“Elephant”, de
Gus Van Sant, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2003. É um filme
estranho, incomodativo mas fascinante, bem construído e altamente controverso:
sendo uma ficcionalização do massacre no liceu de Columbine, que tinha ocorrido
apenas quatro anos antes e onde dois adolescentes tinham assassinado 12 colegas
estudantes e um professor, a comoção provocada iria sempre ser grande –
sobretudo se, como na verdade acontece, a tresloucada violência fosse
glamourizada ao passar para o grande ecrã.
Na sexta-feira, a
história voltou a repetir-se. Um louco covarde voltou a invadir uma escola
americana carregado de armas e, talvez acreditando estar a reviver um qualquer
nível de Call for Duty ou outro jogo
de computador baseado no ódio, abateu 20 crianças da primeira classe e seis
adultos, antes de se suicidar com uma das armas da mãe (esta abatida em casa
alguns minutos antes). Os crimes são de tal forma hediondos e o horror tão
brutal que ninguém, e muito menos eu, pode pretender no espaço de algumas
linhas encontrar algum sentido, conforto ou solução milagrosa. O que se torna
muito claro é que é preciso agir – e agir agora, antes que as armas de fogo
desapareçam dos títulos da imprensa até ao próximo massacre. O ano de 2012
bateu todos os recordes em matéria de vítimas de tiroteios em massa (76 fatais,
com 66 feridos graves). Anualmente, e só nos EUA, morrem 31 000 pessoas devido
a armas de fogo, com 70 000 feridos adicionais. São muito mais vítimas que
aquelas sofridas pelo invasor do Iraque e Afeganistão em toda a duração das
duas guerras...
Sabemos que os
Estados Unidos vivem uma “cultura da arma de fogo” um tanto assustadora para um
europeu, cultura essa muito ligada (até pela constituição do país) à luta pela
independência e ao desbravamento de um território selvagem e árduo. E no
rescaldo de cada massacre deste género, o poderosíssimo lobby pró-armas, financiador de uma fileira de políticos de todas
as cores, procura fechar-se em copas e afirmar que tão perto dos acontecimentos
ainda “é cedo” para uma discussão séria sobre restrições ao porte de armas. Mas
não é nada cedo. Pelo contrário, para muitas vítimas é demasiado tarde.
A política do
medo leva a mais medo, a política do ódio leva a mais ódio. As pessoas não se
sentem seguras porque não estão seguras. Não estão seguras porque há demasiadas
armas – e todos os estudos mostram que quanto mais armas em dado local, mais
vítimas elas provocam. Não estando seguras, as pessoas reagem – comprando ainda
mais armas. É preciso quebrar o círculo vicioso, e pela primeira vez em muitos
anos pode haver vontade de o fazer. Mas haverá mesmo?
O
elefante do título do filme de Van Sant refere-se a algo óbvio, incontornável,
mas que todos fingem ignorar – como se no meio da sala estivesse um paquiderme
e ninguém o referisse na conversa. Os americanos sentem que esta guerra surda
não pode manter-se, mas preferem assobiar para o lado. Para o provar, dois
factos assombrosos: a cada ano desde 1990, menos pessoas são a favor de
controlos mais restritos sobre as armas de fogo –desde 2009, há mesmo uma
maioria que defende uma ainda maior liberalização; e tragédias como a da semana
passada na escola primária Sandy não alteram substancialmente a opinião da
população a este respeito. Cinicamente, a perda regular de crianças parece ser
um preço aceitável a pagar para que a maioria da população americana possa
continuar, feliz, a carregar no gatilho.
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