terça-feira, 5 de maio de 2015

Plástico fantástico

O leitor conhece aquela anedota sobre o saco plástico? Claro que não, porque não há forma de fazer humor sobre o tema: sacos plásticos são uma autêntica praga para o nosso depauperado planeta. Não só o plástico é um material difícil e nocivo de produzir (o montante de petróleo necessário para um simples saco plástico seria suficiente para mover um carro por 11 metros), como também está cheio de substâncias químicas pouco testadas e ligadas a doenças graves. Pior que tudo, não se desintegra nem se degrada, pelo que o saco das compras que usámos por alguns minutos hoje vai andar por aí, em boa forma, por muitos séculos – a maior parte deles passados no mar a sufocar peixes, gaivotas e polvos.

O mundo produz anualmente 1 milhão de milhões de sacos plásticos por ano. É um 1, seguido de doze zeros, a cada ano somando aos resíduos de todos os outros anos. A este ritmo, em breve não existirá espaço no planeta para humanos, animais e sacos plásticos – será preciso escolher.

E a Europa escolheu: o Parlamento Europeu acaba de aprovar a proibição dos sacos de plástico “leves” (ou seja, os mais finos e que tendem a não ser reutilizados). A intenção é a de reduzir drasticamente a utilização daqueles exemplares mais desagradáveis e barulhentos, seguindo as práticas dos países mais avançados nessa matéria – na Dinamarca e na Finlândia, cada habitante usa apenas 4 destes saquinhos por ano… enquanto que os portugueses, no outro extremo, usam nada mais nada menos que 466 por pessoa, em média! Mesmo sabendo que até há pouquíssimo tempo cada supermercado parecia ter prazer em oferecer o maior número de sacos possível – e não era raro ver clientes a trazer cada peça de fruta num saco diferente – o valor não deixa de ser assustador. Era necessário mudar, e a proibição só peca por tardia.

Mas claro, nem o que terá sempre de ser considerado algo de positivo – o desaparecimento, a médio prazo, de algo terrível como o plástico ubíquo – deixa de envolver grandes consequências económicas. O caso vem sublinhar a dificuldade de tomar decisões políticas nas nossas sociedades nominalmente democráticas, porque há sempre interesses contrastantes (até num caso linear como este) e muitas vezes, ou quase sempre, são os poderes mais obscuros quem tem maior capacidade de influenciar a tomada de decisão. Neste caso, os sacos plásticos serão proibidos. Mas nem todos. 

O texto da lei foi sendo alterado ao longo do tempo, e uma grande empresa alemã produtora, principalmente, dos sacos mais grossos conseguiu, através dos bons serviços de uma firma de advogados lobbyistas, que os políticos europeus não incluíssem estes no alcance da directiva, e isto apesar de obviamente os sacos pesados levarem mais plástico e serem assim ainda mais poluentes que os leves. Em compensação, os sacos plásticos biodegradáveis foram mesmo incluídos na proibição (sob o argumento que eles se desfazem em pedaços que continuam a ser nocivos). Por tremenda coincidência, ou talvez não, os sacos biodegradáveis são patente da maior concorrente daquela empresa alemã (uma companhia italiana), que agora ficará sem produtos para vender. 

O problema é que no mundo dos negócios e da política existem muito poucas coincidências. E a economia europeia faz cada vez mais lembrar a famosa frase de Gary Lineker sobre o futebol: “É um desporto simples: 11 contra 11, e no fim ganham os alemães”.

O outro 25 de Abril


O passado sábado foi Dia da Liberdade. Em Portugal passaram 41 anos desde aquela épica madrugada de “E depois do adeus” e “Grândola Vila Morena”, desde os tanques no Largo do Carmo, desde aquela imensa alegria de um país finalmente libertado após quase meio século de fascismo. Foram 41 anos de evolução rápida no meio de alguns retrocessos como o actual – e é altamente simbólico ler a filha de Salgueiro Maia, emigrada no Luxemburgo, dizer “o meu pai deve estar a dar voltinhas no caixão”, como é preocupante ler o pacto de regime entre PS, PSD e CDS para amordaçar os media do país durante a sua cobertura da campanha, numa reedição moderna da comissão de censura prévia. Mas apesar dos escolhos no caminho, aquele dia de Primavera em 1974 foi, e sempre será, a origem de tudo.

A Itália comemora a mesma data como Dia da Libertação; foi há exactamente 70 anos, no final da II Guerra, que uma outra comunicação radiofónica anunciou o fim do fascismo e o renascimento de uma nova Itália. Mussolini seria fuzilado três dias depois.

Este ano, no entanto, uma outra efeméride histórica ultrapassa em significado e simbolismo aquelas duas, pois foi a 25 de Abril de 1915 – precisamente há um século atrás – que se deu o desembarque de Gallipoli, onde dois países tiveram o seu “baptismo de fogo” e tantos homens encontraram uma morte duríssima e absurda. A Austrália e a Nova Zelândia tinham acabado de ganhar o direito à autodeterminação, mas ainda faziam parte de um Império Britânico envolvido numa guerra brutal contra a Alemanha e os seus aliados com capital na mítica Constantinopla.

