"Onde estavas no dia 12 de Julho de 2015?",
perguntarão os europeus uns aos outros daqui a meia-dúzia de anos. Foi nesse
nublado domingo de verão bruxelense que o euro, já cheio de fissuras, caiu num
estado comatoso que levará a longo prazo ao seu desmantelamento, arrastando
provavelmente com ele o projecto europeu como um todo.
A deriva totalitária impulsionada pelo ministro alemão
das Finanças, o dr. Schäuble (secundado pelos ululantes aprendizes de
feiticeiro vindos de outros países do Leste europeu, os sempre perigosos
cristãos-novos da austeridade autoderrotista), não se satisfaria nunca com a
simples rendição grega às tirânicas condições associadas a um novo empréstimo.
Essa rendição aconteceu na quinta-feira, já depois do referendo em que 61% dos
gregos disseram “não”: o governo de Tsipras não encarava a Grexit como solução
possível por causa do caos que esta traria ao país, e logo estava colocado
entre a espada e a parede porque, com os bancos encerrados e nenhuma
alternativa, não tinha poder negocial. Levou o seu bluff o mais longe possível,
mais até do que seria razoável – e acabou por perder a partida de poker em toda
a linha, apresentando aos credores europeus um plano de resgate ainda mais duro
que aquele que os eleitores, a seu próprio conselho, tinham rejeitado apenas
quatro dias antes.
Mas os gregos, tal como todos nós, tinham subestimado a
sanha ideologicamente alucinada dos déspotas que se apoderaram da Europa. A
estes a vitória não lhes chegava, uma rendição sabia a pouco, a manutenção dos
reembolsos aos seus bancos – tão pressurosos a emprestar à Grécia, mediante
taxas muito agradáveis, dinheiro para comprar submarinos alemães, por exemplo –
era apenas um fait divers; o objectivo era a capitulação total do inimigo
(ex-aliado e parceiro europeu), humilhação necessária para vingar o desplante
da afronta aos todo-poderosos.
O “acordo” – na verdade um diktat – que a Grécia terá de
aplicar inclui todas as rendições que país tinha proposto e muitas outras,
entre as quais um fundo de 50 mil milhões de euros (um terço dos activos do
Estado grego) a constituir por privatizações e vigiado de perto pelos políticos
alemães. Este “acordo” é da autoria do advogado Schäuble, um homem que no ano
2000, quando almejava chegar a chanceler, foi forçado a demitir-se de
presidente do seu partido democrata-cristão por ter aceitado pessoalmente
(muito) dinheiro de um lobbyista fabricante de armas; um homem que defendeu
vigorosamente a invasão levada a cabo por George W. Bush no Iraque sob falsos
pretextos; alguém que enalteceu Guantanámo como “uma resposta legal e
responsável na luta da civilização contra a barbárie”.
Às mãos deste homem pouco recomendável, a democracia
europeia sofre triplamente. Porque se pretende que áreas fundamentais num
Estado de Direito (impostos, segurança social, código civil) sejam danificadas
sem sequer um simulacro de controlo democrático. Porque quer manietar
completamente um governo eleito (e reforçado em referendo), e submetê-lo às
suas ordens. Finalmente, porque rejeita qualquer possibilidade de alternativa a
ideologias económicas que falharam estrondosa e cruelmente, aprisionando-nos
num túnel sem fim, condenados a invejar para sempre as soluções dos EUA para
sair da crise.
Mesmo que a Grécia consiga implementar o que lhe impuseram, o remédio está errado; dentro de alguns anos, talvez meses, estaremos a discutir mais dívida, mais empréstimos, mais crises, na Grécia como em outros países de uma Europa desagregada. 500 mil utilizadores do Twitter resumiram tudo logo nas primeiras 24 horas: o que se passou aqui foi uma pura e simples tomada de poder por meios ilegais. Isto é um golpe de Estado.