terça-feira, 10 de julho de 2012

O não assunto do não ministro


Leitor, gostaria de tirar um curso superior para subir (rapidamente) na vida? Não há qualquer problema. Inscreva-se numa juventude partidária, cole alguns cartazes e, ao fim de algum tempo, mande os outros colarem cartazes. Apareça em alguns jantares, vá lanchar com as pessoas certas, pratique actividades finas (equitação ou golfe nunca passam de moda) e sobretudo inscreva-se numa sociedade secreta qualquer (em Portugal, a Maçonaria trabalha muito bem). Depois escolha uma universidade privada onde os seus novos amigos tenham bastante influência, e já está: após um ano sem pôr os pés nas aulas e quatro meros exames (avaliados pelos seus companheiros de partido, lembre-se), já pode exigir que o tratem por "doutor".

Foi este o percurso do n.º 2 do governo português, o ministro Miguel Relvas, um político arrivista que graças à sua "experiência profissional" (de alguns meses em empresas de consultoria, por exemplo) obteve equivalências a 32 das 36 cadeiras que constituem a licenciatura em Ciências Políticas na Universidade Lusófona. Ironicamente, uma das cadeiras que Relvas foi mesmo obrigado a fazer chama-se "Introdução ao Pensamento Contemporâneo" - e haverá algo mais contemporâneo que o compadrio, a mentira e a corrupção? O professor da cadeira considerou que não, e avaliou o agora ministro com 18 valores. O primeiro-ministro português, Passos Coelho, desvaloriza todo o caso como um "não assunto" - mas um curso de Ciências Políticas (um a sério) ensinaria logo à partida que a relação de confiança entre eleitor e eleito é um eixo essencial de todo o sistema. E também que a ignomínia ao poder nunca deu bons resultados.

O ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares nem sequer é original: a política europeia apresenta-nos actualmente uma onda de casos de distorção do percurso académico cometidas por políticos de carreira com altas responsabilidades na gestão da coisa pública. Ainda em Portugal, o anterior primeiro-ministro, José Sócrates, licenciou-se a um domingo numa universidade sem qualquer credibilidade. Só na Alemanha foram descobertos recentemente sete casos de plágio de teses de doutoramento (todos bem dissecados pelo excelente sítio VroniPlag Wiki), atingindo em cheio dois deputados europeus dos liberais e, no caso mais mediático, Zu Guttenberg, o ministro da Defesa e "menino querido" de Angela Merkel e dos cristãos-democratas no poder.

Na Hungria foi o próprio presidente do país a cair em desgraça por ter copiado o trabalho de um conhecido autor búlgaro, e nem a maioria absoluta do seu partido no Parlamento o salvou da vergonha da demissão. Na própria Bulgária, a ministra da Agricultura inventou uma licenciatura em Berlim (falsificando para isso as assinaturas dos professores) e só foi apanhada por ter também tentado justificar a sua evidente gravidez com "um tumor". Na Roménia, o primeiro-ministro Victor Ponta viu dois ministros consecutivos escolhidos por si serem obrigados a demitirem-se por plágio académico - a ironia é que ambos os ministros tinham a pasta da... Educação. E agora é o próprio Ponta a ver-se envolvido no seu próprio escândalo de plágio, que certamente levará à sua demissão.

Em todos estes casos, os detentores de cargos políticos lutaram com unhas e dentes para se agarrarem ao lugar e conseguiram-no durante uns tempos, apenas logrando com isso enfurecer ainda mais a opinião pública contra si próprios e, por extensão, toda a credibilidade da classe política - e do sistema de ensino superior. Como tal, a pergunta impõe-se, premente: que espera o ministro Relvas para se demitir das suas funções pagas pelo pobre Estado português?

Ainda não chega

Itália derrota Alemanha e acaba por beneficiar sobretudo Espanha, a maior vencedora. Portugal, entretanto, tem uma prestação digna por entre as suas várias carências.