Conquistar Constantinopla a uns otomanos enfraquecidos e desmoralizados não seria difícil, pensava o exército britânico com a sua costumeira arrogância. Foram feitas incursões navais para controlar os estreitos (Bósforo e Dardanelos), e ultimados os planos para uma invasão terrestre, iniciada num desembarque maciço, para o qual restava escolher os pontos mais adequados; essa escolha recaiu em dois sectores da quase deserta península de Gallipoli. Um deles foi reservado para o Anzac – o corpo do exército constituído exclusivamente por soldados voluntários vindos do outro lado do mundo, na Oceânia.

Na madrugada do dia 25, os Anzacs desembarcaram no que é hoje conhecido oficialmente como “a enseada Anzac” – e que consiste numa estreitíssima língua de areia e pedras. O objectivo era chegar rapidamente aos pontos elevados do terreno e conquistar as poucas aldeias do território, abrindo caminho até à capital. Mas a prainha está rodeada por uma falésia, no cimo da qual estavam os canhões turcos prevenidos quanto a uma possível invasão. Foi uma carnificina absurda. Muitos soldados nunca chegaram a sair dos barcos; ao final do dia, os sobreviventes tinham conseguido amontoar-se ao longo da areia, entre centenas de cadáveres, completamente vulneráveis ao fogo inimigo no topo da falésia. O comandante australiano requereu a retirada imediata, alegando a condição dizimada do regimento; o general inglês respondeu-lhe “escavem, entrincheirem-se, aguentem-se” – não eram uns milhares de tipos vindos dos antípodas para morrer ali, naquele fim do mundo turco, que lhe iriam fazer perder o sono e o prestígio.

A invasão arrastou-se por 9 meses, sem qualquer progressão dos Aliados, encurralados, doentes e mortos em terras de ninguém, arrastados para longe de casa sem compreender porquê ou para quê. No total, mais de 110 mil mortos e quase 400 mil feridos em vão, vítimas da incompetência e arrogância das hierarquias militares, habituados então a enviar jovens homens para a morte enquanto beberricavam o chá.

Gallipoli, palco de emocionante missa no sábado com os PM australiano e neo-zelândes, tornou-se símbolo da vergonha da guerra. Mas estes homens do século passado lutaram por nós, deram a vida pela nossa liberdade. Merecem toda a nossa gratidão e respeito.

Mare Nostrum

Na base da estátua da Liberdade, em Nova York, há uma placa de bronze onde está inscrito um poema muito conhecido do outro lado do Atlântico. A sua autora é Emma Lazarus, uma judia sefardita do fim do século XIX cujos antecedentes estavam em Portugal, e o poema versa sobre os imigrantes, sobretudo europeus, que chegavam então em hordas aos Estados Unidos – de barco, naturalmente. Uma tradução livre do segundo soneto poderia ser algo como 

“Dêem-me os vossos exaustos, os vossos pobres
As vossas massas encurraladas ansiosas por respirar em liberdade
O miserável refugo das vossas costas apinhadas de gente
A estes sem-abrigo, aos sacudidos pelas tempestades, enviem-nos a mim
Eu levanto a minha tocha ao lado dos portões dourados”.

Os EUA são um país construído por imigrantes, e durante muitas fases da sua história encorajaram a sua vinda (em vez das “massas encurraladas” sempre procuraram ser, isso sim, altamente selectivos). Isso mudou: as pressões migratórias nas últimas décadas tornaram-se tão fortes que o país construiu um muro. Um muro, por vezes uma cerca, que cobre mais de 1000 km da fronteira com o México – e que divide populações índias, barra animais de chegarem aos seus habitats, destrói ecossistemas, e nem sequer é eficaz no seu objectivo (deter as migrações ilegais), sendo ainda por cima muito caro para os contribuintes. Mas continua lá, e os migrantes mexicanos continuam a morrer à sua sombra.

A Europa não tem um muro: tem um mar. Os sem-abrigo sacudidos pelas tempestades, pelas ondas, apinham-se nas costas da Líbia ansiosos pela oportunidade de, sendo extorquidos, poderem ainda assim apanhar um cargueiro, um pesqueiro, qualquer coisa que flutue e que os aproxime do Eldorado europeu – mesmo que este seja uma miragem, será sempre bem melhor do que as zonas de guerra ou fome de que estes africanos provêm.


Por outras palavras, elas continuarão a vir, essas massas ansiosas pela liberdade. Sem descanso. Só em 2014, foram 215 000 pessoas a atravessar o “nosso mar”. Temos de trabalhar para melhorar as suas sociedades de origem, minorando a guerra (ou pelo menos não a acelerando, como na Líbia), não apoiando ditadores corruptos, promovendo o crescimento económico; só que isso leva muito tempo. Neste momento, é necessário voltar a fazer o que a Itália fazia até ao outono passado, patrulhando o Mediterrâneo com muitos meios navais e aéreos numa missão humanitária e militar – a Mare Nostrum.

