terça-feira, 25 de novembro de 2014

O regime em estilhaços


"O que há de mais escandaloso nos escândalos é que nos habituamos a eles". A citação de Simone de Beauvoir dificilmente poderia ser mais adequada a Portugal, um local especial onde os cidadãos se indignam temporariamente para, acto contínuo, encolher os ombros e seguir a sua vida, resignados perante mais um atentado ao sem bem-estar ou a sua bolsa. Habitualmente é assim, mas algo mudou na segunda-feira à noite, quando um tribunal decretou a prisão de José Sócrates.
De repente, e de um só golpe, a República Portuguesa parece ter mudado o seu paradigma. De um Estado permeável a todos os interesses, onde reina uma cultura de irresponsabilidade e impunidade, com uma Justiça que é fraca com os fortes e forte com os fracos, Portugal aparece do dia para a noite como uma referência (por exemplo para Espanha, onde a família real continua intocável) onde ninguém, nem mesmo os mais poderosos, estão acima da lei ou da possibilidade de serem postos atrás das grades.
Temos um ex-primeiro-ministro em prisão preventiva, indiciado por crimes de evasão fiscal, corrupção e branqueamento de capitais; esse mesmo ex-primeiro-ministro tinha já evitado, por vezes in extremis, a acção da Justiça em relação a outros processos duvidosos. Ao mesmo tempo, altos funcionários do Estado e da polícia estão envolvidos num esquema de corrupção que visa desviar investimento estrangeiro em proveito próprio, o que já provocou a demissão do ministro. O banqueiro que liderava o banco do regime, de seu cognome “o dono disto tudo”, não está preso mas também caiu em desgraça. E falta ainda reabrir processos fétidos relacionados com submarinos ou o BPN, só para citar dois envolvendo o PR e membros do Governo actual.
Este espectáculo pouco dignificante de escândalos consecutivos é algo fora do comum, extraordinário; pode significar uma verdadeira implosão do regime vigente em Portugal, ou pode simplesmente ser uma fase passageira onde o vazio deixado pelos personagens visados é ocupado por novos corruptos e corruptores, e a vida continuará lenta como antes. Dado que ainda estamos no turbilhão do momento é demasiado cedo para avaliar todo o significado, e continua a ser perfeitamente possível – pois "o povo é sereno" – que as consequências a longo prazo sejam pequenas. Mas também é possível que as previsões tantas vezes feitas anteriormente por comentaristas mais entusiasmados se tornem finalmente verdade e estejamos a assistir ao fim da III República Portuguesa, que será substituída por...?  (inserir desejo apropriado).
Uma possibilidade é uma reedição do que aconteceu em Itália nos anos 1990, onde a operação “Mãos Limpas” foi desencadeada pelos juízes perante uma população amorfa, descrente e incapaz de, por si só, alterar o pântano em que o país tinha caído. O terramoto que se seguiu (6059 investigados e 2993 condenados, incluindo 872 empresários, 438 deputados e quatro ex-primeiro-ministros) arrasou com a I República Italiana e com ela todos os partidos “do arco da governação”, dos socialistas à democracia-cristã, todos eles inquinados de corrupção. Talvez esteja aqui um guião para os próximos tempos em Portugal.

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