Poderia estar a falar do Europeu de futebol que terminou no domingo, mas não; é uma simplificação dos desenvolvimentos do Conselho Europeu “decisivo” da semana passada. A cimeira foi apresentada como decisiva para salvar a moeda europeia – a 19.ª cimeira merecedora de tal título desde o início da crise financeira. Talvez pelo cansaço acumulado, a verdade é que as expectativas em relação ao resultado de mais este jamboree dos líderes europeus eram baixas... e acabaram por ser ultrapassadas. A Itália e a Espanha ameaçaram vetar qualquer acordo enquanto a Europa (leia-se, a Alemanha da chanceler Merkel) não concedesse medidas óbvias para reduzir a asfixia financeira em que se encontram os países da periferia europeia: sem liquidez na economia nem nos bancos e obrigados a financiarem-se a taxas de juro proibitivas nos mercados.

E, às altas horas da madrugada de sexta-feira, as decisões finalmente surgiram. Os fundos europeus de estabilização (o BCE ainda não, mas tal não passa de uma questão de tempo) vão poder comprar obrigações dos países que “que cumpram com as suas reformas”, permitindo-lhes financiar-se a juros razoáveis e não depender totalmente dos intolerantes mercados; os bancos em dificuldades vão poder recapitalizar-se para poder 1. sobreviver, e 2. começar a emprestar algum capital de volta à economia. E para compor o bolo há ainda 120 mil milhões de euros que serão redireccionados para grandes projectos de infraestruturas, ajuda a regiões desfavorecidas e crédito a pequenas e médias empresas.

Estes são os primeiros passos significativos que se afastam do mantra da austeridade, do ajustamento fiscal, ou da punição pelas políticas irresponsáveis. Quase quatro anos após o eclodir da crise, mais de dois anos após a imposição deste “caminho único” (e errado), as economias europeias estão de novo a entrar em recessão, o desemprego é galopante, e não se vislumbra a luz ao fundo do túnel. Mesmo que forçado por duras negociações políticas, o fim da inflexibilidade alemã é simbólico e motivo de júbilo, dado que pode significar o primeiro passo num longo caminho de recuperação económica. E as bolsas, pelo menos num primeiro momento, reagiram em verdadeira euforia.

Só que não chega. A magnitude dos problemas é tal que estas medidas não passam de cuidados paliativos de forma a melhorar os indicadores e ganhar algum tempo, esperando pelo melhor. A discussão sobre as soluções está inquinada à partida, porque foi estabelecido – de forma acintosa e enganadora – que a origem dos problemas estava no comportamento gastador dos Estados do sul. Pelo contrário, Espanha – o epicentro actual da crise – apresentava um rácio de dívida baixo e um excedente orçamental quando a crise começou; as políticas de cortes sucessivos só têm contribuído para agudizar os problemas, que começaram antes no altíssimo nível de bens não transaccionáveis (como casas ou autoestradas) comprados com financiamento de bancos alemães... até certo ponto, o mesmo pode ser dito em relação a Portugal.

Resolver a crise exigirá muito mais visão, coragem e europeísmo do que a timidez demonstrada até agora. Exigirá, para começar, dívida pública comum, um maior papel de intervenção do BCE, e uma taxa de inflação mais alta. Esperemos que a 20.ª cimeira para salvar o euro o perceba – já perdemos demasiado tempo.

A Microsoft mete mais um avançado

Se o caro/a leitor/a se interessar por futebol, arrisco-me a adiantar dois pontos prévios sobre o seu conhecimento: 1. sabe que a selecção portuguesa, ganhando à selecção espanhola, se poderá apurar hoje para a sua segunda final de um Europeu; e 2. também sabe que quando uma equipa grande está a perder com uma equipa mais jovem e aguerrida, a solução de que o treinador lança mão é inevitavelmente meter o avançado predador que o público pede desde o primeiro minuto, o salvador de quem se espera que seja capaz em poucos minutos de fazer o que o resto da equipa não conseguiu fazer em uma hora: dar a volta ao jogo.