Para se manter no terreno, a missão custava 9 milhões de euros por mês – uma gota de água para a Europa, mas demasiado para os depauperados cofres italianos. Roma pediu ajuda, alegando que o problema das migrações é comum e não apenas seu; 24 dos 28 países europeus (todos os outros menos Grécia, Malta e Chipre) responderam que não, não contribuiriam, acrescentando que isso de ajudar náufragos pobres só os incentivava a continuar a tentar, logo o melhor seria abandoná-los, a eles e ao Mediterrâneo, à sua sorte.

É assim que as coisas se passam nesta Europa “solidária” de 2015.

Memória do fogo


Em “Fotos do Fogo”, do seu excelente álbum “Tinta Permanente”, Sérgio Godinho exorciza os seus fantasmas da guerra colonial portuguesa, colocando-se na pele de um antigo soldado português que, muitos anos depois, relembra à lareira os dias em que lhe deram um lança-chamas cospe-fogo para a mão e lhe disseram: “agora queima aldeias”. Tudo em nome de uma suposta missão civilizacional, um colonialismo cego e racista que queimou toda uma geração, em Portugal, em Angola, em Moçambique ou na Guiné-Bissau.

O escritor de canções lançou o seu primeiro disco em 1971, “Os Sobreviventes”. 1971 é apenas mais uma de várias aparentes coincidências, dado que é o mesmo ano em que uma sua alma gémea, um outro jovem envolvido e desobediente, publica um livro que se tornará obra incontornável, aclamado e proibido pelas ditaduras que alastraram pela América do Sul, oferecido por Hugo Chavéz a Obama no único encontro entre estes dois estadistas, lido pelos jovens sul-americanos como uma espécie de ritual iniciático do despertar da sua consciência histórica, política, económica. O livro tem um título – “As veias abertas da América Latina” – que sugere desde logo aquilo que lá se encontra. “O desenvolvimento desenvolve a desigualdade”: a descrição de um continente estuprado pelo colonialismo e bloqueado por séculos de dominação europeia e americana. E obrigou o seu autor, o uruguaio Eduardo Galeano, ao exílio; primeiro na Argentina e depois, quando este último país também caiu na sinistra mão dos generais, em Espanha.

Foi já desde a Península, casa dos dois países que colonizaram a América Latina (e sem esquecer que foram os navegadores portugueses os primeiros a chegar ao que é hoje o Uruguai, que também chegou a fazer parte do tardio império português), que Galeano escreveu a sua obra de maior fôlego: “Memória do Fogo”. Prosas pequenas em linguagem poética, em que os narradores são os personagens, reais ou fictícios, da tradição oral sul-americana.

Mas o grande Galeano era ainda mais do que esse enorme livro. Era também um homem que se tinha transformado em consciência ética, ecológica, inconformada dos “ninguéns” – os ninguéns donos de nada, a quem tinha dedicado um livro. Era um utópico que acreditava ser a utopia a única forma de avanço. Era o arauto que tinha escrito (e estas palavras arrepiam-me sempre) “Oxalá possamos ser desobedientes de cada vez que recebemos ordens que humilham a nossa consciência ou violam o nosso senso comum; oxalá sejamos dignos da desesperada esperança. Oxalá sejamos capazes de continuar caminhando os caminhos do vento, apesar das quedas e das traições e das derrotas, porque a história continua, além de nós mesmos, e quando ela diz adeus, está a dizer: até logo. Oxalá possamos merecer que nos chamem loucos por cometer a loucura de nos negarmos a esquecer, nestes tempos da amnésia obrigatória.”

A História continua, além de nós mesmos, além do mestre Eduardo Galeano, que nos deixou a todos mais pobres de espírito dizendo-nos até logo no dia 13 de Abril, perto do Café Brasileiro que era o seu poiso favorito em Montevideu.

A hierarquia da morte


Era minha intenção escrever este texto sobre Manoel de Oliveira. Prestar ao Mestre uma pequena homenagem, falar sobre a relação tão profunda que ele mantinha com o Porto. Discutir a imagem da sua cidade, até certo ponto inventada pelo realizador. Lembrar que na incrível carreira de Oliveira apenas existiram duas longas-metragens de ficção antes de 1974, todas as restantes chegaram mais tarde. E por aí em diante.

Mas no mesmo dia em que Oliveira desapareceu aos 106 anos, o horror indescritível atacou-nos num ponto mais distante do planeta – uma pequena cidade do Quénia. 148 pessoas, quase todas entre os 19 e os 24 anos, foram barbaramente assassinadas pelos neonazis islâmicos do al-Shabaab (que significa, numa ironia arrepiante, “a Juventude”). Mais uma vez, como já tinha acontecido há dois anos quando o mesmo grupo de celerados atacou o shopping Westgate no mesmo país, os terroristas seleccionaram entre quem deixavam escapar (os muçulmanos) e quem assassinavam a sangue-frio (todos os outros, nomeadamente os cristãos).

