terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Recordações da casa amarela

“Recordações da casa amarela” é uma das obras mais estranhas, e talvez por isso mesmo mais relevantes, do depauperado cinema português. Realizado e protagonizado pelo louco cineasta João César Monteiro, o filme é uma sequência de actos vagabundos proferidos por um Bocage moderno, um provocador sarcástico e mordaz. O personagem reapareceria em outros filmes, mas sem a irreverência que levaria esta primeira parte da trilogia a receber um Leão de Prata em Veneza, 1989.


A casa amarela do título era, segundo o próprio João César Monteiro, “o nome popular para uma prisão ou um hospício”. Mas há uma outra casa amarela com estas características ainda mais célebre na História da Arte ocidental. Já não existe, mas ficava no número 2 da praça Lamartine, em Arles, no sul de França; de um dos lados albergava o Café de la Gare – e os seus proprietários alugaram os quartos vazios que tinham na parte leste a um homem ruivo, de feições duras, que seria descrito um século mais tarde pela mulher mais idosa do mundo como alguém “sujo, feio, desagradável”. Ela tinha então 13 anos e vendeu-lhe alguns lápis de cor; ele tinha 35 e chamava-se Van Gogh.

Van Gogh tinha-se mudado para o sul de França para fugir da vida de vício, cheia de tabaco, absinto e mulheres, que havia levado nos últimos dois anos em Paris, e ficou maravilhado pelo sol e pelas cores vivas de Arles. Os seus quadros passaram a incluir doses abundantes de cores como o turquesa, o violeta e o amarelo; o ânimo deste pintor então desconhecido redobrou e, de 1888 a 1889, o neerlandês escreveu cerca de 200 cartas, fez 100 desenhos e terminou quase 200 quadros. É certo que não vendeu um único. Mas prosseguia a sua ideia utópica de fundar, em Arles, uma comunidade de pintores dedicados que iniciaria uma renascença das artes. Conseguiu convencer Gauguin, já então um pintor conhecido e respeitado, a juntar-se-lhe; e poucos dias depois, dois dos maiores artistas de todos os tempos escreveram uma carta conjunta, em papel barato retirado de um caderno, a um amigo comum. A carta, repleta de amizade e esperança, vai ser leiloada para a semana em Paris e valerá pelo menos meio milhão de euros.

No valioso pedaço de papel rabiscado com as duas caligrafias tão diferentes, Van Gogh e Gauguin professam a sua admiração mútua, brincam, falam dos quadros que estão a pintar – hoje reconhecidos como obras-primas, como por exemplo “A Casa Amarela”. Também discorrem sobre o futuro das suas carreiras, plenos de esperança e criatividade.

A realidade viria a revelar-se bem diferente da utopia. Dois meses depois desta carta, os colocatários discutiram amarga e violentamente – e Van Gogh, num acesso da loucura que não mais o abandonaria, cortou parte da sua própria orelha com a navalha com que tinha acabado de ameaçar o ex-amigo. Gauguin voltou a Paris, e os dois monstros sagrados não mais se voltariam a ver.

A história da carta, no entanto, continua. E a comparação com os dias de hoje é inevitável: vivendo em 2012, Van Gogh escreveria a Gauguin alguns sms, talvez no facebook, eventualmente por e-mail. Difícil de imaginar que alguém leiloaria o que quer que fosse por uma qualquer mensagem electrónica do estilo “Bute a Arles pintr 1 casa, Paul? K cool. Lol ;) “

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