De certa forma, foi isto que a Microsoft fez esta semana. Consistentemente batida no mercado dos computadores pela muito mais dinâmica Apple, sem armas para travar o sucesso retumbante da "ardósia" iPad - que ameaça agora arrancar milhões de utilizadores da frente dos seus PCs de secretária e sentá-los, em vez disso, no sofá em frente ao seu fino ecrã negro -, a Microsoft decidiu entrar no mercado florescente criado pelo mesmo iPad, o dos tablets. O novo ponta-de-lança que a empresa criadora do Windows lançou para o terreno de jogo chama-se Surface (superfície); é um tablet, ou seja, um computador (limitado nas suas capacidades) cujo formato físico não passa de um ecrã fino e leve. E sem teclado, embora o novo Surface se queira destacar exactamente por essa vantagem competitiva: a sua cobertura em borracha flexível inclui teclas e mesmo uma espécie de rato de portátil, medindo apenas 2 mm de espessura e acoplando-se magneticamente ao tablet. Interessante, como interessante é o formato 16:9 do ecrã, ideal para ver filmes.

Mas o Surface está a entrar num jogo minado, e é provável que se venha a juntar às fileiras de produtos medíocres que apareceram com a missão de combater o iPad... e perderam. A ideia da Microsoft é copiar as boas ideias da empresa da maçã, e a apresentação do Surface foi feita ao mais puro estilo Apple. O vice-presidente Steven Sinofsky, calvo, usou um pulôver azul liso e um estilo cool muito, mesmo muito similar ao do falecido Jobs; um vídeo muito popular no YouTube mostra que até as frases utilizadas foram decalcadas da apresentação do iPad há mais de dois anos. Viral, no entanto, e também o mais comentado sobre o novo computador, foi o vídeo que mostra o Surface a bloquear nas mãos de Sinofsky exactamente quando este lhe gabava as qualidades multimédia, multitarefa e de surfista de internet... o desejado ponta-de-lança já está lesionado e ainda não entrou em campo.

Ver o falhanço em directo do Surface incomoda, e isto porque é impossível não sentir alguma pena pelo abandonado apresentador. Consciente que o futuro da sua empresa reside até certa medida no sucesso daquela tablete nas suas mãos, Sinofsky lutou como pôde: primeiro escondeu o ecrã e continuou a falar, depois mudou de assunto - mas o computador continuou teimosamente bloqueado -, em seguida soltou um pouco convincente "ups!", finalmente pediu desculpa e correu para uma mesa perto, trocando de tablete. Aflitivo, e revelador: como sempre, a cópia não passa de uma pálida imitação do original. A Microsoft abriu uma frente de batalha contra a Apple que vai provavelmente perder, e não contente com isso, compete agora também com os seus antigos aliados (HP, Acer, Asus, Dell...) que faziam hardware com Windows e estão agora furiosos por nem terem sido consultados sobre o Surface.

Grécia-Alemanha


No sábado à noite, a seleção da Grécia surpreendeu a Europa ao qualificar-se para os quartos de final do Europeu de futebol. No domingo, a Grécia foi a votos pela segunda vez em seis semanas, numa eleição crucial para o futuro do país, e escolheu continuar no euro - a moeda, claro.

A ironia é que no futebol a Grécia vai agora defrontar a até agora imbatível Alemanha, que se qualificou no mesmo dia das eleições - e sobre estas já surgiu um cartoon certeiro: "Quem ganhou as eleições na Grécia?", pergunta um homem a um amigo que está a ler um jornal. "A Alemanha...", foi a imediata resposta.

As hipóteses da Alemanha para o jogo desta sexta-feira em Gdańsk são fortes, obviamente, e será complicado para o treinador que orienta a equipa grega (o português Fernando Santos) fazer prevalecer a habitual estratégia de antijogo dos helénicos. De uma forma ou outra, o vencedor do jogo será um e um só; já os resultados das eleições são bem mais difíceis de analisar. O partido mais votado (Nova Democracia, ND) pertence ao mesmo grupo de centro-direita a que pertence a CDU de Angela Merkel (o Partido Popular Europeu, que domina actualmente toda a política europeia); e a sua vitória representa, até certo ponto, uma decisão a favor do caminho pré-determinado de mais austeridade em cima do quinto ano de recessão no país. Rapidamente apareceram títulos de imprensa como "a vitória da responsabilidade sobre o aventureirismo", ou "a Grécia escolheu a Europa". Até certo ponto, isto é verdade e motivo de alívio e regozijo, porque o evoluir do país é crucial para o euro e a economia global. Mas cuidado com as análises rápidas; há imensos matizes cinzentos nesse retrato a preto e branco.

