O
mundo é um lugar pouco recomendável. Frequentá-lo é fazer um verdadeiro
percurso dos combatentes, e mesmo o simples facto de estar informado sobre ele
requer grandes doses de relativismo e insensibilidade – sem estes seria difícil
abrir um jornal a cada dia. Só que nem isso nos salva de ler sobre o Estado
Islâmico e pasmar, em choque, enquanto os restos da nossa fé na espécie humana
escorrem pelo cano de esgoto abaixo.
A
barbárie que se desenrola nas áreas do Médio Oriente controladas pelo Estado
Islâmico – grandes partes da Síria e do Iraque, a uma distância de não mais de
600 km de uma fronteira da União Europeia (em Chipre) – é indescritível, mas
quotidiana. Jornalistas e turistas ocidentais são decepados e os vídeos
difundidos para o mundo no Youtube; as violações de mulheres tornaram-se
prática corrente de uma política de humilhação e limpeza étnica; minorias e
opositores são discriminados, presos, ou feitos desaparecer. A loucura
totalitária não tem freio, tal como nos momentos mais sinistros dos regimes
nazis ou estalinistas.
É
precisamente a estes regimes que o último vídeo atroz divulgado pelo EI, na
quinta-feira, faz um piscar de olhos macabro. Nele vêem-se homens barbudos a
usar armas rudimentares, martelos e picaretas, contra estátuas milenares
provindas das mais antigas civilizações do planeta; em 1940, foi também com uma
pequena picareta que Trotsky foi assassinado por ser o único opositor sério a
Estaline, enquanto que poucos anos antes o regime nacional-socialista tinha
queimado montanhas de livros e organizado as suas exposições de “arte
degenerada” – condenando centenas de artistas e escritores ao suicídio, ao
exílio ou à vergonha. E tal como acontece no EI, que contrabandeia a maioria
das peças “não islâmicas” para se financiar, também os nazis confiscavam a arte
que etiquetavam de degenerada e a vendiam em seguida por bom dinheiro.
A
violência das ditaduras só pode sobreviver apagando a memória, destruindo a
cultura, o saber e o conhecimento. É nesse contexto que é preciso ver o vídeo
do ataque ao museu nacional de Mossul, cidade do norte do Iraque que envolve a
bíblica Nínive – capital dos assírios, um povo que dominou a Mesopotâmia nos
primórdios da civilização. Niníve foi a maior e mais magnífica cidade do seu
tempo de apogeu, durante o século VII a.C., e os seus portões de entrada
guardados por enormes touros com cabeça humana esculpidos na pedra estão
famosamente reproduzidos no museu Britânico em Londres.
Os
originais, esses, depois de quase três milénios a atravessar todo o tipo de
guerras, acabam de ser esfarelados às mãos de vândalos armados de um martelo
pneumático. As imagens são dolorosas de ver, não apenas por sentirmos que é
parte da nossa memória colectiva que desaparece ali para todo o sempre, mas
também pela ameaça evidente que estes bárbaros constituem para o nosso futuro
se alguma vez se expandirem e prevalecerem. Como advertiu Heinrich Heine, autor
alemão do século XIX cujos livros também foram queimados pelos nazis: “Ali onde
os livros são queimados também se acabarão por queimar pessoas”.
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