Era
minha intenção escrever este texto sobre Manoel de Oliveira. Prestar ao Mestre
uma pequena homenagem, falar sobre a relação tão profunda que ele mantinha com
o Porto. Discutir a imagem da sua cidade, até certo ponto inventada pelo
realizador. Lembrar que na incrível carreira de Oliveira apenas existiram duas
longas-metragens de ficção antes de 1974, todas as restantes chegaram mais
tarde. E por aí em diante.
Mas
no mesmo dia em que Oliveira desapareceu aos 106 anos, o horror indescritível
atacou-nos num ponto mais distante do planeta – uma pequena cidade do Quénia.
148 pessoas, quase todas entre os 19 e os 24 anos, foram barbaramente
assassinadas pelos neonazis islâmicos do al-Shabaab (que significa, numa ironia
arrepiante, “a Juventude”). Mais uma vez, como já tinha acontecido há dois anos
quando o mesmo grupo de celerados atacou o shopping Westgate no mesmo país, os
terroristas seleccionaram entre quem deixavam escapar (os muçulmanos) e quem
assassinavam a sangue-frio (todos os outros, nomeadamente os cristãos).
148
jovens seres humanos devem ser mais importantes que 1, e por isso decidi por um
dia inverter a “hierarquia da morte”: o processo pelo qual algumas mortes são
altamente mediáticas e ocupam todas as redes sociais, enquanto outras não
passam de uma desafortunada estatística que acontece confortavelmente longe.
Esta hierarquia segue várias regras controversas, que é urgente contrariar:
desde logo, que mortes nacionais são muito mais importantes que as outras, a um
rácio nacionalista que deve andar pela cotação de 1 nacional = 500
estrangeiros. Em seguida, a qualidade e o pormenor da informação recebida
dependem do local onde a notícia ocorre; Paris ou Alpes permitem actualizações
constantes, enquanto países africanos ou asiáticos fazem-nos depender de uma,
por vezes única, agência noticiosa. Por fim, é claro – quando um atentado num
país instável faz mortes “esperadas”, já nem nos surpreendemos quando tal já
nem aparece nas páginas interiores. É assim que “somos todos Charlie” (e ainda
bem que assim é), mas não temos a mesma energia para sermos todos Nigéria, nem todos
Quénia. Torna-se um círculo vicioso, porque a hierarquia é decidida em
redacções de jornais de acordo com o interesse que as notícias provocam nos
leitores, e esse interesse vai diminuindo à medida que sabemos cada vez menos
sobre o distante e o alheio, recomeçando o processo.
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