O primeiro é, desde logo, a História recente: em 2008, quando a economia grega implodiu, os conservadores estavam sozinhos no poder e, perante o agudizar da situação, pediram eleições antecipadas, sendo aí duramente castigados pelo eleitorado que quis punir a sua má gestão. Ainda assim, nesse ano, a ND foi para a oposição com 33% dos votos, enquanto agora não passou dos 29,7%... uma posição muito fragilizada sobre a qual tentar formar governo. E com quem? Com o Pasok, o anterior líder, que perdeu 2,3 milhões de votos (passando de 44% a 12% do total) em apenas três anos? Com a esquerda radical do Syriza, os populistas que desejam rasgar o acordo com a troika ao mesmo tempo que se manteriam no euro? Com o Dimar, uma pequena cisão deste último liderada por um advogado ex-comunista? Ou pior ainda com o Aurora Dourada, um partido abertamente neonazi cujo momento selvático da campanha foi a agressão em directo na tv de um seu candidato (homem) a duas candidatas (mulheres) da esquerda?

Nenhum destes parceiros é boa companhia para tranquilizar os mercados e os parceiros europeus, e acresce que o próximo primeiro-ministro, Antonis Samaras, se opôs em 2010 ao primeiro resgate do país - algo que não fica bem no currículo de alguém que quer convencer os credores que vai fazer tudo para cumprir as condições draconianas do segundo, e provavelmente de um terceiro. Sim, porque o caminho para a Grécia é cada vez mais sinuoso e o paciente está cada vez mais enfraquecido pelas exigências da suposta cura. O filme é desconfortável para os portugueses, que reconhecem nele demasiadas profecias, mas a verdade é que - exaustos, angustiados, confusos - os gregos mostram nas suas repetidas eleições que já não sabem bem por onde ir. Mas sabem pelo menos por onde não ir: nestas legislativas, o Partido Trabalhista Pan-Agrário, liderado por Miltiadis Tzalazidis, obteve exactamente... 1 voto. O senhor Tzalazidis também tem ainda algum trabalho pela frente.

Visto do outro lado

“Mulheres lindas de morrer, mais um vodka para atestar... nas noites de Budapeste é sempre a rock ‘n’ rollar”, cantavam os Mão Morta há vinte anos, num dos melhores momentos da música alternativa portuguesa. Em 1992, com as ruínas do muro de Berlim ainda frescas, a Hungria fazia parte de uma Europa também ela alternativa, algo exótica e também um tanto inóspita, certamente desconhecida. Sair de Viena e chegar a Budapeste, as duas antigas grandes capitais do magnífico império Austro-Húngaro, significava atravessar uma fronteira que até há pouco tempo era estanque, quase como saltando um muro simbólico para aterrar no conceito cultural e geográfico da “Europa de Leste”.

O tempo passou muito rápido nesta zona do Mundo, Budapeste vai recuperando a sua aparência (e espírito) de grande metrópole sofisticada, e da mesma forma também os outros países do antigo Pacto de Varsóvia, da Polónia à Hungria, da República Checa à Lituânia, se vão ocidentalizando – por vezes de forma literal, dado que nenhum habitante destes países gosta de pertencer ao Leste: a simples menção do termo a um checo arranca a imediata resposta “Praga fica mais a Oeste que Viena”, na Lituânia afirma-se que o centro geográfico do continente se encontra ali (curiosamente, Eslováquia e França defendem exactamente o mesmo). Polvilhada pelas mesmas lojas que existem em Barcelona, Londres ou Estocolmo, Budapeste já não é exótica nem alternativa; as mulheres talvez continuem lindas, mas o vodka flui menos e o rock ‘n’ roll está confinado aos grandes festivais de verão patrocinados por telemóveis. A Europa Central entrou na Europa.

