Em
“Fotos do Fogo”, do seu excelente álbum “Tinta Permanente”, Sérgio Godinho
exorciza os seus fantasmas da guerra colonial portuguesa, colocando-se na pele
de um antigo soldado português que, muitos anos depois, relembra à lareira os
dias em que lhe deram um lança-chamas cospe-fogo para a mão e lhe disseram:
“agora queima aldeias”. Tudo em nome de uma suposta missão civilizacional, um
colonialismo cego e racista que queimou toda uma geração, em Portugal, em
Angola, em Moçambique ou na Guiné-Bissau.
O
escritor de canções lançou o seu primeiro disco em 1971, “Os Sobreviventes”.
1971 é apenas mais uma de várias aparentes coincidências, dado que é o mesmo
ano em que uma sua alma gémea, um outro jovem envolvido e desobediente, publica
um livro que se tornará obra incontornável, aclamado e proibido pelas ditaduras
que alastraram pela América do Sul, oferecido por Hugo Chavéz a Obama no único
encontro entre estes dois estadistas, lido pelos jovens sul-americanos como uma
espécie de ritual iniciático do despertar da sua consciência histórica,
política, económica. O livro tem um título – “As veias abertas da América
Latina” – que sugere desde logo aquilo que lá se encontra. “O desenvolvimento
desenvolve a desigualdade”: a descrição de um continente estuprado pelo
colonialismo e bloqueado por séculos de dominação europeia e americana. E
obrigou o seu autor, o uruguaio Eduardo Galeano, ao exílio; primeiro na
Argentina e depois, quando este último país também caiu na sinistra mão dos
generais, em Espanha.
Foi já
desde a Península, casa dos dois países que colonizaram a América Latina (e sem
esquecer que foram os navegadores portugueses os primeiros a chegar ao que é
hoje o Uruguai, que também chegou a fazer parte do tardio império português),
que Galeano escreveu a sua obra de maior fôlego: “Memória do Fogo”. Prosas
pequenas em linguagem poética, em que os narradores são os personagens, reais
ou fictícios, da tradição oral sul-americana.
Mas
o grande Galeano era ainda mais do que esse enorme livro. Era também um homem
que se tinha transformado em consciência ética, ecológica, inconformada dos
“ninguéns” – os ninguéns donos de nada, a quem tinha dedicado um livro. Era um
utópico que acreditava ser a utopia a única forma de avanço. Era o arauto que
tinha escrito (e estas palavras arrepiam-me sempre) “Oxalá possamos ser
desobedientes de cada vez que recebemos ordens que humilham a nossa consciência
ou violam o nosso senso comum; oxalá sejamos dignos da desesperada esperança.
Oxalá sejamos capazes de continuar caminhando os caminhos do vento, apesar das
quedas e das traições e das derrotas, porque a história continua, além de nós
mesmos, e quando ela diz adeus, está a dizer: até logo. Oxalá possamos merecer
que nos chamem loucos por cometer a loucura de nos negarmos a esquecer, nestes
tempos da amnésia obrigatória.”
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