148 jovens seres humanos devem ser mais importantes que 1, e por isso decidi por um dia inverter a “hierarquia da morte”: o processo pelo qual algumas mortes são altamente mediáticas e ocupam todas as redes sociais, enquanto outras não passam de uma desafortunada estatística que acontece confortavelmente longe. Esta hierarquia segue várias regras controversas, que é urgente contrariar: desde logo, que mortes nacionais são muito mais importantes que as outras, a um rácio nacionalista que deve andar pela cotação de 1 nacional = 500 estrangeiros. Em seguida, a qualidade e o pormenor da informação recebida dependem do local onde a notícia ocorre; Paris ou Alpes permitem actualizações constantes, enquanto países africanos ou asiáticos fazem-nos depender de uma, por vezes única, agência noticiosa. Por fim, é claro – quando um atentado num país instável faz mortes “esperadas”, já nem nos surpreendemos quando tal já nem aparece nas páginas interiores. É assim que “somos todos Charlie” (e ainda bem que assim é), mas não temos a mesma energia para sermos todos Nigéria, nem todos Quénia. Torna-se um círculo vicioso, porque a hierarquia é decidida em redacções de jornais de acordo com o interesse que as notícias provocam nos leitores, e esse interesse vai diminuindo à medida que sabemos cada vez menos sobre o distante e o alheio, recomeçando o processo.

Este estado de coisas não é uma fatalidade. Podemos e devemos desenvolver a nossa cidadania, aperfeiçoar o nosso conhecimento, criar redes de conhecimento partilhado que curto-circuitem os estafados clichés. No Twitter, a blogueira queniana Ory Mwangi criou o tema “148 não é só um número”, que procura dar caras e nomes às vítimas de mais um ataque aos nossos valores civilizacionais. É um bom início, mas claramente insuficiente. De Roma, o papa Francisco ajudou, condenando especificamente este acto onde se repetiram tantas violências indizíveis, e a ONU também foi veemente nas suas palavras, mas uma acção com muito mais impacto seria uma reedição da marcha de líderes políticos mundiais em Nairobi para demonstrar que não nos rendemos, não nos intimidamos, e não mudaremos. Uma marcha como a que supostamente aconteceu em Paris este Janeiro – só que real, desta vez, e não encenada.

A vida atrás de portões dourados


“Ninguém está mais desesperadamente escravizado que aqueles que erradamente acreditam serem livres”. A frase é de Goethe – o maior escritor de sempre em língua alemã, com licença de Zweig e Kafka – logo, tem mais de dois séculos. Mas nunca foi tão útil como agora.

Apesar de preenchermos discursos e filmes com grandiosas palavras como “liberdade” e “democracia”, a verdade pura e dura é que ambos os conceitos são cada vez mais relativos, para não dizer falsificados. São numerosos os pensadores que consideram as nossas sociedades como pós-democráticas (uma ideia que será objecto de outro artigo neste espaço); quanto à “liberdade”, sabemos hoje (sem querer sabê-lo) que somos vigiados, escutados e controlados, que as nossas opiniões são formatadas pelos media de massas, e que qualquer decisão que tomemos esbarra rapidamente na asfixiante colecção de regras e limitações que construímos ao longo dos tempos. Liberdade?

A frase de Goethe foi largamente utilizada durante os protestos “Occupy Wall Street” que procuraram, sem sucesso, recuperar pelo menos parte do poder público irremediavelmente escapado para algumas, muito poucas, mãos privadas. Mas essas mesmas manifestações descobriram, da forma mais dura, uma nova forma de cercear liberdades: a privatização do espaço urbano. A reunião de Londres, por exemplo, foi programada para acontecer em frente à Bolsa de Valores, na praça Paternoster. Acontece que essa praça, tal como quase todos os grandes espaços públicos na City de Londres, tem um dono – neste caso a Mitsubishi Corporation – que imediatamente conseguiu uma ordem judicial de expulsão da multidão. 

O conceito de “Pops” – da sigla em inglês para “espaço público de propriedade privada” – foi definido do outro lado do Atlântico, e só em Nova York já há 503 praças, galerias ou parques assim definidos, com acesso restrito e controlado, apesar de aparentemente – e parcialmente pagos com dinheiros – públicos. Mas estes locais não são uma invenção americana, e é nos países onde as desigualdades são mais gritantes e a sociedade mais segregada que eles florescem, por exemplo nas monarquias do Golfo, na América Latina, na África do Sul ou na Índia – este último país está a construir uma cidade completamente privada, Lavasa, com um “administrador” não eleito em vez de um alcaide, e a um altíssimo custo ecológico.

Na Europa as desigualdades também são crescentes, são esses os tempos que vivemos. E nenhum país foi mais atingido pela crise económica que a Grécia, onde a esmagadora maioria da população vive hoje pior que há anos atrás – mas uma certa elite vive muito melhor. Terreno propício, portanto, para o maior projecto de privatização do espaço público no continente, no espaço do antigo aeroporto de Atenas – 620 hectares que serão cercados, vigiados e transformados em casino e complexo de lazer, tipo Las Vegas no Mediterrâneo. Os milhares que vivem por trás de sólidos portões em condomínios bem fechados – e os milhões que aspiram a fazê-lo – aplaudirão mais esta apropriação abusiva de pedaços do planeta em benefício de alguns; nós, os restantes, continuaremos a iludirmo-nos, repetindo o mantra “liberdade, democracia” – mesmo enquanto o espaço público se vai fechando à nossa volta, deixando-nos cercados.