Aquela fronteira indisfarçável, o muro imaginário que divide o continente, simplesmente deslocou-se para montante: passa agora nomeadamente pela linha que separa a Ucrânia da Polónia, organizadores conjuntos do Euro2012. A competição está a ter o efeito indesejado de mostrar ao mundo o fosso que separa os dois. Na Polónia, membro da União Europeia (e da NATO), as cidades estão preparadas, os estádios são óptimos, as comunicações são fáceis; do outro lado, na Ucrânia, o standard é bem diferente. Chegar é logo difícil, dado que não há muitos voos e nas fronteiras terrestres a espera e a burocracia fazem lembrar outras eras; mover-se dentro do enorme país também não é divertido, com poucas estradas novas e comboios antigos que páram em todas as estações. O problema do alojamento seria anedótico não fosse grave, já que (à excepção de em Kiev) existem pouquíssimos e maus hotéis, e os que existem permitem-se cobrar somas verdadeiramente exorbitantes aos incautos turistas, numa ganância extrema que provocou inusitadas críticas da própria UEFA e do governo ucraniano. E depois há as questões que denotam amadorismo, como novos estádios construídos em sítios ermos que obrigam os adeptos de ambas as equipas a lutar corajosamente por um lugar num autocarro apinhado para voltar para casa (o que é inseguro), ou em alternativa a caminhar misturados por quilómetros (o que é ainda mais inseguro... até porque no futebol do país persistem problemas de violência e racismo).

Ainda do outro lado do muro, a Ucrânia não estava preparada para o Euro2012; várias vezes foi avisada que poderia perdê-lo. Mas agora a grande competição está a decorrer, e é possível que chegue ao seu termo sem nenhum choque de monta. E terá certamente efeitos positivos – o contacto dos habitantes com o diferente, e a própria melhoria da imagem que os outros europeus têm do país. Pelo menos a equipa que ganhar o Euro ficará a gostar muito da Ucrânia – esperemos que aquela seja Portugal, mas na minha opinião as probabilidades de tal sucesso são muito escassas.

O próximo grande projecto

O ideal europeu moderno não nasceu após uma boa noite de copos, nem muito menos após um festival de música de estádio tão cheio de boas intenções como de más performances. A Europa Unida, o sonho europeu encarnado em nomes tão diversos como Estados Unidos da Europa, Comunidade Europeia do Carvão e do Aço ou a actual União Europeia, foi a nossa resposta aos horrores da guerra. Foram as ruínas a que o nosso continente se viu reduzido, uma vez mais, em 1945 a definitivamente nos abrir os olhos para a necessidade de concretizar a utopia de alguns visionários. O projecto europeu era e é, antes de tudo o resto, um projecto de Paz; e após milénios de lutas intestinas, os seus integrantes - nós - conhecemos actualmente o mais longo período ininterrupto sem guerras internas de sempre. São apenas 67 anos, mas nunca tinha sido conseguido antes.

A Europa nasceu como resposta a uma crise - é esta a sua génese e, até certo ponto, o seu alimento. Através de grandes ou (mais frequentemente) pequenos passos, a força integradora do continente soube inspirar-se nos escolhos do caminho. É extraordinário ver hoje o edifício que, tijolo a tijolo, camada a camada, foi construído pelos homens que lideraram o processo, grandes políticos europeus de outras eras: as pegadas de Monnet, Schuman, Rey, De Gasperi, Spaak, Schmidt, Kohl, Miterrand, González, Delors e tantos outros foram deixadas em conjunturas económicas também difíceis, sem maior sustentação pública que a de hoje em dia, pisando o terreno historicamente inexplorado dos inimigos de ontem que decidiram juntar-se no amanhã. A sua inspiração é sentida hoje em dia por líderes fracos, indecisos ou populistas - não é possível esquecer o desabafo recente do velho Helmut Kohl que, referindo-se à sua sucessora Angela Merkel (do mesmo partido), lamentou amargamente que "ela esteja a destruir a minha Europa". Mas por muito populista que a presente geração de líderes seja, por muito pouco clarividente ou mesmo mesquinha que seja a sua baixa política nacionalista, o legado da construção europeia é demasiado precioso para pôr em causa. Está entranhado no sangue dos diversos Estados, está na nossa consciência e no nosso coração: não garante céus azuis nem um futuro róseo, mas pelo menos impede as elites dirigentes mais responsáveis (os extremos do espectro político estão isentos desta classificação) de alimentarem a ideia de que problemas globais poderiam ser resolvidos isoladamente, fora dos Tratados, fora das instituições europeias.

