terça-feira, 5 de maio de 2015

Memória do fogo


Em “Fotos do Fogo”, do seu excelente álbum “Tinta Permanente”, Sérgio Godinho exorciza os seus fantasmas da guerra colonial portuguesa, colocando-se na pele de um antigo soldado português que, muitos anos depois, relembra à lareira os dias em que lhe deram um lança-chamas cospe-fogo para a mão e lhe disseram: “agora queima aldeias”. Tudo em nome de uma suposta missão civilizacional, um colonialismo cego e racista que queimou toda uma geração, em Portugal, em Angola, em Moçambique ou na Guiné-Bissau.

O escritor de canções lançou o seu primeiro disco em 1971, “Os Sobreviventes”. 1971 é apenas mais uma de várias aparentes coincidências, dado que é o mesmo ano em que uma sua alma gémea, um outro jovem envolvido e desobediente, publica um livro que se tornará obra incontornável, aclamado e proibido pelas ditaduras que alastraram pela América do Sul, oferecido por Hugo Chavéz a Obama no único encontro entre estes dois estadistas, lido pelos jovens sul-americanos como uma espécie de ritual iniciático do despertar da sua consciência histórica, política, económica. O livro tem um título – “As veias abertas da América Latina” – que sugere desde logo aquilo que lá se encontra. “O desenvolvimento desenvolve a desigualdade”: a descrição de um continente estuprado pelo colonialismo e bloqueado por séculos de dominação europeia e americana. E obrigou o seu autor, o uruguaio Eduardo Galeano, ao exílio; primeiro na Argentina e depois, quando este último país também caiu na sinistra mão dos generais, em Espanha.

Foi já desde a Península, casa dos dois países que colonizaram a América Latina (e sem esquecer que foram os navegadores portugueses os primeiros a chegar ao que é hoje o Uruguai, que também chegou a fazer parte do tardio império português), que Galeano escreveu a sua obra de maior fôlego: “Memória do Fogo”. Prosas pequenas em linguagem poética, em que os narradores são os personagens, reais ou fictícios, da tradição oral sul-americana.

Mas o grande Galeano era ainda mais do que esse enorme livro. Era também um homem que se tinha transformado em consciência ética, ecológica, inconformada dos “ninguéns” – os ninguéns donos de nada, a quem tinha dedicado um livro. Era um utópico que acreditava ser a utopia a única forma de avanço. Era o arauto que tinha escrito (e estas palavras arrepiam-me sempre) “Oxalá possamos ser desobedientes de cada vez que recebemos ordens que humilham a nossa consciência ou violam o nosso senso comum; oxalá sejamos dignos da desesperada esperança. Oxalá sejamos capazes de continuar caminhando os caminhos do vento, apesar das quedas e das traições e das derrotas, porque a história continua, além de nós mesmos, e quando ela diz adeus, está a dizer: até logo. Oxalá possamos merecer que nos chamem loucos por cometer a loucura de nos negarmos a esquecer, nestes tempos da amnésia obrigatória.”

A História continua, além de nós mesmos, além do mestre Eduardo Galeano, que nos deixou a todos mais pobres de espírito dizendo-nos até logo no dia 13 de Abril, perto do Café Brasileiro que era o seu poiso favorito em Montevideu.

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