terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A nova jangada de pedra

“Jangada de Pedra” é um dos títulos mais bem conseguidos na obra de José Saramago. Escrito em 1986, o ano em que Portugal e Espanha aderiram finalmente à União Europeia, o livro disfarçava mal o pessimismo antieuropeísta do seu autor: nele a Península Ibérica separava-se do continente (um gigantesco corte na terra por altura dos Pirinéus) e começava a vaguear à deriva pelos sete oceanos, qual gigantesca balsa, perante a fúria impotente dos líderes dos restantes países europeus que insistiam em tratar portugueses e espanhóis com paternalismo e prepotência.

O romance é uma ficção e, com licença da presente crise, as previsões catastrofistas do Nobel português não se confirmaram – Portugal e Espanha estão hoje no coração da Europa, como aliás quase sempre fizeram ao longo da História. Mas o Velho Continente tem uma nova jangada de pedra: o Reino Unido. Ou melhor, a Grã-Bretanha. O absurdo da voragem isolacionista é tamanho, que nem conhecemos exactamente os limites do território a (possivelmente) separar.

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, anunciou ao mundo que o seu país vai decidir em referendo se se mantém, ou não, na União Europeia. Dito assim, poderia ser uma ideia bem-vinda que contribuísse para uma clarificação, há muito necessária, das relações entre o Reino Unido e os seus parceiros europeus. Os britânicos sempre estiveram com um pé fora e outro dentro da UE, o que lhes vale (e de forma crescente) a pouca abonatória reputação de não passarem de um cavalo de Tróia dos interesses americanos; nunca esquecerei a explicação que Sir Humphrey deu ao seu superior hierárquico na impecável série televisiva “Sim, senhor Ministro” (já em 1982!), em que era dito: “Nós decidimos aderir à Comunidade Europeia porque não estavamos a conseguir sabotá-la por fora, é mais fácil fazê-lo a partir de dentro”.

Essa clarificação nunca chegará. Cameron desceu a um ponto politicamente muito baixo, além de altamente irresponsável: está a usar a Europa como arma de arremesso no jogo partidário. Prometeu um referendo “se ganhasse as próximas eleições” – estamos assim a falar de uma mera promessa eleitoral cavalgando o imaginado populismo eurocéptico, ao pior estilo “votem em mim que eu vos guairei para fora da Europa”. A oposição, tanto os trabalhistas indecisos sobre o que pensar de um referendo que pode ter um resultado catastrófico para a economia do país como os extremistas de direita, ficaram agora confusos sobre o sua própria estratégia. Mas o que o PM fez foi prometer um referendo se conseguisse “renegociar a ligação do seu país à Europa” – o que isoladamente só poderá fazer sentido para assuntos menores, dado que o Reino Unido já não faz parte de muitas das políticas pan-europeias, como Schengen, o euro ou a Carta Social; e conjuntamente, ou seja se estivermos a falar de um novo tratado, levará muito provavelmente a um aprofundar dos laços e um passo na direcção do federalismo, ou seja, precisamente o contrário do desejado pelos eurocépticos. E como cereja no topo do bolo, ainda há a incógnita da Escócia, que tem em 2014 o seu próprio referendo sobre a independência – e não se quer separar da Europa. Uma confusão.

O Reino Unido teria muito mais a perder com uma “brexit” que a própria Europa, mas não nos enganemos: a Europa também precisa dos britânicos, da sua cultura, economia ou influência, da sua visão pragmática, das suas muitas qualidades. Mas para estes, começa a ser tarde. O ressentimento acumulado pelos seus erros históricos, a arrogância das suas elites e a ambiguidade permanente em relação ao carácter europeu ou antieuropeu do país já cansam, e provocam que muitos desejem ver esta pequena jangada pelas costas, vogando sem destino pelo mar do Norte.

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