas autoridades para que os portugueses deixem de engrossar as fileiras dos novos imigrantes que chegam ao país. Será sustentável que esta pequena  cidade sem massa crítica se mantenha como um dos melhores 20 locais para se viver no mundo? Poderá a Europa, que agora parece não mais fazer que gerir a estagnação, continuar a servir de farol ao mundo ou teremos de aceitar uma degradação dos nossos padrões, da nossa riqueza, da nossa forma de viver? Estamos a dar a mesma resposta há quatro anos, e ela não é agradável.

Recordações da casa amarela

“Recordações da casa amarela” é uma das obras mais estranhas, e talvez por isso mesmo mais relevantes, do depauperado cinema português. Realizado e protagonizado pelo louco cineasta João César Monteiro, o filme é uma sequência de actos vagabundos proferidos por um Bocage moderno, um provocador sarcástico e mordaz. O personagem reapareceria em outros filmes, mas sem a irreverência que levaria esta primeira parte da trilogia a receber um Leão de Prata em Veneza, 1989.


A casa amarela do título era, segundo o próprio João César Monteiro, “o nome popular para uma prisão ou um hospício”. Mas há uma outra casa amarela com estas características ainda mais célebre na História da Arte ocidental. Já não existe, mas ficava no número 2 da praça Lamartine, em Arles, no sul de França; de um dos lados albergava o Café de la Gare – e os seus proprietários alugaram os quartos vazios que tinham na parte leste a um homem ruivo, de feições duras, que seria descrito um século mais tarde pela mulher mais idosa do mundo como alguém “sujo, feio, desagradável”. Ela tinha então 13 anos e vendeu-lhe alguns lápis de cor; ele tinha 35 e chamava-se Van Gogh.

Van Gogh tinha-se mudado para o sul de França para fugir da vida de vício, cheia de tabaco, absinto e mulheres, que havia levado nos últimos dois anos em Paris, e ficou maravilhado pelo sol e pelas cores vivas de Arles. Os seus quadros passaram a incluir doses abundantes de cores como o turquesa, o violeta e o amarelo; o ânimo deste pintor então desconhecido redobrou e, de 1888 a 1889, o neerlandês escreveu cerca de 200 cartas, fez 100 desenhos e terminou quase 200 quadros. É certo que não vendeu um único. Mas prosseguia a sua ideia utópica de fundar, em Arles, uma comunidade de pintores dedicados que iniciaria uma renascença das artes. Conseguiu convencer Gauguin, já então um pintor conhecido e respeitado, a juntar-se-lhe; e poucos dias depois, dois dos maiores artistas de todos os tempos escreveram uma carta conjunta, em papel barato retirado de um caderno, a um amigo comum. A carta, repleta de amizade e esperança, vai ser leiloada para a semana em Paris e valerá pelo menos meio milhão de euros.

No valioso pedaço de papel rabiscado com as duas caligrafias tão diferentes, Van Gogh e Gauguin professam a sua admiração mútua, brincam, falam dos quadros que estão a pintar – hoje reconhecidos como obras-primas, como por exemplo “A Casa Amarela”. Também discorrem sobre o futuro das suas carreiras, plenos de esperança e criatividade.

A realidade viria a revelar-se bem diferente da utopia. Dois meses depois desta carta, os colocatários discutiram amarga e violentamente – e Van Gogh, num acesso da loucura que não mais o abandonaria, cortou parte da sua própria orelha com a navalha com que tinha acabado de ameaçar o ex-amigo. Gauguin voltou a Paris, e os dois monstros sagrados não mais se voltariam a ver.

A história da carta, no entanto, continua. E a comparação com os dias de hoje é inevitável: vivendo em 2012, Van Gogh escreveria a Gauguin alguns sms, talvez no facebook, eventualmente por e-mail. Difícil de imaginar que alguém leiloaria o que quer que fosse por uma qualquer mensagem electrónica do estilo “Bute a Arles pintr 1 casa, Paul? K cool. Lol ;) “