terça-feira, 5 de maio de 2015

Mare Nostrum

Na base da estátua da Liberdade, em Nova York, há uma placa de bronze onde está inscrito um poema muito conhecido do outro lado do Atlântico. A sua autora é Emma Lazarus, uma judia sefardita do fim do século XIX cujos antecedentes estavam em Portugal, e o poema versa sobre os imigrantes, sobretudo europeus, que chegavam então em hordas aos Estados Unidos – de barco, naturalmente. Uma tradução livre do segundo soneto poderia ser algo como 

“Dêem-me os vossos exaustos, os vossos pobres
As vossas massas encurraladas ansiosas por respirar em liberdade
O miserável refugo das vossas costas apinhadas de gente
A estes sem-abrigo, aos sacudidos pelas tempestades, enviem-nos a mim
Eu levanto a minha tocha ao lado dos portões dourados”.

Os EUA são um país construído por imigrantes, e durante muitas fases da sua história encorajaram a sua vinda (em vez das “massas encurraladas” sempre procuraram ser, isso sim, altamente selectivos). Isso mudou: as pressões migratórias nas últimas décadas tornaram-se tão fortes que o país construiu um muro. Um muro, por vezes uma cerca, que cobre mais de 1000 km da fronteira com o México – e que divide populações índias, barra animais de chegarem aos seus habitats, destrói ecossistemas, e nem sequer é eficaz no seu objectivo (deter as migrações ilegais), sendo ainda por cima muito caro para os contribuintes. Mas continua lá, e os migrantes mexicanos continuam a morrer à sua sombra.

A Europa não tem um muro: tem um mar. Os sem-abrigo sacudidos pelas tempestades, pelas ondas, apinham-se nas costas da Líbia ansiosos pela oportunidade de, sendo extorquidos, poderem ainda assim apanhar um cargueiro, um pesqueiro, qualquer coisa que flutue e que os aproxime do Eldorado europeu – mesmo que este seja uma miragem, será sempre bem melhor do que as zonas de guerra ou fome de que estes africanos provêm.


Por outras palavras, elas continuarão a vir, essas massas ansiosas pela liberdade. Sem descanso. Só em 2014, foram 215 000 pessoas a atravessar o “nosso mar”. Temos de trabalhar para melhorar as suas sociedades de origem, minorando a guerra (ou pelo menos não a acelerando, como na Líbia), não apoiando ditadores corruptos, promovendo o crescimento económico; só que isso leva muito tempo. Neste momento, é necessário voltar a fazer o que a Itália fazia até ao outono passado, patrulhando o Mediterrâneo com muitos meios navais e aéreos numa missão humanitária e militar – a Mare Nostrum.

Para se manter no terreno, a missão custava 9 milhões de euros por mês – uma gota de água para a Europa, mas demasiado para os depauperados cofres italianos. Roma pediu ajuda, alegando que o problema das migrações é comum e não apenas seu; 24 dos 28 países europeus (todos os outros menos Grécia, Malta e Chipre) responderam que não, não contribuiriam, acrescentando que isso de ajudar náufragos pobres só os incentivava a continuar a tentar, logo o melhor seria abandoná-los, a eles e ao Mediterrâneo, à sua sorte.

É assim que as coisas se passam nesta Europa “solidária” de 2015.

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