terça-feira, 5 de maio de 2015

A vida atrás de portões dourados


“Ninguém está mais desesperadamente escravizado que aqueles que erradamente acreditam serem livres”. A frase é de Goethe – o maior escritor de sempre em língua alemã, com licença de Zweig e Kafka – logo, tem mais de dois séculos. Mas nunca foi tão útil como agora.

Apesar de preenchermos discursos e filmes com grandiosas palavras como “liberdade” e “democracia”, a verdade pura e dura é que ambos os conceitos são cada vez mais relativos, para não dizer falsificados. São numerosos os pensadores que consideram as nossas sociedades como pós-democráticas (uma ideia que será objecto de outro artigo neste espaço); quanto à “liberdade”, sabemos hoje (sem querer sabê-lo) que somos vigiados, escutados e controlados, que as nossas opiniões são formatadas pelos media de massas, e que qualquer decisão que tomemos esbarra rapidamente na asfixiante colecção de regras e limitações que construímos ao longo dos tempos. Liberdade?

A frase de Goethe foi largamente utilizada durante os protestos “Occupy Wall Street” que procuraram, sem sucesso, recuperar pelo menos parte do poder público irremediavelmente escapado para algumas, muito poucas, mãos privadas. Mas essas mesmas manifestações descobriram, da forma mais dura, uma nova forma de cercear liberdades: a privatização do espaço urbano. A reunião de Londres, por exemplo, foi programada para acontecer em frente à Bolsa de Valores, na praça Paternoster. Acontece que essa praça, tal como quase todos os grandes espaços públicos na City de Londres, tem um dono – neste caso a Mitsubishi Corporation – que imediatamente conseguiu uma ordem judicial de expulsão da multidão. 

O conceito de “Pops” – da sigla em inglês para “espaço público de propriedade privada” – foi definido do outro lado do Atlântico, e só em Nova York já há 503 praças, galerias ou parques assim definidos, com acesso restrito e controlado, apesar de aparentemente – e parcialmente pagos com dinheiros – públicos. Mas estes locais não são uma invenção americana, e é nos países onde as desigualdades são mais gritantes e a sociedade mais segregada que eles florescem, por exemplo nas monarquias do Golfo, na América Latina, na África do Sul ou na Índia – este último país está a construir uma cidade completamente privada, Lavasa, com um “administrador” não eleito em vez de um alcaide, e a um altíssimo custo ecológico.

Na Europa as desigualdades também são crescentes, são esses os tempos que vivemos. E nenhum país foi mais atingido pela crise económica que a Grécia, onde a esmagadora maioria da população vive hoje pior que há anos atrás – mas uma certa elite vive muito melhor. Terreno propício, portanto, para o maior projecto de privatização do espaço público no continente, no espaço do antigo aeroporto de Atenas – 620 hectares que serão cercados, vigiados e transformados em casino e complexo de lazer, tipo Las Vegas no Mediterrâneo. Os milhares que vivem por trás de sólidos portões em condomínios bem fechados – e os milhões que aspiram a fazê-lo – aplaudirão mais esta apropriação abusiva de pedaços do planeta em benefício de alguns; nós, os restantes, continuaremos a iludirmo-nos, repetindo o mantra “liberdade, democracia” – mesmo enquanto o espaço público se vai fechando à nossa volta, deixando-nos cercados.

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