Mais uma Mona Lisa, por favor


9 334 435 pessoas visitaram o museu do Louvre no ano passado, algo como 30 mil aficionados de Arte por cada dia de abertura. Estes números tornam o museu parisiense inaugurado na ressaca da Revolução Francesa no mais visitado do mundo, e são impressionantes, sobretudo se pensarmos que um quadro de tamanho médio, por exemplo, só pode ser razoavelmente contemplado por – no máximo – uma dezena de pessoas de cada vez (e idealmente bem menos do que isso). Não admira que procurar vislumbrar a Mona Lisa por entre uma miríade de cabeças e máquinas fotográficas se torne, quase sempre, numa desilusão.

Talvez seja melhor assim, até porque o quadro de Leonardo não é o mais interessante que o enorme museu tem para oferecer. Mas a “experiência” vivida pelo turista não pode ser sistematicamente estragada pelas multidões; um perigo para o qual os grandes museus do mundo – e quase todos eles ficam na Europa, algo que nos deve encher de orgulho – estão neste momento a acordar. “O Louvre foi concebido para receber 5 milhões de pessoas por ano”, afirmou o seu presidente, J-L Martinez, “e há três anos consecutivos que estamos bem acima dos 9 milhões”. Igual para o museu Britânico (quase 7 milhões), museu do Vaticano (6 milhões) ou muitas outras destas veneráveis instituições, pensadas para um tempo diferente com um público diferente.

O público dos grandes museus está a crescer essencialmente por dois grandes fenómenos: o triunfo das companhias aéreas low-cost – democratizando as viagens e tornando mais fáceis as visitas de fim-de-semana a uma grande cidade – e a explosão de mercados emergentes com novos viajantes cheios de dinheiro para gastar, com a China, que ainda há poucos anos praticamente não enviava turistas para o Ocidente e hoje já ameaça tornar-se o mais numeroso contingente estrangeiro em Versailles, como melhor exemplo.

Os problemas são semelhantes, as soluções talvez venham também a sê-lo. O MoMA, em Nova York, vai demolir o prédio vizinho (um plano altamente controverso); o palácio de Versalhes continua a agigantar-se, com mais 2700 m2 de jardins. Quando expandir não é uma opção, como no Louvre, a solução vai passar por repensar os acessos, as bilheteiras, os bengaleiros; a National Gallery ou o Guggenheim de Bilbao vão melhorar os seus restaurantes. E depois, claro, há sempre a hipótese de abrir durante mais tempo – nos EUA é possível visitar os grandes museus em qualquer dia da semana, o ministério da Cultura francês quer obrigar o Louvre e o museu d’Orsay a fazer o mesmo. 

Este último quer “distribuir melhor as pessoas dentro do museu” e acaba de eliminar a sua proibição a fotografias – os mais cínicos comentam tudo serve para acelerar processos já que tirar uma “selfie” em frente a cada quadro demora menos tempo que olhar para ele procurando compreendê-lo…

Não deixa de ser irónico que museus, cuja missão é precisamente a de mostrar as suas colecções difundindo a Cultura pelo camada mais alargada possível da sociedade, se queixem de receber “demasiados” visitantes. Mas há limites físicos que não há forma de ultrapassar. A não ser que mostrar cópias da Mona Lisa espalhadas por diferentes museus do mundo fosse uma solução aceitável para o público…

Libertem o meu telefone


Se o caro leitor tiver a perigosa ideia de entrar no território suíço para, por exemplo, passar um dia a esquiar, não é apenas o selo automóvel para todo o ano que terá de adquirir; é bem provável que também o seu telefone lhe transmita uma simpática mensagem do operador informando-o de que, por exemplo, um MB de dados lhe custará agora 15 euros. O que significa que ver um email de trabalho que contenha um documento .pdf, mais um saltinho ao facebook, pode rapidamente significar uma conta de 100 euros ou mais.

O caso acima é um exemplo extremo, se bem que real, dos efeitos diabólicos da itinerância móvel, vulgo roaming. E foi graças a surpresas chocantes com contas telefónicas após as férias de verão das suas filhas que Viviane Reding, então comissária das telecomunicações, começou a usar a iniciativa legislativa europeia para quebrar o cartel obsceno das telefónicas; primeiro convidando-as a auto-regularem-se (convite completamente ignorado, evidentemente), depois estabelecendo limites a cada ano mais baixos para os preços aceitáveis no roaming.

As gigantes rodas dentadas da política europeia continuaram a mover-se na mesma direcção, e em Outubro de 2013, os Estados-membros reunidos no Conselho aprovaram, com pompa, circunstância e urgência, o mercado único europeu das telecomunicações, para logo em seguida o Parlamento Europeu, antes das eleições de Maio passado, definir uma data para o fim absoluto do roaming: 15 de Dezembro de 2015. Faltam 9 meses.