Hallstein, o primeiro presidente da Comissão agora liderada por Barroso, usou a famosa "imagem da bicicleta" para explicar porque era necessário um movimento constante para a frente, na direcção de novos projectos integradores: se a Europa parasse, poderia, tal como a bicicleta, cair. É de um novo projecto que a Europa agora precisa, apesar de nenhum dos anteriores estar adequadamente concluído; nem o mercado interno, nem a livre circulação de pessoas, a voz europeia afinada no mundo, a verdadeira governação política, ou (muito menos) a moeda única. Mas a crise actual já sugeriu soluções impensáveis até há poucos anos, como o direito da UE intervir nas políticas macroeconómicas de cada membro e, a prazo, a criação de um verdadeiro governo económico comum, acima dos países (nunca uma moeda única deveria ter sido criada sem este). Da crise nasceu, de forma inesperada, o nosso novo desígnio. É certo, um desígnio que existe pela negativa - salvar a Europa do declínio económico, da irrelevância e do desmantelamento - mas que não é menos absolutamente crucial por isso.

Adivinha quem vem jantar

Spencer Tracy era um actor extraordinário, a tal ponto que detém ainda hoje o recorde de nomeações para o Óscar de melhor actor, nove, tendo ganho por duas vezes. Infelizmente Tracy tinha diabetes, o que agravado pelo alcoolismo contribuiu para um ataque cardíaco que o fez parar de fazer cinema em 1963. Já em condições difíceis, o actor voltou aos sets para fazer um último filme em 1967 - Adivinha quem vem jantar - contracenando mais uma vez com a sua amante de longa data, Katherine Hepburn; Tracy ainda conseguiu filmar todas as suas cenas, e morreu duas semanas depois. O filme trata de uma temática difícil, os casamentos interraciais (numa altura em que vários Estados dos EUA ainda os ilegalizavam): a história inicia-se quando uma jovem branca decide apresentar o seu noivo aos pais "liberais" trazendo-o para jantar em casa deles, e gira em torno das reacções ao facto de o noivo ser negro, e os choques intermináveis causados por diferentes visões do mundo.

Os líderes europeus fizeram na passada semana uma espécie de adaptação política do filme. Na esteira da eleição de um novo presidente francês com uma agenda de "crescimento", os 27 governos organizaram um "jantar para o crescimento" nas instalações do Conselho, em Bruxelas. A ocasião serviu para apresentar Hollande aos seus novos pares europeus - um grupo em regra bastante conservador, sobretudo os partidários da linha dura da sra. Merkel, firme no seu papel de matriarca - e, tal como no filme de 1967, a química não funcionou e a consonância deu lugar ao amargor. O outro pretendente ao Eliseu, Nicolas Sarkozy, afinava estratégias antes de cada cimeira com mais ninguém que a chanceler, e Merkel participou activamente na campanha falhada pela sua reeleição. É óbvio que Hollande é um parceiro indesejado, e ele sabe-o.

As boas notícias são que o fosso que separa os dois cilindros do motor franco-alemão não é tão largo como o que é geralmente apresentado - e nunca poderia sê-lo, numa conjuntura tão delicada como a que vivemos. O encontro Merkel-Hollande (é uma questão de tempo até que o neologismo "Merkollande" substitua "Merkozy") tem sido apresentado quase como o duelo final de um vídeojogo, em que os respectivos bravos cavaleiros pugnam pela austeridade de um lado, pelo crescimento do outro. Naturalmente a realidade é bem distinta: todos desejam crescimento (a forma de o obter a prazo é que diverge), e todos concordam (menos os radicais gregos de esquerda que vão vencer as eleições de Junho) que alguma austeridade na despesa pública é neste momento desejável ou, pelo menos, inevitável.

