terça-feira, 5 de maio de 2015

A hierarquia da morte


Era minha intenção escrever este texto sobre Manoel de Oliveira. Prestar ao Mestre uma pequena homenagem, falar sobre a relação tão profunda que ele mantinha com o Porto. Discutir a imagem da sua cidade, até certo ponto inventada pelo realizador. Lembrar que na incrível carreira de Oliveira apenas existiram duas longas-metragens de ficção antes de 1974, todas as restantes chegaram mais tarde. E por aí em diante.

Mas no mesmo dia em que Oliveira desapareceu aos 106 anos, o horror indescritível atacou-nos num ponto mais distante do planeta – uma pequena cidade do Quénia. 148 pessoas, quase todas entre os 19 e os 24 anos, foram barbaramente assassinadas pelos neonazis islâmicos do al-Shabaab (que significa, numa ironia arrepiante, “a Juventude”). Mais uma vez, como já tinha acontecido há dois anos quando o mesmo grupo de celerados atacou o shopping Westgate no mesmo país, os terroristas seleccionaram entre quem deixavam escapar (os muçulmanos) e quem assassinavam a sangue-frio (todos os outros, nomeadamente os cristãos).

148 jovens seres humanos devem ser mais importantes que 1, e por isso decidi por um dia inverter a “hierarquia da morte”: o processo pelo qual algumas mortes são altamente mediáticas e ocupam todas as redes sociais, enquanto outras não passam de uma desafortunada estatística que acontece confortavelmente longe. Esta hierarquia segue várias regras controversas, que é urgente contrariar: desde logo, que mortes nacionais são muito mais importantes que as outras, a um rácio nacionalista que deve andar pela cotação de 1 nacional = 500 estrangeiros. Em seguida, a qualidade e o pormenor da informação recebida dependem do local onde a notícia ocorre; Paris ou Alpes permitem actualizações constantes, enquanto países africanos ou asiáticos fazem-nos depender de uma, por vezes única, agência noticiosa. Por fim, é claro – quando um atentado num país instável faz mortes “esperadas”, já nem nos surpreendemos quando tal já nem aparece nas páginas interiores. É assim que “somos todos Charlie” (e ainda bem que assim é), mas não temos a mesma energia para sermos todos Nigéria, nem todos Quénia. Torna-se um círculo vicioso, porque a hierarquia é decidida em redacções de jornais de acordo com o interesse que as notícias provocam nos leitores, e esse interesse vai diminuindo à medida que sabemos cada vez menos sobre o distante e o alheio, recomeçando o processo.

Este estado de coisas não é uma fatalidade. Podemos e devemos desenvolver a nossa cidadania, aperfeiçoar o nosso conhecimento, criar redes de conhecimento partilhado que curto-circuitem os estafados clichés. No Twitter, a blogueira queniana Ory Mwangi criou o tema “148 não é só um número”, que procura dar caras e nomes às vítimas de mais um ataque aos nossos valores civilizacionais. É um bom início, mas claramente insuficiente. De Roma, o papa Francisco ajudou, condenando especificamente este acto onde se repetiram tantas violências indizíveis, e a ONU também foi veemente nas suas palavras, mas uma acção com muito mais impacto seria uma reedição da marcha de líderes políticos mundiais em Nairobi para demonstrar que não nos rendemos, não nos intimidamos, e não mudaremos. Uma marcha como a que supostamente aconteceu em Paris este Janeiro – só que real, desta vez, e não encenada.

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