Talvez não haja fenómeno mais urbano do que Kanu Saul.
Este homem de características físicas fora do comum – atrás dos seus
penetrantes olhos verdes que faíscam sobre uma pele mulata – decidiu cortar
cabelos na rua da grande cidade. Começou por Nova York, passou pela Alemanha e
França, atravessou o mundo até Los Angeles, e voltou a sobrevoar o Atlântico
até ao seu actual poiso, Paris.
Em todo o lado, Kanu – ou melhor dito, o “cowboy dos
cortes de cabelo” – levanta controvérsia e excitações. Variadíssimas vezes tem
sido apanhado por não ter licença de cabeleireiro, ainda mais por exercer a
profissão em plena via pública. Amiúde uma denúncia apanha-o em casas de banho
de senhoras em bares famosos; os únicos vestígios que deixa, enquanto a polícia
o escolta até à esquadra, são algumas madeixas de cabelo revolto no lavatório.
Porque Kanu Saul tem muitos nomes, tais como “o Picasso dos barbeiros”, ou “o
cabeleireiro dos sem-abrigo”, mas convém não esquecer que os seus serviços
clandestinos, propostos espontaneamente aos transeuntes, são também o último
grito da moda para muitas estrelas de cinema de série B, e claro, há o famoso
rumor de que Madonna escreveu o hit
global “Beautiful Stranger” sobre ele.
Tal não seria impossível, pois o cowboy dos cortes de
cabelo é tudo menos convencional. A sua tesoura não é suportável por todos. Em
vez de simplesmente aparar os cabelos molhados na horizontal, Kanu ataca os
cabelos secos, que são puxados em paralelo à direcção em que crescem, enquanto
o cliente se senta, hirto, fazendo cara de corajoso. A tesoura vai debicando num
ângulo agudo, usando as linhas do rosto como bússola improvável. A quantidade
de pêlos que acaba por sair não é grande, mas o resultado final – que pode
demorar entre sete minutos e três horas – apresenta um cabelo que parece mais
saudável e estilizado, rejuvenescendo o ou a cliente. “É um corte interactivo
que não posso obter se a pessoa não for suficientemente forte para aguentar”,
explica o Picasso dos barbeiros. A dada altura, ele é mesmo compelido a avisar:
“isto vai doer um bocadinho”. Quando tal acontece já é tarde demais para
desistir.
A pressão pública ajuda. Kanu Saul utiliza agora
um canto de uma qualquer praça chic
de Paris, exercendo a sua arte rodeado de voyeurs
dos cabelos – quase sempre armados de máquina fotográfica – e uma panóplia
de artistas de rua: músicos, acrobatas, palhaços, equilibristas. O cowboy
urbano é um produto típico da grande cidade, só podendo florescer num certo
caldo de cultura mergulhado numa busca incessante do novo, diferente, e
original. As cidades são também feitas de personagens, e só pela subversão do
convencional e a cultura do risco, o cowboy já merecia que lhe tirássemos o
chapéu. Nem que seja para um rápido corte de cabelo.
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