domingo, 17 de maio de 2009

Abrir os olhos

A morte de uma senhora de 95 anos, ocorrida no mês passado, recordou-me do aparentemente simples facto de vivermos num mundo controverso mas sempre extraordinário, pelo menos a partir do momento em que o sabemos perscrutar como ele merece.
A senhora em questão era alguém de especial. Chamava-se Helen Levitt, habitava o mesmo quarto andar sem elevador onde tinha vivido com os seus gatos por 80 anos e continuava a ser fotógrafa, carreira que tinha iniciado nos anos 1930 por influência romântica de outro dos grandes nomes da arte, o francês Henri Cartier-Bresson. Impressionada pelas condições de vida numa América a lamber as feridas da Grande Depressão e sugestionada pelos desenhos infantis a giz nos passeios, Helen comprou em segunda mão a mesma máquina fotográfica que tinha visto nas mãos de Bresson (uma Leica 35 mm) e começou a tirar instantâneos, revelados em casa, a crianças de rua em Nova Iorque. A cidade não mais a largaria, ou vice-versa; as suas ruas, nomeadamente as mais pobres, as esquecidas, as mais sujas e perigosas eram também aos seus olhos as mais fotogénicas e artísticas, a sua improvável parte do mundo retratada de forma tão crua como bela, filtrada pelo preto-e-branco. A cor só chegaria às suas fotos nos anos 1960, eram já as ruas diferentes: as crianças tinham trocado o giz pelo sofá e pela televisão, os carros já não eram abandonados mas omnipresentes. As fotos, em vez de retratarem armazéns abandonados, pequenos farrapos de céu e ausência de árvores, passaram a jogar com correspondências, por exemplo entre portas verdes e sapatos de salto alto vermelhos. Celebrando ainda e sempre as paisagens urbanas e a fauna que nelas habita.
Edward Steichen, já em 1941 um nome maior da arte fotográfica, viu nela uma discípula de talento e, nesse mesmo ano, foi o curador da sua primeira exposição. Steichen doou em 1973 ao Luxemburgo (de onde emigrou aos dois anos de idade para os EUA) a grande exposição “The Family of Man”, representando a vida, o amor e a morte em 68 países diferentes. Que ninguém deixe de passar por Clervaux para a ver e rever. Mas não tenho a certeza de como reagiriam Steichen, Bresson ou Levitt passeando pelas anódinas ruas luxemburguesas de hoje, submersos na previsibilidade, quase artificialidade do extremo bem-estar. Nós próprios necessitamos de reunir todo o talento e alma dos grandes visionários se queremos abrir os olhos para a beleza aqui encerrada.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Prender a respiração só por mais alguns anos

Gostaria muito de inaugurar este espaço com boas notícias. E não haveria melhor notícia para dar do que esta, fresca, desejada, em primeiríssima mão: a crise terminou. A depressão tornou-se euforia, os cortes em expansões e os empregos multiplicam-se como cogumelos. Podemos – e devemos, trata-se de um imperativo moral – desatar todos a consumir como se os amanhãs cantassem outra vez.
Mmh, admito, poderia estar a antecipar a boa nova na pressa de ser o primeiro a apontá-la, mas tanto optimismo induzido não seria muito diferente do que nos últimos tempos foi possível ouvir de pessoas com responsabilidades na matéria. O presidente americano, Barack Obama, fala em “brilho de esperança” – mas apenas porque a produção e o mercado imobiliário já não estão a cair tão rapidamente. A ministra da Economia britânica falava há tempos nos “primeiros indícios” da recuperação – no mesmo dia em que, só para contrariar como habitualmente, grandes empresas inglesas anunciaram despedimentos e a Bolsa caiu 5%. Os media? Igualmente confusos (“Sinais vindos dos EUA indicam que o pior pode já ter passado”, anuncia o “Público” a 1 de Maio; “Investimento cai e recessão agrava-se nos EUA”, manchete do “Le Monde” a 2 de Maio). BCE, FMI, pelas vozes com forte sotaque francês dos seus presidentes, prevêem que daqui a um ano a retoma apareça algures pelos Estados Unidos, enquanto vão avisando que hoje em dia é muito difícil fazer previsões. No entanto, como em economia repetir muitas vezes e a muita gente que “as coisas vão melhorar” pode mesmo contribuir para que elas melhorem, professa-se a fé inabalável em que os incertos e difíceis tempos de contracção em que vivemos vão acabar rapidamente.
A sóbria realidade: mesmo quando acabarem, não terão acabado. Nas economias ocidentais o desemprego dispara actualmente para níveis (muito) superiores a 10% da população activa. A recessão de 2001 (muito mais fraca que a actual) durou oficialmente apenas 8 meses, mas o desemprego continuou a crescer durante mais ano e meio. O mesmo se passou em 1991 e o mesmo, só que de forma muito mais prolongada, acontecerá desta vez. Porque o crescimento anémico não é suficiente para gerar emprego e por outras variadas razões, mas também porque as nossas sociedades são baseadas no consumo narcotizante e hoje ninguém está para grandes compras.
Se eram boas notícias as que eu procurava, deveria ter escolhido outro assunto.