Mas este bebé está em risco de não nascer, porque os mesmos governos europeus que há pouco mais de ano aprovaram um grandiloquente texto chamado “mercado único das telecomunicações” resolveram mais uma vez mostrar a quem devem verdadeira fidelidade: não aos cidadãos que os elegem, mas sim às grandes corporações que os financiam. E assim, o fim do roaming foi enviado pelo Conselho para as calendas gregas: o único compromisso é agora o de “rever a situação lá pelo ano de 2018”.

Ainda não foi dita a última palavra sobre o caso, porque os deputados europeus (e entre eles, de novo Reding) estão furiosos e vão insistir na sua posição original. Os lucros extraordinários obtidos pelas Vodafones deste mundo baseando-se em fronteiras que já não existem e alegando custos que nunca existiram não são defensáveis. Mas a luta das operadoras não é pelos milhares de euros do roaming; é pelos milhões do status quo, é por evitar a verdadeira concorrência que um mercado único europeu traria, obrigando as empresas a competir num grande relvado nivelado em vez de confortavelmente instaladas dentro dos seus cartelizados quintais nacionais. Exemplo: se eu pudesse escolher a melhor e mais barata operadora europeia sem ser penalizado fortemente ao atravessar uma fronteira, nunca seria cliente das exorbitantes operadoras do Benelux (Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos são os três países mais caros da Europa para se falar ao telefone); compraria o meu cartão SIM na Lituânia ou na Roménia, onde as chamadas são em média 77% mais baratas (e as redes são de melhor qualidade), e usufruiria de um verdadeiro mercado europeu como é tantas vezes propagandeado – mas nunca existe.

Já está teorizado, já há legislação, só falta concretizarem-no: libertem o meu telefone!

Eu, robot


Angela Merkel, a imperatriz da Europa, está em visita oficial ao Japão e um dos primeiros eventos da sua agenda foi o de conhecer “Asimo” – o robot humanóide desenvolvido pela Honda que tem servido de embaixador da tecnologia nipónica. Em Abril passado, por exemplo, o robot jogou um pouco de futebol com um divertido Obama, mas a entrevista com Merkel não correu tão bem: a crispação de parte a parte era evidente, e a chanceler alemã ainda fez menos movimentos que o robot. Este, quando voltou a receber a bola de futebol, chutou-a com força para longe em vez de a passar à representante do país campeão do mundo. No momento das despedidas a tensão tornou-se quase insuportável: Asimo, imóvel, recusou-se a apertar a mão a Merkel, que acabou por ter de se contentar em dar-lhe um toque desajeitado no ombro; mal a senhora virou costas, o andróide desatou a acenar efusivamente, num adeusinho zombeteiro.


Estou maravilhado com a humanidade de Asimo. A pouca consideração política que ele demonstra pela chanceler advém certamente da política económica autista que ela imprimiu, imprime e imprimirá à Europa; uma política que tem como um dos seus efeitos mais perigosos procurar reduzir o Banco Central Europeu a mero polícia da “estabilidade de preços”, procurando conter a inflação e restringir o consumo através da redução de massa monetária em circulação (por exemplo mantendo as taxas de juro mais altas do que elas deveriam estar, e por demasiado tempo assim). O resultado é temível: a Europa está perto de cair na armadilha da deflação. Quedas nos preços dos bens e serviços levam à descida da produção e do investimento, que por sua vez levam à queda nos salários e na procura, fechando o círculo com novas quedas dos preços e assim por diante; enquanto isso, as dívidas – o grande fantasma da economia europeia – tornam-se cada vez mais difíceis de pagar, porque aumentam em termos reais.

Asimo, o robot, sabe do que fala. O Japão ainda não saiu completamente das suas duas “décadas perdidas” depois de ter caído em deflação no início dos anos 90. Nessa altura, foram vários os factores a contribuir para a crise: política monetária restritiva; preços do imobiliário em queda depois de uma bolha; bancos insolventes e pânico em relação à possibilidade de mais bancos estarem insolventes; deflação importada através de matérias-primas e bens de consumo baratos vindos de países com baixos salários, como a China; e uma população a envelhecer devido a taxas de fertilidade historicamente baixas. Sim, tudo isto soa assustadoramente familiar para um europeu. E já caminhamos a passos largos para a nossa primeira década perdida.

Tinha alguma esperança que a visita da chanceler alemã ao Japão servisse para aquela aprender com erros alheios, de forma a não os repetir; algo essencial na actual conjuntura. Mas o discurso de Merkel foi virado para o passado, com a intenção de ensinar ao primeiro-ministro Shinzo Abe a melhor forma de lidar com a efeméride dos 70 anos do final da II Guerra (e da derrota de ambos os países).

Compreende-se que o robot tenha boicotado o aperto de mão; ele está mais preocupado com o presente e o futuro. E diga-se, com razões para isso.