Além da comida, o que esteve em cima da mesa no jantar para o crescimento foram medidas que já reúnem o seu consenso a nível europeu: grandes projetos de infraestruturas, mais dinheiro para o Banco Europeu de Investimentos, uma taxa sobre as transacções financeiras (ferozmente combatida pelo Reino Unido). Mas por outro lado também o tema escaldante das eurobonds, que Hollande considera o ponto de partida e Merkel apenas como o aumentar do problema. E os bancos da Espanha (e de Portugal...). E a Grécia. A Grécia que, em Junho, poderá ter-se votado a si própria para fora do euro. No final de Junho ocorrerá o verdadeiro Conselho Europeu "regular", que dura dois dias, e só aí chegará a pièce de resistance deste jantar.

Precisamos de Ti, 'mor

Uma das páginas mais belas da História portuguesa recente está relacionada com a independência de Timor-Leste. A população portuguesa mostrou uma solidariedade comovente quando a repressão se intensificou durante a década de 90 - o país inteiro vestido de branco chegou a paralisar em memória das vítimas, num momento arrepiante. E Portugal foi inexcedível em trazer a questão da ocupação indonésia para a agenda internacional, reclamando mérito na conquista da inesperada vitória que constituiu a criação de um novo país, o primeiro a ser criado neste século, em 2002.

Só passou uma década, mas o mundo muda muito rápido. Os timorenses já elegeram o seu terceiro presidente, Taur Matan Ruak, e o presidente da República Portuguesa está agora em Díli numa visita de Estado que despertou um tema surpreendente para as consciências lusitanas: chegou o tempo de ser Timor a auxiliar Portugal.

Timor-Leste produz petróleo. São empresas australianas quem o extrai do fundo do mar, mas as receitas do ouro negro (10 mil milhões de euros nos últimos sete anos) equilibram as contas do pequeno território, e permitiram mesmo a criação de um enorme mealheiro, uma poupança para permitir atravessar eventuais dias difíceis, à semelhança do que fizeram outros países bafejados pelos recursos naturais (o "fundo do petróleo" constituído pela Noruega, o maior do mundo, detém participações em quase todas as grandes companhias europeias). E Timor-Leste procura mais aplicações para o seu dinheiro, depois de já ter comprado dívida pública americana; a versão portuguesa promete hoje em dia taxas de juro bem mais aliciantes - e, com o risco adicional de uma possibilidade relativamente alta de bancarrota, aliando a essa remuneração atractiva as emoções fortes tão do agrado do investidor que tem os nervos de aço forjados em décadas lutando nas montanhas pela Resistência timorense.

A ideia de ter o Estado timorense a investir em Portugal já tinha partido do anterior presidente José Ramos-Horta, e desta feita Cavaco Silva nem pestanejou quando inquirido sobre essa possibilidade: "se o fundo do petróleo olhar para Portugal e considerar que pode fazer aí aplicações rentáveis... bem, é uma escolha dos timorenses", respondeu, num piscar de olho ao seu congénere. Taur Matan Ruak, nome de guerra que significa em tétum "dois olhos vivos" e cujo nome de baptismo é José Maria Vasconcelos, soube ler a situação e ripostou: poucas horas depois, avisou que o Português deve passar a ser ensinado como língua estrangeira, e nunca "como língua mãe". Ao fazê-lo, acertou-nos em cheio nas sensibilidades do antigo colonizador.

A opção sentimental tomada há 10 anos pelo Português nunca poderia ser pacífica num país que, na realidade, não fala a língua: oficialmente apenas 20% da população a compreende (menos que no Luxemburgo, portanto), e o número real deve andar longe deste. Só que Timor, onde se falam 17 línguas nativas sem expressão internacional, precisa de uma língua franca, e o português é ensinado nas escolas - estando portanto em progressão. Reduzir-lhe o estatuto seria provavelmente um erro irreversível, e desgastaria certamente algum do capital de simpatia com que o país conta entre os portugueses. A não ser, claro, que nos comprem muita dívida pública; se o fizerem, até toleraremos que Timor entre na Commonwealth e mude o nome para East Timor, que os tempos não estão para romantismos.