"O que há de mais escandaloso nos escândalos é que
nos habituamos a eles". A citação de Simone de Beauvoir dificilmente
poderia ser mais adequada a Portugal, um local especial onde os cidadãos se
indignam temporariamente para, acto contínuo, encolher os ombros e seguir a sua
vida, resignados perante mais um atentado ao sem bem-estar ou a sua bolsa.
Habitualmente é assim, mas algo mudou na segunda-feira à noite, quando um
tribunal decretou a prisão de José Sócrates.
De repente, e de um só golpe, a República Portuguesa
parece ter mudado o seu paradigma. De um Estado permeável a todos os
interesses, onde reina uma cultura de irresponsabilidade e impunidade, com uma
Justiça que é fraca com os fortes e forte com os fracos, Portugal aparece do
dia para a noite como uma referência (por exemplo para Espanha, onde a família
real continua intocável) onde ninguém, nem mesmo os mais poderosos, estão acima
da lei ou da possibilidade de serem postos atrás das grades.
Temos um ex-primeiro-ministro em prisão preventiva,
indiciado por crimes de evasão fiscal, corrupção e branqueamento de capitais;
esse mesmo ex-primeiro-ministro tinha já evitado, por vezes in extremis, a acção da Justiça em
relação a outros processos duvidosos. Ao mesmo tempo, altos funcionários do
Estado e da polícia estão envolvidos num esquema de corrupção que visa desviar
investimento estrangeiro em proveito próprio, o que já provocou a demissão do
ministro. O banqueiro que liderava o banco do regime, de seu cognome “o dono disto
tudo”, não está preso mas também caiu em desgraça. E falta ainda reabrir
processos fétidos relacionados com submarinos ou o BPN, só para citar dois
envolvendo o PR e membros do Governo actual.
Este espectáculo pouco dignificante de escândalos
consecutivos é algo fora do comum, extraordinário; pode significar uma
verdadeira implosão do regime vigente em Portugal, ou pode simplesmente ser uma
fase passageira onde o vazio deixado pelos personagens visados é ocupado por
novos corruptos e corruptores, e a vida continuará lenta como antes. Dado que
ainda estamos no turbilhão do momento é demasiado cedo para avaliar todo o
significado, e continua a ser perfeitamente possível – pois "o povo é
sereno" – que as consequências a longo prazo sejam pequenas. Mas também é
possível que as previsões tantas vezes feitas anteriormente por comentaristas
mais entusiasmados se tornem finalmente verdade e estejamos a assistir ao fim
da III República Portuguesa, que será substituída por...? (inserir desejo apropriado).
Uma possibilidade é uma reedição do que
aconteceu em Itália nos anos 1990, onde a operação “Mãos Limpas” foi
desencadeada pelos juízes perante uma população amorfa, descrente e incapaz de,
por si só, alterar o pântano em que o país tinha caído. O terramoto que se
seguiu (6059 investigados e 2993 condenados, incluindo 872 empresários, 438
deputados e quatro ex-primeiro-ministros) arrasou com a I República Italiana e
com ela todos os partidos “do arco da governação”, dos socialistas à
democracia-cristã, todos eles inquinados de corrupção. Talvez esteja aqui um
guião para os próximos tempos em Portugal.