À picareta

O mundo é um lugar pouco recomendável. Frequentá-lo é fazer um verdadeiro percurso dos combatentes, e mesmo o simples facto de estar informado sobre ele requer grandes doses de relativismo e insensibilidade – sem estes seria difícil abrir um jornal a cada dia. Só que nem isso nos salva de ler sobre o Estado Islâmico e pasmar, em choque, enquanto os restos da nossa fé na espécie humana escorrem pelo cano de esgoto abaixo.

A barbárie que se desenrola nas áreas do Médio Oriente controladas pelo Estado Islâmico – grandes partes da Síria e do Iraque, a uma distância de não mais de 600 km de uma fronteira da União Europeia (em Chipre) – é indescritível, mas quotidiana. Jornalistas e turistas ocidentais são decepados e os vídeos difundidos para o mundo no Youtube; as violações de mulheres tornaram-se prática corrente de uma política de humilhação e limpeza étnica; minorias e opositores são discriminados, presos, ou feitos desaparecer. A loucura totalitária não tem freio, tal como nos momentos mais sinistros dos regimes nazis ou estalinistas.

É precisamente a estes regimes que o último vídeo atroz divulgado pelo EI, na quinta-feira, faz um piscar de olhos macabro. Nele vêem-se homens barbudos a usar armas rudimentares, martelos e picaretas, contra estátuas milenares provindas das mais antigas civilizações do planeta; em 1940, foi também com uma pequena picareta que Trotsky foi assassinado por ser o único opositor sério a Estaline, enquanto que poucos anos antes o regime nacional-socialista tinha queimado montanhas de livros e organizado as suas exposições de “arte degenerada” – condenando centenas de artistas e escritores ao suicídio, ao exílio ou à vergonha. E tal como acontece no EI, que contrabandeia a maioria das peças “não islâmicas” para se financiar, também os nazis confiscavam a arte que etiquetavam de degenerada e a vendiam em seguida por bom dinheiro.

A violência das ditaduras só pode sobreviver apagando a memória, destruindo a cultura, o saber e o conhecimento. É nesse contexto que é preciso ver o vídeo do ataque ao museu nacional de Mossul, cidade do norte do Iraque que envolve a bíblica Nínive – capital dos assírios, um povo que dominou a Mesopotâmia nos primórdios da civilização. Niníve foi a maior e mais magnífica cidade do seu tempo de apogeu, durante o século VII a.C., e os seus portões de entrada guardados por enormes touros com cabeça humana esculpidos na pedra estão famosamente reproduzidos no museu Britânico em Londres.

Os originais, esses, depois de quase três milénios a atravessar todo o tipo de guerras, acabam de ser esfarelados às mãos de vândalos armados de um martelo pneumático. As imagens são dolorosas de ver, não apenas por sentirmos que é parte da nossa memória colectiva que desaparece ali para todo o sempre, mas também pela ameaça evidente que estes bárbaros constituem para o nosso futuro se alguma vez se expandirem e prevalecerem. Como advertiu Heinrich Heine, autor alemão do século XIX cujos livros também foram queimados pelos nazis: “Ali onde os livros são queimados também se acabarão por queimar pessoas”.

Caros gregos: signomi

Sexta-feira passada foi dia de duelo ao anoitecer. Schäuble e Varoufakis encontraram-se frente a frente numa rua poeirenta de Bruxelas e os seus olhares impiedosos cruzaram-se num frémito de desprezo. O ministro das Finanças alemão sentado na sua carreira de rodas, e o ministro das Finanças grego dentro do seu blusão de cabedal à motoqueiro, fizeram uma pausa antes de disparar. Algures ouviu-se uma harmónica.

E então, dentro do Conselho Europeu extraordinário, começou o duelo, ou seja a negociação. O novo governo grego entrou nesta com uma corda ao pescoço, pois só tinha financiamento para as suas dívidas até dia 28 de Fevereiro. A sua pretensão era a obtenção de uma linha de crédito que permitisse ao país ir respirando até ao verão, mas sem que esse dinheiro viesse condicionado às irresponsáveis exigências da troika. Não era essa a única reivindicação do pistoleiro Varoufakis, claro; digamos que a Grécia entrou no duelo exigindo 20. E a Alemanh… perdão, a Europa respondia que estava disposta a conceder zero.

No final a Grécia obteve 2; ou seja uma possibilidade de reduzir ligeiramente o excedente orçamental exigido (ainda assim fixado nuns totalmente utópicos 4,5% antes do pagamento de juros da dívida, isto já para 2016); e quatro meses de prolongamento do programa de empréstimos vigiado pela troika. Esta última palavra desaparece, mas trata-se apenas de uma questão semântica – o BCE, a Comissão Europeia e o FMI continuarão a vigiar de perto, assegurando que as medidas de austeridade não abrandem, antes pelo contrário.

Não era esse o mandato do Syriza, reverter as políticas autoderrotistas e virar a agulha para o crescimento? Claro, e nesse aspecto o acordo atingido na sexta-feira constitui para eles (e nós) uma derrota em toda a linha – o que já está a provocar contestação no próprio governo grego, que será obrigado a impor medidas em tudo semelhantes às dos seus antecessores. O primeiro-ministro pode sempre alegar que obter “2” é sempre melhor que obter “0”, e talvez mais importante ainda é o facto de existirem aqui outras vitórias mais intangíveis – a capacidade de um país humilhado se levantar e voltar a discutir olhos nos olhos, ao mais alto nível (e não apenas com burocratas não eleitos), uma solução alternativa que sirva a todos os europeus e não passe simplesmente pela lenta agonia sem fim imposta pela Alemanha.

