terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O elefante na sala de estar

“Elephant”, de Gus Van Sant, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2003. É um filme estranho, incomodativo mas fascinante, bem construído e altamente controverso: sendo uma ficcionalização do massacre no liceu de Columbine, que tinha ocorrido apenas quatro anos antes e onde dois adolescentes tinham assassinado 12 colegas estudantes e um professor, a comoção provocada iria sempre ser grande – sobretudo se, como na verdade acontece, a tresloucada violência fosse glamourizada ao passar para o grande ecrã.

Na sexta-feira, a história voltou a repetir-se. Um louco covarde voltou a invadir uma escola americana carregado de armas e, talvez acreditando estar a reviver um qualquer nível de Call for Duty ou outro jogo de computador baseado no ódio, abateu 20 crianças da primeira classe e seis adultos, antes de se suicidar com uma das armas da mãe (esta abatida em casa alguns minutos antes). Os crimes são de tal forma hediondos e o horror tão brutal que ninguém, e muito menos eu, pode pretender no espaço de algumas linhas encontrar algum sentido, conforto ou solução milagrosa. O que se torna muito claro é que é preciso agir – e agir agora, antes que as armas de fogo desapareçam dos títulos da imprensa até ao próximo massacre. O ano de 2012 bateu todos os recordes em matéria de vítimas de tiroteios em massa (76 fatais, com 66 feridos graves). Anualmente, e só nos EUA, morrem 31 000 pessoas devido a armas de fogo, com 70 000 feridos adicionais. São muito mais vítimas que aquelas sofridas pelo invasor do Iraque e Afeganistão em toda a duração das duas guerras...

Sabemos que os Estados Unidos vivem uma “cultura da arma de fogo” um tanto assustadora para um europeu, cultura essa muito ligada (até pela constituição do país) à luta pela independência e ao desbravamento de um território selvagem e árduo. E no rescaldo de cada massacre deste género, o poderosíssimo lobby pró-armas, financiador de uma fileira de políticos de todas as cores, procura fechar-se em copas e afirmar que tão perto dos acontecimentos ainda “é cedo” para uma discussão séria sobre restrições ao porte de armas. Mas não é nada cedo. Pelo contrário, para muitas vítimas é demasiado tarde.
A política do medo leva a mais medo, a política do ódio leva a mais ódio. As pessoas não se sentem seguras porque não estão seguras. Não estão seguras porque há demasiadas armas – e todos os estudos mostram que quanto mais armas em dado local, mais vítimas elas provocam. Não estando seguras, as pessoas reagem – comprando ainda mais armas. É preciso quebrar o círculo vicioso, e pela primeira vez em muitos anos pode haver vontade de o fazer. Mas haverá mesmo?

O elefante do título do filme de Van Sant refere-se a algo óbvio, incontornável, mas que todos fingem ignorar – como se no meio da sala estivesse um paquiderme e ninguém o referisse na conversa. Os americanos sentem que esta guerra surda não pode manter-se, mas preferem assobiar para o lado. Para o provar, dois factos assombrosos: a cada ano desde 1990, menos pessoas são a favor de controlos mais restritos sobre as armas de fogo –desde 2009, há mesmo uma maioria que defende uma ainda maior liberalização; e tragédias como a da semana passada na escola primária Sandy não alteram substancialmente a opinião da população a este respeito. Cinicamente, a perda regular de crianças parece ser um preço aceitável a pagar para que a maioria da população americana possa continuar, feliz, a carregar no gatilho.

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