Essas ideias não passaram. O choque com a realidade revelou-se muito forte, e o senhor Schäuble venceu o primeiro duelo. Para isso ajudou contar com todo um arsenal, mas também com dedicados acólitos (no fundo todos os restantes ministros da zona euro mais o inefável Dijsselbloem) e dois políticos travestidos de abutres: os dois ministros das Finanças ibéricos, com o espanhol a gritar “mata!” e a portuguesa “esfola!”. Apesar destes dois países serem precisamente aqueles que mais teriam a ganhar com uma mudança das políticas que os empobreceram, os seus governos de direita estão tão assustados com um possível sucesso do novo governo grego e do contágio que isso provocaria nos seus países que decidiram borrifar-se para o interesse nacional e aparecer ao mundo como “mais alemães que os próprios alemães”. A sua oposição a qualquer alívio para a Grécia foi encarniçada e a ministra portuguesa até viajou de antemão a Berlim para pedir “pessoalmente” a Schäuble que não “cedesse”.


No meio da cegueira e da estupidez políticas, a ministra acertou: a sua posição é apenas pessoal. Estes governantes cínicos e destrutivos não me representam, nem a Portugal, muito menos à Europa. Por eles vejo-me obrigado a dizer aos gregos: signomi (desculpem).

O americano tranquilo


James Robertson. Conhece o nome? Se tem passado algum tempo na internet, provavelmente sim. Mal foi publicado num pequeno jornal, o perfil do afro-americano de 56 anos tornou-se rapidamente viral, o que não admira, pois a sua história é cativante, extraordinária, inspiradora – e também arrepiante.

Robertson vive em Detroit e trabalha como operador de máquinas numa indústria de produção de moldes. O emprego permite-lhe arrecadar um salário de 10,55 dólares por hora (um pouco mais de 1500 euros por mês), ligeiramente acima do mínimo vital, mas insuficiente para comprar e manter um carro que substitua o que avariou há dez anos; o problema é que a fábrica fica em Rochester Hills, um enorme subúrbio, e só há autocarro nos primeiros 3 km do trajecto. O operário faz o resto a pé… e o resto são 33 quilómetros.

Por uma década – desde que o Honda Accord de 1988 exalou os últimos gases – James Robertson teve de caminhar, de segunda a sexta, cerca de 66 km (um total de seis horas num dia normal, sem a neve dos duros invernos ou a chuva torrencial dos verões da região). Ele próprio não parece ver nada de extraordinário no seu estoicismo, afirmando simplesmente: “Faço-o sem desculpas. Se queres algo, tens de ir e obtê-lo, e eu não me consigo imaginar sem trabalhar”. Nunca faltou um dia, nunca chegou atrasado, é tido em alta consideração pelos colegas como alguém sempre pronto a ajudar e de bom humor – apesar de só ter tempo para dormir duas horas por noite. “Durmo muito aos fins-de-semana”, acrescenta o homem com um sorriso. Falta acrescentar que o seu percurso o obriga a passar à 1 da manhã por 8 Mile, uma das zonas mais perigosas da cidade mais violenta dos EUA.

Ao ler a sua história, um estudante universitário criou um site de doações para ajudar Robertson a comprar um carro. O objectivo era atingir 5 000 dólares, mas hoje, passadas duas semanas, já está nos 320 000 dólares doados por mais de 11 mil corações generosos. Sempre dará para um carro espaçoso.

O mundo precisa de mais James Robertson. Mas este não é apenas um conto sobre grandes qualidades humanas e com um final feliz; põe também a nu os gritantes desequilíbrios dos sistemas sobre os quais baseamos as nossas sociedades actuais e que, sem reformas, acabarão por ser a nossa perdição. Detroit é (mais) uma cidade em decadência acelerada, com administração judicial devido a bancarrota e problemas endémicos de crime, desemprego (25% da população activa) e ausência de infraestruturas vitais – como transportes públicos. Apenas 22% dos empregos da cidade são atingíveis em 90 minutos ou menos. É cada vez mais árduo obter e manter trabalho; a taxa de população activa continua a diminuir paulatinamente no mundo ocidental, enquanto o desemprego cresce.

Ultrapassar tudo isto, como faz este homem fora do comum, significa amiúde trabalhar por salários de subsistência perpétua, sem perspectivas, sem recompensa por uma vida de profissionalismo e dedicação. Robertson pode mesmo dar-se por feliz por a sua fábrica ainda não se ter deslocalizado para um país longínquo onde o salário seja de 5 dólares por hora; seria um pouco mais difícil lá chegar a nado. Entretanto, 1% da população mundial detém quase metade da riqueza do planeta. Só não sabemos se este mundo tão injusto poderá aguentar-se por muito tempo.